Na terça-feira, 18 de agosto de 2015, a estudante Maria Leão de Aquino Silveira foi até sua faculdade – o IFCS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, localizado no Centro do Rio de Janeiro – por uma razão banal. Prestes a se formar em antropologia aos 22 anos, ela faria uma prova de mestrado dali a poucos dias e, para ser aprovada, precisava de um documento comprovando que já tinha completado 75% da graduação. A universidade, naquela época, estava em greve. Para atender a alunos como Leão, os professores criaram um regime de plantão na coordenação do IFCS, onde eram expedidos documentos daquele tipo. Um procedimento como esse, corriqueiro, não costumava levar mais do que cinco minutos. Mas, para Leão, virou um pesadelo que a acompanhou durante cinco anos.
Quem estava de plantão naquela tarde era Luiz Eduardo Pereira da Motta, professor e então coordenador do curso de Ciências Sociais. Ele nunca tinha dado aula para Leão, mas os dois já se conheciam superficialmente. O avô dela, Rubim Santos Leão de Aquino, fora professor de Motta quando ele ainda estava na escola, e Leão já o havia encontrado em eventos de família. Além disso, ela era uma militante conhecida na faculdade e chegou a ser eleita representante do DCE, o Diretório Central dos Estudantes. Bissexual, Leão tinha como principal bandeira o combate às opressões contra minorias dentro da universidade.
Em 2013, Leão foi procurada por uma colega que queria denunciar um comportamento inadequado de Motta. Ela contou que o professor havia gritado com ela e outros estudantes em sala de aula durante uma discussão política. Os alunos decidiram então convocar uma reunião do Centro Acadêmico (CA) para tratar do assunto. No encontro, pipocaram acusações semelhantes contra Motta. Leão e outras lideranças do CA tomaram o lado dos estudantes, que resolveram levar aquelas denúncias até a chefia do departamento de Ciência Política, onde o professor trabalhava. Depois de algumas reuniões conciliatórias, o caso não foi adiante, mas bastou para criar uma antipatia mútua entre Motta e Leão.
Dois anos depois, naquela tarde de 2015, os dois se viram frente a frente. Ela conta que o professor, assim que a reconheceu, deu início a uma sessão de insultos, ironizando o fato de que agora ela precisava dele. Falando em voz alta, Motta folheou seu boletim com desdém, disse que suas notas eram ruins e que o mestrado que ela almejava não aceitava “aluno vagabundo”. Deu a entender que poderia prejudicá-la, e que ela não deveria cultivar inimizades no meio acadêmico. Por fim, debochou de seu sobrenome. “Ele me perguntou se eu já tinha assistido ao Discovery Channel, e disse que era contraditório o fato de eu, uma feminista, usar o sobrenome Leão – ‘o animal mais machista da savana’. Ele falou que eu parecia mais uma hiena, porque ‘as hienas fêmeas fazem sexo entre si e são covardes’.”
Não havia mais ninguém na sala da coordenação, e os dois estavam separados por uma mesa. Nervosa, Leão não reagiu. Ela lembra que só conseguia olhar para as próprias mãos, e seu corpo tremia. O professor, segundo ela, tripudiou disso também, dizendo que não gostava de falar com gente de cabeça baixa. O encontro durou cerca de vinte minutos, até que finalmente Motta imprimiu e assinou o documento de que a aluna precisava. “Naquela hora eu só queria que o chão me engolisse, queria desaparecer dali”, lembra Leão.
Depois de sair da sala, ela se encontrou com sua amiga Ana Carolina Maia, que também tinha ido ao IFCS buscar um documento naquele dia. Ao sair pela porta da faculdade, Leão começou a chorar, sua pressão caiu e ela precisou ser amparada para não cair no chão. A amiga tentou acalmá-la, mas Leão estava atônita, no meio de uma crise de estresse e ansiedade. As duas foram embora juntas. Quando passavam pelo Largo da Carioca, Leão começou a caminhar no asfalto, entre os carros, mesmo sabendo que um ônibus vinha em sua direção. Por pouco, a amiga conseguiu puxá-la a tempo de evitar o atropelamento.
