O texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo, assinado por um professor ou uma professora do ensino superior sob o pseudônimo Benamê Kamu Almudras, merece ser lido por todos. É um artigo polêmico e oportuno que faz uma reflexão perspicaz sobre o comportamento de alguns alunos na universidade pública brasileira – em particular os alinhados à esquerda.
Segundo o autor, a rebelião atual de alguns estudantes contra os métodos acadêmicos, a dinâmica dos cursos e a autoridade dos professores está longe de fazer parte de uma atitude “revolucionária”, como parece a alguns. No fundo, esses protestos individuais derivam de algo bem menos combativo – de uma visão neoliberal e mercantil do ensino, que vê a universidade pública como um estabelecimento comercial, os professores como meros atendentes (ou “serviçais privados”, ressalta o texto) e os estudantes como consumidores que precisam ser satisfeitos em seus desejos. Longe de promoverem uma grande mudança na vida acadêmica (e na sociedade), esses alunos rebeldes estão de fato se colocando, inconscientemente, como instrumentos de uma ideologia anti-igualitária e não solidária, e assim vão empurrando a universidade pública para o regime cultural do mercado e do consumo.
Almudras conta que, quando contrariados em seus desejos e objetivos, os estudantes às vezes empreendem verdadeiros ataques a professores, grupos e comitês universitários, amolando-os com denúncias (de preconceito, por exemplo). São acusações que, embora nascidas de uma contrariedade pessoal, vêm empacotadas em alguma bandeira política coletiva, o que torna pouco perceptível o seu fundo neoliberal. Esse é o motivo, aliás, que levou o autor a não assinar o texto com o próprio nome: foi um modo de ele se proteger desses ataques que desmoralizam injustamente a carreira de um docente.
O que leva esses estudantes a tal comportamento, em plena segunda década do século XXI, a era do conhecimento? Uma hipótese é que esses jovens adotaram uma variante do pensamento atual da esquerda que trocou a luta pela mudança estrutural da sociedade para se dedicar a alternativas individualistas ou grupais de transformação. É uma deriva esquerdista que substituiu a utopia de um mundo mais justo para todos por políticas assistenciais localizadas. O que talvez seja mais realístico, mas que em seus desdobramentos imita, paradoxalmente, a lógica do capitalismo avançado (ou do neoliberalismo, que é a sua fórmula dominante): passar por cima dos laços de solidariedade entre as classes sociais marginalizadas, segmentando as reivindicações e fragmentando-as, a tal ponto que acaba tornando a causa pessoal ou grupal mais importante que a coletiva, dos marginalizados ou desfavorecidos em geral.
As políticas afirmativas são uma grande conquista social. Aplicadas à universidade, produzem uma mudança de peso, pois alteram a origem e a cor da elite intelectual brasileira, que deixa de ser unicamente de ascendência rica e branca. Por consequência, transformam também o quadro profissional das empresas no Brasil, introduzindo nelas, em cargos mais dignos, os novos diplomados oriundos de classes desfavorecidas e de diferentes raças. É uma transformação notável, cujos efeitos só sentiremos plenamente em alguns anos, caso não haja, como tem havido em várias áreas no país, um recuo nas políticas sociais já implantadas.
Dito isso, é preciso lembrar que as ações afirmativas são um passo para um compromisso maior de todos os que estão engajados na luta pela transformação da sociedade brasileira como um todo, a fim de romper com séculos de injustiça social e de benefícios desigualmente distribuídos. No campo do ensino ainda há muito que fazer.
Uma das primeiras tarefas é assegurar uma boa e gratuita educação de base a toda a população desfavorecida. Pois é nesse momento inicial do aprendizado que se assentam as bases da inteligência, do conhecimento, da reflexão e da criatividade. No Brasil, porém, incrivelmente, temos tratado como projeto secundário essa necessidade primária. Teremos agora o Novo Fundeb, há pouco aprovado pelo Congresso e que promete recursos ao ensino básico, mas não basta. Serão necessários ainda mais recursos e melhor forma de usá-los.
Deveria haver uma ampla mobilização social, como a que foi feita muito justamente para as cotas na universidade, a fim de dar à questão do ensino básico a sua devida estatura democrática e republicana, insistindo na reestruturação total. Também aos jovens universitários, que tanto aspiram por um país melhor, deveria incomodar o fato de haver ainda no Brasil quase 12 milhões de pessoas não alfabetizadas e cerca de 38 milhões de analfabetos funcionais (embora, em meu entender, esse número seja bem maior), sem falar em muitos outros milhões de jovens e crianças que não conseguiram – e muitos jamais conseguirão – completar o ensino médio.
