No livro Entre oligarquias: as origens da República brasileira (1870-1920), que a Editora FGV publica em agosto, o historiador Rodrigo Goyena Soares demonstra como a Proclamação da República, longe de ser um movimento de ruptura plena, serviu para legitimar o conservadorismo político-econômico da oligarquia brasileira, reforçando seus interesses de classe, seu domínio sobre o Estado e sua indiferença às desigualdades sociais.
“A República brasileira nasceu muito menos contra os privilégios da nobreza imperial do que como meio para alcançá-los”, escreve o historiador na Introdução. “Para os republicanos de São Paulo, que se tornava no estertor do século XIX o principal eixo produtivo nacional, o federalismo [republicano] era a via para tanto. A antiga província ressentia-se com a Corte, que a tributava mais do que nela investia, e especialmente com os bancos, também do Rio de Janeiro, cujos empréstimos não perfaziam sequer a sombra do capital cobiçado para o desenvolvimento dos cafezais paulistas.”
A seguir, a piauí publica um trecho do livro, em que o historiador – também autor de Império em disputa: coroa, oligarquia e povo na formação do Estado brasileiro (1823-1870), em coautoria com Thiago Krause – analisa como o capital produtivo e o financeiro encontraram, no momento de fundação da República, a resolução de sua síntese conflitiva nas Forças Armadas.
Tão somente seis dias antes do que viria a ser a Proclamação da República, a Coroa, costumeiramente avessa a grandes festividades, promoveu um baile na Ilha Fiscal que em tudo recordava os maiores despropósitos nababescos da Corte de Luís XVI, deposto havia cem anos. Foram praticamente 2.500 convidados que se sentaram a mesas dispostas como ferraduras sob a luz de 14 mil velas. Nelas, trafegaram 800 latas de lagosta, outras 1.200 de aspargos e mais 800 de trufas, no que foram apenas as entradas. Em instantes, rumaram 1.500 costeletas de carneiro, 300 presuntos, 65 faisões, 80 marrecos e 12 cabritos, entre tantas outras caças, que abriram passagem para as pastelarias, os fios de ovos, as gelatinas e os sorvetes. Entre uma garfada e outra, foram 10 mil litros de cerveja, 20 caixas de Bordeaux, 40 de Borgonha, 20 de Madeira e 60 de Porto, isso sem mencionar o champanhe, o vermute, os licores e os conhaques.
Formalmente, o evento celebrava as bodas de prata da princesa Isabel e do conde d’Eu, mas igualmente se homenageava a oficialidade das embarcações chilenas estacionadas na Baía de Guanabara no mês anterior. As relações de Santiago com Buenos Aires andavam estremecidas em razão de critérios demarcatórios no extremo Sul patagônico, e também o Brasil andava às voltas com a Argentina devido a disputas de fronteira ainda abertas. Informalmente, o gabinete do visconde de Ouro Preto, que amparou o baile, lutava pela popularidade da monarquia, especialmente entre os bastiões produtivos que haviam escorado a Coroa nas quatro décadas anteriores. Apenas em 1889, São Cristóvão distribuiu 92 títulos de nobreza a fazendeiros do Vale do Paraíba, galardões mal harmonizados com os barretes frígios de segunda mão que subitamente lhes cobriram os tímpanos após a Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888.
Os republicanos do 14 de maio, como ficaram conhecidos os fazendeiros insatisfeitos com a abolição, frustraram-se com uma lei que não os indenizara diretamente pelos escravos perdidos e, o que não era de surpreender, congraçaram-se em projetos alternativos à Coroa. Um mês após a Lei Áurea, a cidade de Vassouras, no Rio de Janeiro, lançou seu muito interessado manifesto republicano. Foi assinado por praticamente todos os maiores proprietários do município cafeeiro. No entanto, chegaram tarde à partilha do butim. Àquela altura, os republicanos puro-sangue de São Paulo e do Rio de Janeiro já andavam pelos quartéis, sonhando com uma República a ser proclamada no dia 14 de julho de 1889, nos exatos cem anos da Revolução Francesa.
Irrequieta depois do retorno pouco lisonjeiro dos pântanos paraguaios, a tropa manteve incólume seu clamor pela industrialização do país. Seria a única maneira de deter tanto as ameaças muito concretas do imperialismo global na fronteira amazônica quanto as pressões lindeiras de Buenos Aires. Num tempo em que a Grã-Bretanha mantinha uma força de 4.500 homens distribuídos entre a Guiana Inglesa e as Bermudas, mais do que o posicionado na China e na África do Sul, o desenvolvimento industrial soava, especialmente ao médio oficialato, não apenas como garantia para alçar o Brasil à notoriedade que os Estados Unidos alcançavam na ordem internacional, mas também como salvaguarda líquida e certa para o reequipamento militar. Em última instância, mobilizável contra as eventuais intenções bélicas de ambiciosos britânicos na região do Pirara, na Guiana, de incansáveis franceses na do Oiapoque e de argentinos turrões na de Palmas, no extremo ocidente de Santa Catarina. Especialmente grave era o caso do Amapá. Embora declarado território neutro em 1841 por brasileiros e franceses, a região conheceu em 1885 a instauração da caricata República de Cunani, proclamada por membros da Société de Géographie de Paris, que insuflaram negros locais, como Trajano Benitez, a aderirem a um país livre do cativeiro.
