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    Escárnio, obra de Hirotoshi Ito, em foto feita pelo autor/ intervenção de Paula Cardoso sobre a foto original

tribuna da educação

Pseudônimo para quem?

De que forma um monólogo pode se esconder por detrás de um diálogo

Caio, Erick e Joaquim | 06 maio 2021_17h35
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No texto Parece revolução, mas é só neoliberalismo (piauí_172, de janeiro), um professor universitário, escrevendo sob pseudônimo, sugere que uma lógica neoliberal estaria se infiltrando nas atitudes de certos estudantes universitários, que representariam, por sua vez, uma parte significativa da esquerda brasileira. Ao contestarem alguns métodos tradicionais de ensino, tais alunos estariam apenas reproduzindo uma atitude mercantil, encarando os docentes como “serviçais privados” e a própria universidade como um supermercado. Mais ainda, estariam, com frequência alarmante, fazendo um uso condenável de pautas identitárias para obter vantagens pessoais (como aprovações ou uma menor carga de leitura), de modo que o aparente progressismo desses alunos não passaria de retórica.

Para ilustrar suas ideias, o autor relata uma série de casos que teriam ocorrido não com ele, mas com outros professores. A julgar pelas reações que o texto desencadeou, tais relatos pareceram verossímeis para a maior parte dos leitores, inclusive para aqueles que criticaram a reflexão proposta pelo autor. Ainda assim, na sua tréplica (Pós-verdade e carteiradas de identidade, piauí_175, de abril), ele busca tanto se defender de algumas dessas críticas, tentando esclarecer suas ideias, quanto reforçar o que lhe parece ser a interpretação correta dos episódios relatados. Ou seja, os relatos em si são tão importantes para ele quanto a tese que ele defende (sobre a penetração do neoliberalismo entre os universitários).

Portanto, para dialogar criticamente com os dois textos é necessário refletir sobre a suposta lógica neoliberal a que ele se refere e sua expansão na universidade, sobre a conexão desse processo com os episódios específicos que são relatados e, enfim, sobre a própria confiabilidade desses relatos. Neste artigo, porém, vamos nos restringir à última questão, pois o primeiro dos relatos feitos em Parece revolução, mas é só neoliberalismo trata de um suposto “motim” de uma turma de estudantes, e nós, que escrevemos este texto, estávamos entre os amotinados. Nós somos, portanto, alguns dos personagens anônimos que involuntariamente povoam os textos desse professor, e decidimos tomar a palavra.

Afinal, essa nossa estranha perspectiva pode ajudar a qualificar o debate. Pois, se permanecerem em silêncio todos aqueles que se reconhecem nos relatos, tendo sido testemunhas de algum deles, os demais leitores terão pouca opção além de aceitar a versão dos fatos oferecida pelo próprio autor. Isso quer dizer que, mesmo que os textos desse professor tenham desencadeado respostas e dado ensejo a um diálogo com seus críticos, há, por trás desse diálogo, um monólogo de fundo. E, enquanto esse monólogo continuar, toda uma camada de problemas permanecerá intocada, como esperamos deixar claro mais abaixo, e o debate não terá sido capaz de abalar a posição de autoridade a partir da qual esse professor fala e que faz com que sua versão dos fatos permaneça praticamente incontestada. Em outros termos, acreditamos que essa posição de autoridade é o que sustenta tanto a verossimilhança dos seus relatos quanto a força intuitiva de seus argumentos. Ora, o apelo a um pseudônimo não basta para esconder tal posição, e muito menos para neutralizar seus efeitos; é necessário contestá-la.

De fato, a principal consequência de nossa posição como testemunhas de um dos casos relatados é que, para nós, o pseudônimo utilizado não passa de uma farsa. É uma farsa não porque esconda o nome verdadeiro do autor, mas, pelo contrário, porque não o esconde: pois não nos resta dúvida de que o autor do texto é o mesmo professor que participou do episódio que vamos descrever, bem como de outros que ele próprio relata (coincidência que, aliás, ele de fato se preocupa em esconder).

Não nos resta dúvida porque, como explicaremos, nós fomos o primeiro público diante do qual o professor ensaiou exatamente as ideias que ele agora traz a público nos dois textos que publicou na piauí. Ou seja, nós fomos não só os amotinados originais, como também somos os pseudorrevolucionários originais descritos em tais textos. Na descrição, ainda que distorcida, que ele faz do episódio, pudemos reconhecer uma série de detalhes do que vivemos em sala de aula. Nossos prenomes bastarão para responder na mesma moeda: para dançar essa mesma farsa burlesca em que nada ou ninguém se expõe, ao mesmo tempo em que tudo e todos se mostram, desde que estejam na posição adequada para se verem.