A primeira vez que Leão falou publicamente sobre esse episódio foi no final de 2015. Sentiu-se encorajada pela hashtag #MeuAmigoSecreto, que mulheres passaram a usar nas redes sociais para relatar casos de assédio e machismo, geralmente sem identificar os acusados para não correrem risco de sofrer retaliações. No Facebook, ela resolveu contar a situação que tinha vivido meses antes, no IFCS. Embora não tenha citado o nome do professor, pela circunstância algumas colegas entenderam de quem se tratava. Não era à toa: várias outras estudantes também relataram situações parecidas envolvendo Motta.
Poucos meses depois, o Coletivo de Mulheres do IFCS convidou Leão a participar de uma denúncia coletiva contra o professor. O grupo era orientado pela advogada Cecilia Vieira de Melo, especializada em direitos humanos. Foram agrupados oito relatos anônimos que, segundo o Coletivo, mostravam o “padrão de comportamento agressivo, predatório e danoso” de Motta. Um deles diz que o professor, após se desentender com algumas alunas, comentou em sala de aula: “isso é falta de pica”. Outra estudante relatou que, no pátio do IFCS, Motta olhou para ela de cima a baixo e comentou sobre seu corpo: “tá fatiada”.
O documento foi entregue à diretoria do IFCS em julho de 2016. Em setembro, a faculdade abriu uma sindicância investigativa, formada por três professores de diferentes campi. Para que o processo fosse levado adiante, porém, as denunciantes precisavam se identificar e comparecer às oitivas na presença do professor. Com medo de se expor e, com isso, pôr em risco sua vida acadêmica, a maior parte delas não quis seguir adiante. “Era um rito muito violador para elas”, lembra Melo. Além disso, quase nenhuma das alunas tinha prova ou testemunha para comprovar os relatos de assédio. A única exceção era Maria Leão.
Quatro dias após ter se encontrado com Leão, Motta contou o episódio em uma conversa de Facebook com Yasmim Motta, outra estudante do IFCS. “Por sinal a feminista de nome contraditório foi bater na minha sala semana passada”, disse o professor. “Quem se diz feminista e ostenta o nome do animal mais machista do planeta é no mínimo umapiada [sic] (…) por sinal disse isso a lea [sic] na segunda” [na verdade, foi numa terça-feira]. E emendou: “Na cara a cara o nome Leão sumiu e emergiu o de… Hiena.”
Por acaso, Yasmim Motta era amiga de Leão, e decidiu ceder os prints da conversa como prova contra o professor. Com isso em mãos, o advogado Demian Guedes – que assumiu o caso como um trabalho pro bono, a pedido de Cecilia Melo – pediu à sindicância que fosse aberto um processo disciplinar contra Motta, tendo como objeto apenas a denúncia feita por Leão. Em janeiro de 2017, ela e Motta foram finalmente ouvidos pela faculdade.
“Foi a audiência mais difícil que fiz até hoje”, diz Guedes. Sentada em uma sala do IFCS, de frente para o professor, Leão chorou durante todo o depoimento. Também testemunharam a amiga Ana Carolina Maia, que esteve com Leão no IFCS, e Rayanna Souza, estudante que foi atendida por Motta assim que Leão saiu da sala, naquela tarde de 2015. “Quando entrei na sala da coordenação, o Motta perguntou se eu tinha ouvido a conversa dele com a Maria. Eu disse que não, e aí ele começou a falar que ela era maluca, histérica”, lembra Souza. “Ele zombou que a Maria sempre acusava os professores de assédio, mas que ninguém iria querer assediar uma pessoa ‘feia e burra’ como ela.”
Motta negou as acusações e disse que fez um “atendimento totalmente normal” com Leão. Confrontado com os prints do Facebook, disse que só usou a palavra “hiena” na conversa com a outra aluna, “em clima de raiva”. Três alunos do IFCS depuseram em favor do professor. Afirmaram que, desde 2013, Leão boicotava as aulas de Motta e que havia um conflito prévio entre os dois.