Julgando-se responsáveis pelos rumos do Brasil e arrolando-se o direito para tanto, os quartéis não toleravam qualquer cerceamento corporativo advindo do poder civil. A origem do que à época se denominou questão militar foi um fastidioso projeto de montepio remetido em 1883 pelo gabinete Paranaguá. A medida, zelosa de criar um sistema de previdência social com ares de imposto de renda, impunha ao servidor público, para além da possibilidade de pronta demissão, a contribuição obrigatória de 4% sobre os proventos, fora os 2% já descontados na folha de pagamentos para fins de reforma ou aposentadoria. Sem distinção de categoria, significando que o senador contribuiria tal qual o médio oficialato, o projeto foi asperamente fustigado pelo presidente do Diretório Militar, o veterano do Paraguai Antônio de Sena Madureira, que logrou reunir em seu entorno, graças a uma franca agitação nos jornais, todas as guarnições provinciais, assim como os alunos das escolas militares do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.
Tamanha foi a pressão que o governo imperial efetivamente recuou, porém não sem antes cercear a manifestação dos anseios militares na imprensa. O fato pareceu grave à caserna não apenas pela perda de um espaço predileto de exposição política especificamente perante a classe média, mas igualmente devido à liberdade de expressão, que em oposição permanecia, apesar dos empastelamentos, a regra do Império. Ainda em 1883, o jornalista negro Apulcro de Castro, redator do feroz Corsário, fora assassinado a tiros e punhaladas por oficiais da primeira cavalaria. Não que o tino abolicionista do jornalista lhes causasse desconforto, como tampouco o fariam as constantes denúncias de abusos do poder civil. Incomodava, pelo contrário, que um assim considerado negro e semianalfabeto ousasse macular a honra da tropa com artigos atentatórios à caserna.
Inimputáveis talvez em razão de os civis também imputarem ao jornalista idênticas características, os oficiais assassinos apenas aprofundaram o clima de discórdia militar com a política partidária. Em questão de meses, Sena Madureira recebeu em festa na Escola de Tiro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, o jangadeiro Francisco do Nascimento. Também conhecido como Dragão do Mar, o cearense destacara-se no movimento abolicionista ao negar o embarque de escravos em Fortaleza. Novamente, não era aquilo a expressão de um súbito afeto racial, e tampouco compaixão pela vida cativa, mas um aceno favorável da espada à agenda abolicionista, que voltava a ganhar vulto quando o liberal Sousa Dantas assumiu a chefia do gabinete em 1884.
A repreensão a Sena Madureira acirrou ainda mais os ânimos. Nos primeiros meses de 1886, muito aborrecida com a ascensão ao poder do barão de Cotegipe e com a consequente Lei dos Sexagenários, que para propósitos abolicionistas não fedia nem cheirava, a tropa voltou à carga pela mão do também veterano Ernesto Augusto da Cunha Matos. Após inspeção aos quartéis do Piauí, o oficial do Partido Liberal acusou o capitão local, ligado ao bloco conservador, de reiteradas irregularidades financeiras. Nada muito novo, a não ser pela clara mensagem despachada quase diretamente a Cotegipe. Em 1877, quando o barão era ministro da Fazenda, fora acusado de envolvimento no escândalo das popelines: condenou-se a empresa comercial da qual Cotegipe era sócio por evasão fiscal, quando omitiu na declaração alfandegária que as roupas por ela importadas eram confeccionadas em frondosa popeline. No lugar, alegou-se que eram tão somente linhas de coser.
Percebendo a implícita ilação, e que o episódio materializaria talvez as críticas dos quartéis à política imperial julgada corrupta, os conservadores na Câmara de Deputados difamaram Cunha Matos a ponto de insinuar que, durante a guerra no Prata, teria dado aos paraguaios conhecimento sobre as estratégias militares dos aliados. Ou traído o Brasil. Cunha Matos correu então novamente à imprensa, no que foi acompanhado por Sena Madureira. Ambos terminaram severamente censurados por Alfredo Chaves, o ministro da Guerra, que sustentava deverem os militares, conforme avisos de 1859, obter primeiro consentimento ministerial para expressarem-se nos jornais. Era um rodeio jurídico, ao fim e ao cabo, não apenas visto que os militares já se expressavam correntemente na imprensa, mas também porque Chaves, um dos nove deputados que apenas dois anos depois votariam contra a Lei Áurea, queria trancar a tropa abolicionista nos quartéis.
O instante era crítico, ainda, em razão do alento que a agitação castrense dava às forças republicanas. Na Corte, Quintino Bocaiúva cedia à caserna todas as linhas do jornal O País, o que era exatamente o caso do positivista Júlio de Castilhos com A Federação, no Rio Grande do Sul. Os republicanos paulistas, por sua parte, também foram entreter-se com a espada mais aguerrida no Rio de Janeiro. Francisco Glicério, como de hábito para o diplomata da lavoura campineira, e Francisco Rangel Pestana, a mando de A Província de São Paulo, recomendaram à Comissão Permanente do Partido Republicano Paulista (PRP) atrair os militares para a esfera de influência paulista. Receava-se que a precipitação armada dos acontecimentos concedesse margem de ação ao ideal republicano radical de Silva Jardim ou de Lopes Trovão. Inflamar as ruas com vaticínios lisonjeiros quanto à consagração da soberania popular era o avesso da República campineira e daquela dos signatários do manifesto de 1870.