Porém, mesmo que o autor desses textos e o nosso professor fossem duas pessoas diferentes, tudo que temos a dizer se aplicaria a ambos, pois, nos dois casos, o discurso, as acusações e os erros são os mesmos. Como quer que seja, o fato de o professor ter decidido explorar publicamente esse episódio, nos termos em que o fez (isto é, nos ridicularizando), indica um flagrante desrespeito ao diálogo que travamos na época e que imaginávamos ter dissolvido as tensões que emergiram durante o episódio.

O professor deve ter achado que nós não líamos a revista piauí, ou deve ter avaliado que, por efeito de uma misteriosa abstração, sua tentativa de ridicularizar certo tipo de estudante universitário não fosse ridicularizar a nós, pessoalmente. Ou ainda que, caso isso ocorresse, não seria afinal um grande problema. Nessas circunstâncias, resta a pergunta: a quem é que o pseudônimo protege, e de quê? E, por outro lado, o que o pseudônimo expõe?

 

Foi em meados de 2017 que ocorreu o referido “motim”. A disciplina era dedicada à discussão coletiva dos projetos de pesquisa de alunos recém-chegados à pós-graduação em antropologia social de uma universidade pública paulista. Muitos deles vinham de outros estados e suas condições socioeconômicas eram bem variadas. Assim, desde o início do curso, esteve claro que o espaço comum da sala de aula seria também o local de articulação dessa heterogeneidade.

A cada semana, todos liam e comentavam dois ou três projetos de pesquisa de seus colegas de classe. Porém, perto do fim do semestre, em razão do número de alunos e de projetos que ainda faltavam passar por uma segunda rodada de discussão, foi necessário rever o cronograma das leituras, de modo a que todos pudessem ter seus projetos comentados. Para resolver o problema, o professor sugeriu simplesmente multiplicar as responsabilidades de cada estudante, ou seja, que todos eles lessem e discutissem um número maior de projetos a cada semana.

Porém, na semana seguinte, antes que o professor entrasse na sala de aula, alguns alunos se puseram a conversar sobre essa decisão, que lhes parecia pouco razoável (sobretudo em fim de semestre, quando se acumulam diferentes obrigações acadêmicas), e decidiram propor outro arranjo. Como a relação entre professor e alunos era amistosa, para dizer o mínimo, foi em tom de brincadeira que um de nós declarou um “motim” e apresentou a nova proposta de reunir os alunos em grupos menores, de forma a responder melhor às possibilidades e interesses de cada um naquele estágio da disciplina (e, aparentemente, essa proposta bastou ao professor para julgar que havíamos sucumbido ao neoliberalismo, como deixam claros os dois textos que ele escreveria mais tarde).

Naquele momento, o professor aceitou. Contudo, poucos dias depois, ele nos enviou um e-mail coletivo, dizendo que recusava a sugestão e acentuava o modelo anterior, de modo que todos deveriam discutir todos os vários projetos de cada dia. Como garantia, recorreria ainda a um artifício infantilizante: a cada projeto, sortearia quatro alunos para começar a discussão.

 

Que fique claro: para alguns estudantes de nossa turma, importava pouco qual seria o arranjo final, pois eles, sem ter que trabalhar para se manter, podiam se dedicar exclusivamente à pós-graduação. Para outros, no entanto, a situação era diferente. E foi pensando nesses colegas sem bolsa de estudos e que, por isso, precisavam conciliar pesquisa e trabalho, que um de nós escreveu um primeiro e-mail em resposta ao professor, com cópia para todos da turma. O objetivo não era falar em nome dos outros alunos (e isso estava explícito), mas indicar-lhes que alguma comunicação (ali na forma de uma contestação provisória) ainda era possível entre nós e o professor. Quem quisesse e julgasse pertinente que se manifestasse, fosse para concordar com a resposta, fosse para discordar dela.

E assim foi. Dois outros e-mails se seguiram, em tom mais amistoso, mas concordando com o ponto de vista expresso de forma mais dura pelo primeiro (embora seja difícil encontrar em qualquer um deles o “misto de revolta e euforia” a que se refere o autor em seu primeiro texto, no que, diga-se de passagem, é claramente uma tentativa de deslegitimar de antemão os argumentos que ali estavam expressos). Logo a comunicação através de e-mails foi interrompida a pedido do próprio professor, sem maiores explicações (e essas mensagens, escritas por nós três, autores deste texto, são tudo o que nos resta de prova material com relação ao ocorrido).

