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câncer de mama é raro entre as mulheres indígenas brasileiras, e um estudo recente ajuda a entender por quê. Idealizado pelo oncologista mato-grossense Guilherme Bezerra de Castro, o trabalho foi feito em parceria com cientistas dos Estados Unidos e de Portugal e publicado na revista científica Scientific Reports. Os pesquisadores investigaram o DNA de mulheres Xavante e apontaram fatores que podem estar associados com a baixa incidência de tumores de mama nessa população.
A origem do estudo remonta a trinta anos atrás, quando Castro estava assistindo a uma conferência de Jose Russo, um patologista norte-americano nascido na Argentina. Russo começou sua fala dizendo que o câncer de mama é uma doença que afeta todas as populações do mundo. A fala do palestrante deixou Castro encasquetado. Ele tinha trabalhado por dez anos num posto de saúde de Cuiabá no qual atendia a muitos pacientes indígenas. Tratou tumores de pulmão, laringe, estômago e muitos outros tipos. “Tinha de tudo, menos câncer de mama”, disse o médico à piauí.
Entender o que estava por trás dessa constatação virou uma obsessão para Castro. Relatos de oncologistas com quem ele se correspondia corroboravam sua observação empírica: em lugar algum ele conseguia encontrar um caso de tumor de mama em mulheres indígenas. De fato, um estudo de 2009 que investigou a doença entre as mulheres Kaingáng não identificou qualquer ocorrência desse tipo de câncer.
Não é que o tumor fosse totalmente ausente entre as indígenas, mas elas de fato pareciam estar mais protegidas do que as mulheres de outros grupos populacionais. Um estudo de 2015 avaliou a mortalidade por câncer de mama em indígenas e mostrou que ela era significativamente menor do que a observada em mulheres brancas. Ainda assim, faltava confirmar – e explicar – a baixa prevalência. Podia se tratar de fato de uma proteção biológica, mas os casos raros talvez fossem explicados pela subnotificação da doença nesse grupo populacional.
Castro sabia que não encontraria uma resposta satisfatória se não investigasse o DNA de mulheres indígenas, já que o câncer é uma doença em que os fatores genéticos desempenham papel importante. Decidiu colocar sua hipótese à prova com mulheres Xavante que vivem na Terra Indígena Sangradouro, que fica a 270 km de Cuiabá. O oncologista criou um centro de pesquisa sem fins lucrativos – o Molecular Cancer Research Center – e custeou a coleta de material biológico com recursos próprios. Ele estima ter investido cerca de 450 mil dólares (2,3 milhões de reais) no projeto, recursos que conseguiu ao longo do período em que foi sócio de um grande hospital de Cuiabá. “Enquanto outros colegas preferiam ter um barco ou avião, eu decidi financiar meu projeto de pesquisa”, afirmou o oncologista, que mora em Londres há sete anos.
Um posto para coleta de sangue foi montado na terra indígena, e o pesquisador colheu o sangue de 179 mulheres em 2001 e 2002 (dois vídeos disponíveis na internet documentam o processo). Além disso, Castro aplicou um questionário para caracterizar fatores comportamentais que pudessem estar associados à ocorrência do câncer de mama. O estudo foi feito com a aprovação da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa), e contou com o consentimento por escrito das voluntárias recrutadas.
Com as amostras em mãos, Castro viu-se diante de um paradoxo: “não conseguíamos entender como estudar o câncer a partir da sua ausência”, afirmou. O oncologista buscou parceiros que pudessem ajudá-lo a analisar o material. Com a colaboração de colegas de Portugal, descobriu que, nas mulheres Xavante, há uma atividade particularmente grande de um gene que corrige danos no DNA causados por radicais livres presentes na célula, o que poderia estar por trás da proteção contra o câncer. A descoberta era auspiciosa, mas não bastava para explicar a ausência do tumor de mama entre as indígenas.
O pulo do gato veio em 2018, quando Jose Russo – o patologista que havia despertado a curiosidade de Castro pelo tema numa palestra nos anos 1990 – convidou o brasileiro a analisar o material genético no Fox Chase Cancer Center. Castro embarcou para a Filadélfia levando os dados do genoma de catorze indígenas que ele havia mandado sequenciar. A ideia era investigar seu DNA usando o chamado escore de risco poligênico, um método recém-desenvolvido que poderia determinar a probabilidade de elas contraírem o câncer de mama.