Em maio de 1887, o deputado paulista Campos Salles chegou furtivamente à Corte no intuito de forcejar a Proclamação da República imediatamente após a conclusão da questão militar. Tragou um brioche na estação Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, e logo rumou à casa do jornalista Aristides Lobo, onde um capitão de artilharia, o republicano e abolicionista Inocêncio Serzedelo Correia, apertou-lhe a mão e prometeu-lhe a adesão dos tarimbeiros do Prata, naquele momentojá constituídos em alta patente do Exército. Transcorridos dois dias, José Antônio Correia da Câmara, o visconde de Pelotas, que fora responsável pela captura e morte do presidente paraguaio Solano López nas barrancas do arroio Aquidabã, reuniu secretamente a veterania no Grande Hotel. Numa sala à meia-luz, o oficial anunciou o respaldo de Campos Salles, mais necessário do que o de Aristides Lobo ou Quintino Bocaiúva, porque a viabilidade orçamentária do arranjo que daquela reunião surgisse dependeria dos paulistas. Confabulou com Benjamin Constant sobre a aquiescência da Escola Militar da Praia Vermelha, o que foi prontamente confirmado. Serzedelo pediu a imediata cessação do uso civil da tropa para a captura dos escravos foragidos. Rotineiramente autodeclarado monarquista por força da preservação disciplinar ante as patentes mais baixas e por precaução corporativa perante o poder civil, Deodoro da Fonseca consentiu com a assim chamada revolução – “se tem de ser amanhã, que seja logo hoje. Estou pronto”, disse ao visconde de Pelotas –, porém, naquele momento, pronto apenas para destituir o gabinete de Cotegipe.
As condições estavam reunidas para a Proclamação da República: o deslocamento do eixo produtivo nacional para São Paulo forjara uma nova fração de classe dominante, muito contrária à sua cara-metade fluminense encastelada nos bancos devido à pujança de um movimento abolicionista que, de resto, era atalho para o poder na perspectiva da tropa. “Como liberal que sou”, dizia Floriano Peixoto entre um cigarro e outro, “não posso querer […] o governo da espada; mas não há quem desconheça […] que é ele que sabe purificar o sangue do corpo social, que, como o nosso, está corrompido.” Era uma retórica, tantas vezes reempregada nas décadas subsequentes, que atribuía à caserna a incumbência de guiar o corpo da pátria, expurgando-o das mazelas próprias aos governos civis em prol da moralidade, da cordura e da retidão. Um palavrório, ao fim, que encantou a classe média, como ratificado pela adesão à República do Batalhão Patriótico dos Empregados do Comércio ou de correlatos para empregados públicos, farmacêuticos, cirurgiões e notários.
O próprio poder público havia percebido o encantamento. Ainda em 1885, Paulino de Sousa havia dito no Senado que seria “na classe média, da qual todos nós saímos, caracterizada pelo interesse na estabilidade, pelo espírito ordeiro e pelo sentimento de liberdade, que procurariam assento e apoio os governos regulares para a fiel execução das leis, para o resguardo dos interesses sociais, para a promoção da prosperidade da pátria.”
Outro palavrório – pois Paulino era tudo, menos oriundo da classe média – que tinha sua razão de ser na percepção clara acerca do consentimento que a classe média daria a eventual mudança de regime.
O que ainda não estava dado, por outra parte, era a organização concreta da trama golpista. Se mal formulada, poderia redundar num eventual contragolpe, que retardaria a formação de uma nova hegemonia no poder. Era preciso concertar-se com as forças militares estacionadas nas províncias, sondar os batalhões de polícia e certificar a posição da Marinha, assim como encurralar o gabinete, formar o Governo Provisório e, quando chegasse a hora, capturar os telégrafos, interceptar a família imperial e garantir o apoio internacional – notadamente dos Estados Unidos, que provavelmente respaldariam uma República americanista em sua agenda econômica e diplomática.
A prova de fogo para testar o raio de ação militar e seu respaldo no mundo civil contestatário seria a resolução da questão militar pela derrubada de Cotegipe – ou uma vitória da espada contra tudo o que o cativeiro representou, anos a fio, na formação da classe dirigente imperial. Recusando-se a punir os oficiais considerados rebeldes pelo gabinete e em perfeita sintonia com o visconde de Pelotas, àquela altura senador, Deodoro da Fonseca fundou em junho de 1887 o Clube Militar, com o objetivo estatutário de “estreitar os laços de união e solidariedade entre os oficiais das diferentes classes do Exército e da Armada”. Com ele, arregimentaram-se Sena Madureira, Benjamin Constant e o coronel José Simeão de Oliveira; o bloco da Marinha, a seu turno, compôs-se com os nomes dos capitães de mar-e-guerra Custódio José de Mello, José Marques Guimarães e Eduardo Wandelkolk. Assim como os oficiais do Exército, eram veteranos do Paraguai e viriam a ser futuras lideranças militares da República – com a singular diferença que os da Armada romperiam rapidamente, após o Quinze de Novembro, com Deodoro e Floriano Peixoto.