Em outubro de 2017, a sindicância virou um processo disciplinar, cujo veredito só foi dado em maio de 2018. O trio de professores entendeu que Leão, por conta dos acontecimentos de 2013, era “inimiga notória” do professor, e que seu relato não podia ser provado. A banca considerou, porém, que Motta infringiu o Estatuto do Servidor ao difamar a aluna em conversa com outra estudante. Por isso, ele foi punido com a pena mais branda de todas: a advertência. Essa punição, no entanto, prescreve 180 dias após o fato ter sido comunicado ao órgão público. Àquela altura, já haviam se passado 468 dias desde que a denúncia fora protocolada (o tempo deixa de ser contabilizado no momento em que o processo disciplinar é aberto). Ou seja: punido da maneira mais branda possível, Motta sequer foi punido.
O professor Motta não quis falar com a piauí. Por e-mail, um de seus advogados, Mauricio Mota, afirmou apenas que “a pena aplicada foi proporcional, levando-se em conta que o dito professor nunca tinha tido qualquer ocorrência em sua atividade de professor que desabonasse sua conduta, expressa em sua ficha funcional”.
Sem resposta satisfatória dentro dos muros da universidade, Maria Leão levou o caso à Justiça Federal em julho de 2018. Processou Motta e a UFRJ, pedindo uma indenização de 30 mil reais por danos morais. Em uma das primeiras decisões do processo, o juiz substituto Marcel Corrêa excluiu o professor do banco dos réus, por entender que a responsabilidade nesse caso era apenas da universidade. De acordo com a Constituição, um órgão público deve responder pelos danos causados por seus servidores. A instituição pode ou não entrar com uma ação de regresso, fazendo com que o funcionário seja obrigado a reembolsar o custo da indenização.
Em maio de 2019, a UFRJ foi condenada a pagar 5 mil reais de indenização pelo “transtorno moral” causado a Maria Leão. A defesa da aluna entrou com recurso, que foi atendido parcialmente pelo juiz Luis Eduardo Cerqueira, ampliando a indenização para 10 mil reais. Ele entendeu que houve um ato ilícito, com condutas “em muito similares àquelas descritas como sendo assédio moral”, e que isso não depende da comprovação do diálogo entre Motta e Leão, já que o próprio professor confirmou o ocorrido por meio da conversa de Facebook. O juiz ressaltou que esse tipo de comportamento, vindo de uma pessoa em posição de poder, é “deplorável”.
Assim que o valor foi pago, arquivou-se o processo, em maio de 2020. A sentença foi toda baseada nas provas e nos testemunhos do processo disciplinar da faculdade. “Essa indenização foi uma migalha, mas uma migalha importante. Ver um juiz reconhecer não apenas que eu falei a verdade, mas que o que tinha acontecido comigo era absurdo, foi uma reparação. Foi quando comecei, de fato, a me curar desse episódio”, afirma Leão.
Em setembro do ano passado, o advogado Demian Guedes enviou uma carta à UFRJ sugerindo que a universidade movesse uma ação de regresso contra o professor Motta, pedindo ressarcimento. A reitoria nunca respondeu à carta. Luiz Eduardo Motta continua sendo professor associado do IFCS, sem máculas no seu currículo. Maria Leão, que hoje faz doutorado no Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj, continua com medo de passar no Largo do São Francisco, no Centro do Rio, e se deparar com Motta.
Em nota enviada à piauí nesta terça-feira (18), a UFRJ não explicou a lentidão com que o caso Maria Leão foi analisado entre 2016 e 2018, mas afirmou que “tomará imediatamente as medidas cabíveis para que a Universidade receba o ressarcimento” de Motta. A universidade também disse que “repudia veementemente o assédio em suas múltiplas formas, seja ele moral, sexual, virtual ou psicológico”. “Manifestamos solidariedade à Maria Leão e afirmamos que não compactuamos com a atitude por não se compatibilizar em nada com o ethos da UFRJ”, disse a assessoria da universidade.