“O escore de risco poligênico tenta estimar o risco genético de uma pessoa desenvolver câncer”, explicou à piauí a médica geneticista Marina Cormedi, que trabalha com essa ferramenta em sua pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo. O índice leva em conta as mutações que estão associadas ao câncer e as possíveis combinações entre elas. “Consigo com isso identificar os pacientes que precisam mais de exames de rastreamento e de um acompanhamento mais próximo”, continuou Cormedi.
As análises genéticas feitas no Fox Chase Cancer Center, conduzidas pela especialista em bioinformática Yan Zhou, deram força à hipótese de Guilherme Bezerra de Castro. Das 313 mutações germinativas conhecidas que estão associadas à origem do câncer de mama, apenas 79 estavam presentes nas amostras das Xavante analisadas. “As mulheres indígenas tiveram escores de risco poligênico de valor extremamente baixo”, disse o oncologista.
“Esse é um estudo pioneiro com essa população indígena e traz uma novidade muito interessante”, disse Marina Cormedi, que não participou da pesquisa. A médica geneticista se surpreendeu com a ausência de câncer de mama entre as Xavante. “Os resultados trazem dados raros sobre a composição genética dessa população indígena e abrem as portas para entendermos os fatores que a protegem contra o câncer de mama”, disse a pesquisadora.
Cormedi chamou atenção, contudo, para o alcance restrito das conclusões, já que o estudo foi feito com um número pequeno de participantes. Outra limitação apontada por ela diz respeito às amostras usadas como controle para a comparação com as indígenas, que vêm principalmente de mulheres norte-americanas de ancestralidade europeia. “Seria muito interessante comparar com amostras de controle de origem brasileira para entender melhor a diferença observada”, afirmou a médica geneticista.
Resta ver também em que medida os resultados do estudo se aplicam a outras populações indígenas brasileiras. Castro acredita que pesquisas feitas com mulheres de outras etnias chegariam a resultados parecidos, devido à relativa homogeneidade genética das populações indígenas brasileiras. Mas essa extrapolação não pode ser feita sem verificação empírica. Castro espera que outros colegas se interessem por expandir o alcance de sua hipótese. Aos 67 anos, o oncologista não tem planos de investigar o genoma de outros povos indígenas.
Novos estudos poderiam oferecer uma explicação dos mecanismos genéticos por trás da baixa incidência do câncer de mama em mulheres indígenas – uma questão que o estudo de Castro deixou em aberto. Mesmo sem uma compreensão detalhada desses fatores, os resultados podem levar no futuro à elaboração de estratégias mais eficazes para a prevenção do câncer de mama, que vitimou 685 mil mulheres em todo o mundo em 2020, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde. Castro acredita que o risco de contrair a doença deveria determinar a frequência com que são feitas as mamografias. “Esse exame é doloroso, é uma tortura para as mulheres”, afirmou.
A biomédica Putira Sacuena, que pertence ao povo Baré, do Amazonas, confirma que a incidência de câncer de mama é baixa entre as mulheres indígenas. “O câncer de mama é novo nas populações indígenas, mas é algo que a gente percebe que está chegando”, disse a biomédica, que estudou o câncer de colo de útero em dois povos indígenas durante seu mestrado em bioantropologia pela Universidade Federal do Pará (diferentemente do tumor de mama, esse tipo de câncer é causado principalmente pela infecção por um vírus, o HPV).
Sacuena chamou a atenção para fatores ambientais que podem estar por trás da doença, além dos componentes genéticos. “O câncer de mama provavelmente está relacionado aos hábitos das mulheres indígenas e à forma como vivem”, afirmou, citando a alimentação saudável e a prática de atividades físicas (ter filhos e amamentar são outros fatores comportamentais associados a uma menor incidência de câncer de mama).
A biomédica notou que os fatores ambientais que podem proteger contra a doença têm peso maior nas terras indígenas mais afastadas das cidades. “Quanto mais longe ficam os centros urbanos, maior a saúde das mulheres indígenas, principalmente na Amazônia.” Sacuena citou ainda mais um fator que poderia estar por trás da baixa incidência de câncer de mama entre as indígenas. “As nossas medicinas indígenas não são só curativas, elas são preventivas e fazem a promoção da saúde”, afirmou.