Até lá, a banda militar marchou afinada. Ainda em maio de 1887, temendo que as tropas saíssem às ruas, o Senado revogou os avisos que forçavam os militares a pedir autorização do governo antes de falar à imprensa. Deodoro e Pelotas, com o auxílio de Rui Barbosa, haviam já lançado o Manifesto do oficialato em O País, desabonando o gabinete. Então, Antônio Prado renunciou ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, e Campos Salles passou a frequentar o Clube Militar, que, pouco depois, emitiu nota pública desobrigando oficiais a caçarem escravos, retirando-lhes a condição de capitães-do-mato. Era uma mensagem de alento ao movimento abolicionista ou uma oportuna forma de confraternização com a amplitude social que materializava o antiescravismo, mas igualmente uma passada larga para obrigar Cotegipe, coagido pela sombra de Deodoro e Pelotas, a largar a pasta.
No final de 1887, Deodoro candidatou-se ao Senado em chapa conjunta com Benjamin Constant e Quintino Bocaiúva. Não teve fôlego diante da máquina eleitoral de Paulino de Sousa, porém parcialmente perante a Coroa. O imperador, ausente desde meados daquele ano para tratamento de saúde na Europa, cedera a regência à princesa Isabel, que interrompeu então a novena e indicou o abolicionista moderado Pereira da Silva para a cadeira senatorial, quando Cotegipe havia-a destinado a Alfredo Chaves, o ex-ministro da Guerra. Novamente derrotado, o gabinete Cotegipe não suportou a abertura do ano legislativo e caiu em março de 1888.
Subitamente convertida ao abolicionismo, a regente, que havia defendido até o último suspiro o barão de Cotegipe, convocou João Alfredo Correia de Oliveira à presidência do Conselho de Ministros. Campinas e Itu andavam em polvorosa com assaltos antiescravistas, e os últimos fazendeiros paulistas emperrados no cativeiro haviam feito sua conversão. Temendo pela popularidade de um Terceiro Reinado que jamais viria a lume, a princesa fez de João Alfredo sua maior aposta. O principal nome da antiga ala moça do ministério do Visconde do Rio Branco havia amadurecido. Ex-presidente das províncias do Pará e de São Paulo, ministro, conselheiro de Estado, senador e agora chefe de gabinete, João Alfredo era um conservador heterodoxo muito moderado e de largo trânsito político. Trazia, portanto, boas credenciais para editar a lei que findaria a escravidão no Brasil.
Dadas as circunstâncias abolicionistas daquele início do ano de 1888, não pareceu a João Alfredo que a aprovação da lei seria especialmente tortuosa no Legislativo. As agruras do trâmite estariam indefectivelmente no Banco do Brasil, cuja carteira hipotecária ainda apresentava créditos não ressarcidos pelos fazendeiros. Os nervos da liberdade estavam no banco, também porque o impacto financeiro de uma abolição sem reparações aos escravocratas redundaria em saques, inclusive daqueles, apavorados, que emprestavam no mercado informal do crédito hipotecário. Tudo somado, a consequência seria uma desvalorização das ações do Banco do Brasil e a queda de seus ativos.
Seria um efeito grave em duas medidas. Os fazendeiros escravocratas do Vale do Paraíba perderiam tanto em cativos quanto em aplicações financeiras, o que não sugeria um endosso ao Terceiro Reinado. Além disso, o principal banco do Império não apenas refrearia qualquer empréstimo ao setor produtivo, como teria sua margem financeira constringida, na percepção de João Alfredo e da imprensa perversamente alarmista, a ponto de limitar sua participação no mercado de títulos da dívida pública. Era um mau presságio para a solvência do Estado, em momento tão dramático quanto aquele.
O primeiro impulso de João Alfredo, portanto, foi bater às portas do Banco do Brasil, que trocou o consentimento à Abolição por uma imediata injeção de liquidez em seus cofres. O gabinete endossou a condicionalidade, adotando uma estratégia de três frentes. João Alfredo procurou a casa bancária britânica N. M. Rothschild & Sons, em primeira instância, para contrair um crédito de 6 milhões de libras – superior àquele de 1865, quando estourou a guerra contra o Paraguai –, que transformaria em novos auxílios à lavoura por meio do sistema bancário. Nessas condições, que deveriam ser imediatamente redobradas logo após a Abolição, o Banco do Brasil aceitaria o término do cativeiro. João Alfredo concordou, porque os Rothschild também aquiesceram: indenizado, o banco socorreria a lavoura e, por um lado, também recolheria juros da compra de títulos, o que, por outro, autorizaria o Império a rolar a dívida externa – igualmente a juros.