Em seus 35 anos de democracia, o país teria tido tempo para educar dignamente todos os brasileiros, desde os primeiros anos – com um robusto sistema nacional de educação de base – até a universidade, formando com rigor os professores, remunerando-os melhor e mais justamente, equipando as escolas com o devido cuidado, modernizando o ensino superior. O Estado estaria cumprindo um dos mandamentos republicanos, que é oferecer educação a todos, independentemente de classe social, raça e gênero. E os governos estariam preparando o país para um futuro tecnológico e sofisticado, altamente competitivo, no qual a educação tem peso dominante. Mas muito pouco, de fato, aconteceu.
A educação de base nunca foi uma verdadeira prioridade nacional, pois nesse tópico sempre faltou vontade política aos governos e faltou grandeza aos políticos, presos a uma visão mesquinha do país e do mundo (do atual governo, há pouco o que se esperar, exceto destruição em larga escala). Mesmo os intelectuais orgânicos dos partidos de esquerda foram incapazes de criticar o rumo que suas legendas foram tomando, ao desviarem da tarefa mais difícil de construir o futuro por meio de mudanças essenciais no presente, como lutar por um bom ensino de base para todos, em vez de incentivar a visão consumista da educação.
Como disse uma vez o espanhol Federico Mayor, ex-diretor-geral da Unesco, “mais preocupante do que o silêncio dos silenciados pelos ditadores é o silêncio silencioso por falta do que dizer”. E, acrescento: também por comodismo e subserviência dos intelectuais partidarizados (um dos temas do meu livro Por Que Falhamos – O Brasil de 1992 a 2018, no qual relaciono a ascensão da extrema direita no Brasil à omissão dos acadêmicos por não fazerem críticas aos governos no período democrático progressista). No lugar de uma política estratégica visando formar gerações capazes de competir intelectualmente no mundo, nossa política educacional foi, sobretudo, eleitoral, dessa forma abrindo caminho para um “neoliberalismo social”, que faz das leis do mercado a norma da vida em sociedade, buscando atender apenas às demandas imediatas, num processo de naturalização da competitividade e do consumo.
Provocativo, Almudras utiliza em sua denúncia a expressão “neoliberalismo cultural” para se referir à atitude dos jovens que não se dão conta da dimensão maior, coletiva e social, da universidade pública, julgando que todo aparato do ensino superior está lá para servi-los individualmente, à maneira de um restaurante. Como vimos, o neoliberalismo econômico está por trás desse comportamento, por sua insensibilidade aos problemas coletivos e a forma como abandona cada um à própria sorte, depois julgando-os conforme o “mérito”. A bandeira da meritocracia justifica, depois, a nova discriminação, pois finge ignorar como a sociedade brasileira oferece tão pouco à promoção do talento dos pobres. O neoliberalismo, econômico ou social, corrompe o conceito democrático do respeito ao mérito, conforme o talento, a vocação e o esforço. Mas, como cobrar méritos na linha de chegada, se houve tantos desequilíbrios na largada? A democracia substitui a hereditariedade pela meritocracia republicana, graças às garantias dadas a todos de terem a mesma chance na educação: pobres e ricos em escolas de base com a mesma qualidade.
Em vez de começar a resolver na raiz essa aristocratização da boa educação que vigora no Brasil (com os mais ricos tendo acesso a melhor ensino fundamental e médio, o que os leva a serem mais numerosos nas universidades públicas), os governos brasileiros se limitaram a ampliar a possibilidade de ingresso nas faculdades, sem aumentar a qualidade e o número dos egressos ao ensino médio. A ideia de que o diploma universitário precisa ser obtido de qualquer forma foi incutida nas pessoas como se isso garantisse o seu futuro. Da mesma maneira que inventamos o conceito de carro popular para os que estão na fronteira entre a pobreza e a classe média, oferecemos um diploma universitário popular. Certamente, isso trouxe autoestima a muitos jovens e seus familiares, mas o que dizer da formação profissional e das demandas reais do mercado de trabalho?
Cada vez mais enxuto, quando não atrasado tecnologicamente ou com mais frequência (como agora) em depressão, o mercado de trabalho pouco tem a oferecer a tantos formandos. E na competição geral dos muito diplomados, acabam prevalecendo nas empresas aqueles que obtiveram os melhores resultados… nas melhores universidades, em geral, públicas. Pois o mercado de trabalho encolheu e o ensino superior não se adaptou às exigências das novas tecnologias (justamente porque lhe falta educação de base e formação técnica sofisticada em larga escala).
Tratamos a educação como uma questão mercantil para usá-la como instrumento eleitoral, não como questão social ou como vetor do progresso. A direita, sempre gregária, está apenas interessada na manutenção dos privilégios históricos para as classes conhecidas. A esquerda, por sua vez, perdeu a capacidade de sonhar grande o futuro e de mobilizar amplas camadas populares para lutarem juntas pelo sonho de quebrar os privilégios – preferiu se limitar à incorporação de alguns desfavorecidos entre os privilegiados.
No campo do ensino, esse sonho é o de um Brasil total e corretamente alfabetizado, amplamente educado em escolas públicas de máxima qualidade e igual para todos – independente de renda, raça e endereço –, com professores bem pagos, bem preparados e dedicados.