Jurada, concertada e na prática indenizada, quando a letra da lei previa o oposto, a Abolição finalmente ocorreu em 13 de maio de 1888. Em tão somente cinco dias, a Câmara e o Senado aprovaram a lei, em que pese a resistência dos últimos emperrados, tal qual Cotegipe e Paulino de Sousa, e de alguns poucos da oposição partidária, como João Lins Vieira Cansanção, o visconde de Sinimbu, e José Antônio Saraiva, que desejavam uma abolição pautada pelos liberais. Talvez ainda não tivessem atinado para o fato que todas as medidas emancipacionistas desde o término do tráfico em 1850 haviam sido editadas por conservadores, no intuito assim desejado pelo imperador de melhor guiar a urgência reformista. Quando promulgada a Lei Áurea, a princesa Isabel colheu majoritariamente os louvores que mal se prestavam a um desempenho tão ancilar, inclusive porque a libertação dos 700 mil cativos restantes em 1888 – eram pouco mais de 1, 5 milhão em 1872 – foi mais obra do movimento abolicionista e dos acertos com o Banco do Brasil do que de uma canetada imperial.
Seja como for, a Corte, que já andava em festa desde o 8 de maio, quando o projeto foi introduzido na Câmara, foi capturada por um delírio popular sequer visto nas coroações imperiais. O júbilo começou com uma missa solene em São Cristóvão, à qual compareceram, naturalmente, a princesa Isabel e o Conde d’Eu, muito satisfeito com a realização de um clamor que ele vinha manifestando desde o término da guerra contra o Paraguai. O Conde também parecia regozijar-se com uma adulação popular à Coroa que muito contribuiria, talvez, para desfazer a pecha de francês e surdo que a imprensa republicana lhe havia impingido. Um dia depois, organizaram-se corridas no Derby Club, passeios gratuitos na Estrada de Ferro Dom Pedro II e espetáculos em quase todos os teatros. As celebrações prosseguiram até o 20 de maio, como num carnaval fora de época, em que se contavam às centenas os embriagados atirados nas calçadas: eram procissões e bandas de música que desfilavam nas ruas, e regatas que percorreram a enseada de Botafogo. Por fim, os festejos culminaram com um desfile militar, para o qual concorreram os mesmos comerciantes e caixeiros que tanto haviam enaltecido o abolicionismo castrense.
Concluída a primeira etapa da Abolição, restava ao governo entabular as manobras financeiras prometidas ao setor bancário. A segunda fase, então, efetivou-se por um acordo mediante o qual o gabinete injetaria o equivalente a quase 20% do orçamento imperial nos cofres do Banco do Brasil e, em proporção irrisória, no Banco da Bahia. Pelo mesmo contrato, João Alfredo forneceria metade dos fundos isenta de juros, e os bancos, em contrapartida, poderiam cobrar dos fazendeiros até 6% ao ano. Indenizadas as forças financeiras da situação, consoante a estratégia do gabinete, a terceira etapa ampararia a oposição… ao regime. João Alfredo constituiu uma comissão bipartidária, liderada pelo visconde do Cruzeiro, um conservador e ex-diretor do Banco do Brasil, e pelo visconde de Ouro Preto, um liberal de tendências monetárias heterodoxas. O objetivo declarado era restabelecer os bancos de emissão, o que, na aposta de João Alfredo, serenaria o apetite paulista por capitais e avolumaria a moeda em circulação, dinamizando os negócios urbanos atinentes à classe média e, sobremodo, fornecendo a liquidez necessária para arcar com os salários dos libertos.
Sensata no plano das ambições, a estratégia de João Alfredo frustrou a todos no das realizações. Até 1889, disponibilizou “apenas” 1/6 do previsto, especialmente para o Banco do Brasil: uma esmola aos olhos de seu novo presidente, o Barão de Cotegipe, que refreou novos empréstimos, inclusive ao um Oeste Paulista em plena marcha imigrantista. Por sua parte, Jerônimo José Teixeira Júnior, o Visconde do Cruzeiro, cuja matriz teórica era a do conservador Joaquim José Rodrigues Torres, o Visconde de Itaboraí, limitou a emissão bancária. Era o avesso do que apetecia a Ouro Preto, muito mais próximo do pensamento econômico do liberal Bernardo de Sousa Franco.
Sem muita surpresa, a província de São Paulo ergueu-se enfurecida contra uma ortodoxia monetária que tinha no combate à inflação uma meta pouco alusiva ao notório influxo de investimentos externos, sobremaneira nas ferrovias e nos serviços públicos urbanos, e à consequente quimera, realizada na virada de ano, do câmbio no patamar dos 27 pence. Em outras palavras, haveria largo espaço para ampliar a criação monetária e, portanto, o crédito à lavoura verdadeiramente produtiva, a paulista. Ressentidos, os políticos do PRP buscaram as alternativas possíveis e limitadas pelo tamanho do orçamento provincial. Continuaram pagando de seu próprio bolso o translado de novos imigrantes e tomando os empréstimos que, igualmente, suas carteiras autorizavam. Havia sido o caso em 1888, quando São Paulo encontrou num consórcio constituído pelo London and Brazilian Bank, o Banco de Crédito Real de Mayrink e o Banco Internacional, do Visconde de Figueiredo, um balão de oxigênio inchado de 700 mil libras.
No fim daquelas contas, João Alfredo não resistiu. D. Pedro II, de retorno ao Império, procurou desesperadamente um Rio Branco de melhor estrela para a nova urgência reformista. Não o encontrou em Cotegipe, que após uma síncope cardíaca em fevereiro de 1889 foi dar no cemitério de São João Batista, e tampouco no irascível Paulino de Sousa, que não abriria mão nem de um níquel sequer.
Numa aposta pouco usual para um imperador que vislumbrava oportunamente nos conservadores os melhores reformistas, Saraiva declinou o magnânimo convite, porque a generosidade, em seu entendimento, deveria ser para com as províncias. Ouro Preto declarou-se, de outro modo, absolutamente hostil ao federalismo e prometeu, em primeira instância, a reforma financeira que João Alfredo não concretizara. Trazia boas intenções para o campo bancário, e talvez seus êxitos como ministro da Marinha durante a guerra contra o Paraguai pudessem apaziguar a espada turbulenta.
O objetivo central de seu reformismo, que se revelaria rapidamente tão frustrado quanto o de Rio Branco, era reabilitar a popularidade da Coroa. Antecipando o pior, o Conde d’Eu vinha agindo tardiamente assim desde março de 1889, quando empreendeu viagem à província de São Paulo, levando consigo médicos e medicamentos destinados às áreas assoladas pela febre amarela. Em junho, ampliou a jornada, que duraria três meses, para alcançar as províncias do Norte do país. Acompanhou-o ninguém outro do que o advogado republicano Silva Jardim, que pretendia solapar a campanha monarquista do príncipe consorte. Um ano e pouco antes, em fevereiro de 1888, Silva Jardim havia conclamado pela execução do Conde, e tudo aquilo pareceria resultar em problema, o que efetivamente ocorreu durante a parada em Salvador. Lá, após uma fria recepção do Conde d’Eu, a Guarda Negra quase ceifou a vida de Silva Jardim à altura da ladeira do Taboão.
A Guarda Negra, formada em setembro de 1888 e depressa nacionalizada, era uma arregimentação de libertos operando talvez menos em gratidão à princesa Isabel do que como repulsa a uma reescravização julgada certa com o advento de uma República de fazendeiros. Trazia em seu âmago os nomes de João Clapp e José do Patrocínio e, sobretudo, confirmava a racialização das classes em curso com a diversificação da malha societária oriunda da abolição do tráfico de escravos. Era a manifestação resistente e armada de uma consciência de classe e partidária negra, que ratificava a superposição entre a cor e a condição socioeconômica.
Havia razão estrutural para tanto. Embora Joaquim Nabuco e sobremaneira André Rebouças tivessem proposto a integração social do ex-escravo na sociedade de classes, nomeadamente por meio, nos termos de Rebouças, de uma democracia rural que significasse em primeiro lugar a nacionalização do solo, o governo João Alfredo, submerso nas tramas bancárias, havia ignorado a condição dos libertos. Os homens do gabinete compreenderam que a eventual divisão de terras improdutivas em benefício de ex-escravos redundaria em nova concentração fundiária, já que os libertos tenderiam a vender aquilo que lhes fosse dado. Também deram de ombros aos projetos para o translado dos libertos a terras públicas no Mato Grosso, no que seria uma política de povoamento que dificilmente seria aceita pelos negros supostamente interessados, se consideradas as distâncias dos principais centros consumidores.
Descartados rapidamente, os projetos para estabelecer uma quimérica democracia rural cederam lugar àqueles voltados para a incorporação do negro no mundo urbano. Pensou-se num microscópico estado de bem-estar social para os ex-cativos, que garantisse uma espécie de salário inicial de inserção urbana, o que tampouco vingou. No máximo, reabilitou-se um velho projeto para constituir uma caderneta com registro policial de criados e servidores – nada mais do que uma ratificação das inquietações do governo com as desordens de um florescente e suposto proletariado industrial. Embora a ideia da caderneta tenha ao fim sido abandonada, a tutela dos libertos realizou-se sobretudo pelo controle dos candomblés, dos sambas e das capoeiras nas cidades. Ou pelo controle dos renovados quilombos volantes que se formaram no campo como alternativa à recondução dos libertos às fazendas antes escravistas.
De volta à vaca fria, não era exatamente no campesinato negro e tampouco na assim dita malta urbana de capoeiras da Guarda Negra que Ouro Preto depositava suas expectativas de conduzir serenamente a passagem para o eventual Terceiro Reinado. A tal ponto, inclusive, a jornada do Conde d’Eu revelou-se contraproducente, que os jornais republicanos – tais como O Mequetrefe, O País e A Província de São Paulo – fizeram do príncipe consorte uma caricatura de agiota dos cortiços. Isso em meio à comoção com o atentado contra o imperador em julho de 1889, cometido por um jovem caixeiro desempregado. Ágil num momento emergencial, também porque a maioria conservadora impingiu-lhe o voto de desconfiança, Ouro Preto solicitou a um concordado imperador a dissolução da Câmara. A nova legislatura lidaria imediatamente com um leque de reformas voltado, desigualmente na largura das concessões, para a classe média e os militares; para os paulistas e os cafezais; e para o velho baronato fluminense e os bancos.
De forma mais exígua para o primeiro bloco, Ouro Preto prometeu o voto universal para os alfabetizados, o fim do mandato vitalício para o Senado e, muito em particular, a promoção de estabelecimentos de crédito destinados ao comércio e à indústria, assim como a edição de medidas protecionistas para a alfândega. Especialmente para o oficialato, Ouro Preto ofereceu títulos de nobreza aos marechais-de-campo e a Ordem da Rosa a cada brigadeiro. Vistoso talvez, era pouco perto do que efetiva e indiretamente concedeu aos paulistas – e pó de traque em comparação ao oferecido aos bancos. Tal qual João Alfredo, porém com garbo de Visconde, Ouro Preto telegrafou ao N. M. Rothschild & Sons, de modo a preparar o que seria o mais espetacular empréstimo nacional da história do Império. Racionalizando o passado, dramatizando o presente e subestimando o futuro, Ouro Preto contraiu mais do que o equivalente à receita imperial a juros de 4%, inferiores à conversão de títulos a 5% em 1886, porém com pagamento em libras esterlinas. Necessariamente, então, soergueu quase 20 milhões de libras com os Rothschild, no objetivo declarado de converter a dívida externa em interna, para ao fim completar os auxílios de João Alfredo à lavoura e aos bancos.
A operação, como de hábito, seria realizada por meio do Banco do Brasil, que comprou e lançou os novos títulos no mercado. Num clima de total euforia financeira, a demanda foi quatro vezes maior do que a oferta, resultando numa margem redobrada de lucro bancário. Ou triplicada, porque Ouro Preto disponibilizou instantaneamente os recursos do empréstimo nacional, isentos de juros, mediante acordos com dezessete instituições financeiras que poderiam emprestar à lavoura a taxas de 6%. Novamente e sempre, o Banco do Brasil saiu-se largamente favorecido de todo o arranjo, suas ações e seus ativos dispararam, e a indenização pelo Treze de Maio pareceu completa. O valor de mercado dos 700 mil escravos existentes no Império às vésperas da Abolição coincidiu com o valor contábil do empréstimo – e com o custo do que haveria sido uma indenização direta.
Calculando matar dois coelhos de uma cajadada só, Ouro Preto assumiu que o Banco do Brasil e os cafeicultores do Vale do Paraíba que nele investiam se dariam por satisfeitos, ao passo que, por seleção natural, as fazendas paulistas seriam as primeiras beneficiadas. Para azeitar o crédito rápido a São Paulo, no entanto, seria necessário romper com a morosidade do Banco do Brasil, hesitante em tomar a terra sem escravaria como garantia de empréstimo hipotecário. Ouro Preto procurou rapidamente o dinheiro novo, mais inclinado ao risco, e assinou com Mayrink uma série de acordos para a concessão de empréstimos garantidos com terras, equipamentos agrícolas e safras futuras. Tratava-se de um muito especial interesse paulista: o próprio Antônio Prado acabava de formular um novo projeto de lei de terras (não aprovado no tempo do Império), que recomendava a regularização das novas posses quando cultivadas e, ainda, o aumento do preço das terras públicas, para evitar que o imigrante se tornasse proprietário e para que assim fosse garantida a mão de obra produtiva à terra ainda não juridicamente perfeita.
A maior aposta para o crédito rápido, no entanto, estava no visconde de Figueiredo. Assumindo que o câmbio se manteria no limiar dos 27 pence, o que seria uma forma de adesão ao padrão-ouro, o gabinete autorizou a formação de novos bancos de emissão com lastro metálico. Constituíram-se provisoriamente nada menos do que catorze, mas apenas o Banco Nacional do Brasil – uma fusão do Banco Internacional, do Visconde de Figueiredo, agora com a Banque de Paris et des Pays-Bas como sócia – efetivamente criou moeda. O novo banco de Figueiredo recebeu autorização para emitir três vezes o seu capital nominal, o que era uma soma superior a todo o papel-moeda em circulação. De forma mais eloquente ainda, Ouro Preto concedeu ao Banco Nacional do Brasil o prazo de cinco anos para substituir todas as notas do Tesouro por suas próprias conversíveis em ouro, amparadas por emissões de papéis públicos e pelo câmbio – caso cedesse, automaticamente o banco poderia interromper a conversibilidade. Em outros termos, Ouro Preto concedeu ao Banco Nacional do Brasil o monopólio sobre a emissão de moeda, salvaguardando-o de crises cambiais, visto que seria o credor em último recurso, nos perfeitos moldes do Bank of England ou do que fora, até 1866, o Banco do Brasil.
Em que pesem as boas intenções, o reformismo sobretudo financeiro de Ouro Preto foi um desastre. O novo banco da ordem incomodou imensamente o Banco do Brasil e seus investidores, insuficientemente satisfeitos com a indenização indireta pelo fim do cativeiro, dado que preteridos no que julgavam seu papel histórico na formação monetária do Império. Por sua parte, São Paulo seguiu à míngua de capitais. Apenas dois entre os dezessete bancos contemplados por Ouro Preto para agenciar os auxílios à lavoura eram paulistas, e receberam parcelas muito menores de liquidez do que os predominantes bancos da Corte. Pior, a vultosa disponibilidade de moeda foi sobremodo dar na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, e não nos cafezais do Oeste Paulista. A capitalização na praça do Rio de Janeiro alcançou valores assombrosos: o equivalente à dívida pública. Era o prenúncio de uma próxima crise financeira, ratificado pelo baixo investimento produtivo. Os bancos congraçaram a maior parte do capital especulativo, cuja origem primeira, pelo menos no entender dos políticos do PRP, era pública.
Para os homens ligados a Campos Salles, o contrassenso era frustrante. São Paulo era a província que mais contribuía com a receita do Império, à razão de 17%: duas vezes o tamanho da contribuição da província do Rio de Janeiro e três vezes o de Minas Gerais. Fato grave, porque na última legislatura ainda eram doze deputados representando o Rio de Janeiro, e vinte vozes de Minas Gerais. São Paulo tinha apenas nove. Em outras palavras, embora menos representados, eram os paulistas que em última instância mais arcariam, uma vez que a dívida pública sobejamente ampliada correria décadas a fio, com um programa de auxílios à lavoura que socorreu um sistema bancário pouco afeito a voltar suas ambições para São Paulo. Numa graçola talvez irônica e vingativa, característica dos cúmplices de longa data, em 12 de novembro de 1889, o paulista Francisco Glicério, que havia partido para o Rio de Janeiro à procura dos arremates finais à agitação republicana, enviou à primeira vista insuspeito um telegrama a Campos Salles, que aguardava, ansioso em São Paulo, as novas da Corte. “Banco aceita transação”, dizia a nota, “mande notícia do penhor agrícola.” O risco era mínimo. O governo, inquieto com a possibilidade de uma insurgência republicana, não desconfiaria de nada: era apenas mais um paulista pedindo dinheiro ao Rio de Janeiro. Pela chave de decodificação, não obstante, o teor das palavras era inteiramente outro. Banco significava Exército; transação, revolução; e penhor agrícola, o 10o Regimento de Cavalaria. Assim, sorrindo, Campos Salles leu: Exército aceita revolução; mande notícia do 10o Regimento de Cavalaria (estacionado em São Paulo).
Enquanto a Corte despertava ainda meio mareada do baile da Ilha Fiscal, a contradição nodal entre o capital produtivo e o financeiro já tinha encontrado seu ponto de síntese nas Forças Armadas. A mocidade militar da Praia Vermelha, apadrinhada pelos oficiais da Artilharia, havia assinado os afamados pactos de sangue. “O bacharelado que monopoliza o governo da nação”, disseram, indenizara os bancos pela Abolição, sem rastro de um direcionamento orçamentário para a indústria – o que era o desejo dos militares. De forma correlata, a notícia de que os bancos do Visconde de Ouro Preto o ajudaram a eleger os novos deputados nas eleições de agosto de 1889 apenas atestava a retórica da corrupção pública tão copiosamente mobilizada pelos militares desde o término da guerra contra o Paraguai.
Vislumbrado como liderança inconteste das Forças Armadas, no mesmo instante que Campos Salles recebeu o telegrama de Glicério, Deodoro deu o sinal verde: “Queria acompanhar o caixão do imperador, que está idoso e a quem respeito muito. Mas o velho já não regula bem, portanto, já que não há outro remédio, leve à breca a monarquia. Nada mais temos a esperar dela. Que venha, pois, a República.” O clima era efetivamente em tudo golpista. Desde finais de outubro, os confrontos entre os batalhões do Exército e a polícia eram recorrentes em todas as províncias, o que levara Ouro Preto a avolumar o contingente da Guarda Nacional em detrimento daquele do Exército. Em resposta, por ocasião de outro banquete realizado em benefício dos oficiais da marinha chilena em visita ao Rio de Janeiro, a mocidade militar reivindicou explicitamente a República. O Clube Militar engrossou o coro, realizando uma série de reuniões promovidas por Deodoro. Uma semana depois, na madrugada de 15 de novembro de 1889, as tropas marcharam em direção à presidência do Conselho de Ministros. Ouro Preto, desesperado, encastelou-se no quartel-general, nas vizinhanças do Campo de Santana. Tentou reagir, porém encontrou no ajudante-general do Exército, que supostamente deveria blindar o ministério, o que julgou a maior traição do Império.
Compelido por Ouro Preto a atirar, tal qual fizera em combate no Paraguai, agora contra as forças rebeldes de Deodoro, Floriano Peixoto redarguiu que, lá, no Paraguai, “as bocas de fogo eram inimigas”. E prosseguiu, apontando para a janela: “Aquelas que Vossa Excelência ali está vendo são brasileiras; e eu sou, antes de tudo, soldado da nação brasileira. Estas estrelas que trago nos punhos foram ganhadas nos campos de batalha, e por serviços prestados à nação, e não aos ministros.” Nesse ínterim, arribou o Barão de Ladário, então ministro da Marinha, que atirou contra um oficial ao tentar atingir Deodoro. Recebeu em troca um revide que quase lhe custou a vida. Atônito, Ouro Preto voltou então seu peso contra a parede e deslizou, feito o Império, para o rés do chão.