A semana seguinte foi marcada por uma longa e emotiva discussão em sala de aula. Diante do inesperado sofrimento que parecia ter sido gerado no professor por essa sequência de eventos – “motim”, aceitação provisória pelo professor, sua volta atrás, nova contestação por parte dos alunos e, finalmente, fechamento do canal de comunicação escrita –, foi com um silêncio consternado que vimos nossas atitudes serem tachadas, por ele, de “neoliberais”, “conservadoras” ou como dotadas de uma “intenção revolucionária”. A nós, parecia algo mais simples e imediato: resolver um problema específico (o aumento súbito da carga de leituras em fim de semestre, numa disciplina de caráter bastante singular), lidando com as condições desiguais de disponibilidade dos alunos para as atividades em questão. Em outras palavras, era uma expressão de cuidado para com os colegas em condições mais difíceis (o que incluía, aliás, um de nós).

 

Nós nos perguntávamos, então, se o aparente sofrimento do professor era genuíno (e, nesse caso, de onde provinha) ou se não passava de chantagem emocional. Difícil responder, e talvez fosse uma questão psicanalítica mais que qualquer outra coisa. Mas essa pergunta aponta para outra, mais geral e talvez mais importante, a saber: que tipo de estrutura de personalidade, de estrutura institucional e de relações entre alunos e professores poderiam explicar que tais reações tão inesperadas fossem sequer possíveis (subvertendo subitamente, a partir de um surpreendente mal-entendido, as expectativas que havíamos formado quanto à relação entre professor e alunos) e, ainda mais, que o ocorrido viesse a alimentar os textos que o professor publicou nesta revista, quatro anos depois?

Talvez haja algo que conecte nosso silêncio autoimposto durante aquela discussão e o silêncio agora reinante (isto é, a ausência de questionamento) quanto ao relato do professor em seus textos na piauí. Algo da ordem do poder, como já indicamos, e de um poder que talvez não tenha mais espaço – ou pelo menos o mesmo espaço, o espaço de algo incontestado – na universidade de hoje. Voltaremos a isso mais abaixo.

O fato, porém, é que efetivamente houve um diálogo e, em algum momento, o mal-entendido aparentemente se dissolveu. O curso seguiu em moldes mais livres: cada um leria o que pudesse, sem prejuízo para sua avaliação. No final das contas, e a despeito das diferentes trajetórias, bons projetos saíram daquela turma, boas pesquisas e dissertações bastante originais – algo havia dado certo. Além disso, tínhamos aprendido uma lição prática sobre como calibrar nossas relações dentro de um ambiente tão complexo, heterogêneo e assimétrico como o de uma universidade pública tradicionalmente elitista.

 

Tudo isso poderia ter sido apenas mais um evento trivial na vida universitária. Mas qual não foi nossa surpresa ao vermos descrito esse episódio de forma tão distorcida, tanto tempo depois, num relato em que nós de repente assumíamos o caráter de pseudorrevolucionários preguiçosos! O que significa sermos julgados dessa maneira por um docente, depois de anos e a despeito do diálogo que houve na época?

Sem dúvida, pseudorrevolucionários e preguiçosos existem na universidade, mas não era isso que estava em questão naquele episódio (e vale dizer que, salvo engano, não havia esse tipo de estudante em nossa turma). Ao fazer esse diagnóstico, o professor errou gravemente: julgava conhecer seus alunos, mas, com boa ou má-fé, ignorou algo crucial, isto é, as condições individuais de cada um. Ou seja, ignorou que condições problemáticas existiam e que isso impunha limites ao modo como certas decisões envolvendo a todos podiam ser tomadas. Com isso, ignorou o essencial, pondo-se a interagir com uma abstração: os alunos ideais de sua imaginação, todos em condições iguais para se dedicar inteiramente à universidade.

Não é preciso ser marxista para reconhecer que é a própria lógica mercantil que, em geral, cria abstrações desse tipo. Ironia de um certo mercado educacional, então? Ironia, talvez, do argumento do professor, que sucumbe à lógica da mercantilização ao mesmo tempo em que a projeta sobre nós, acreditando exorcizá-la. Quem sucumbiu aqui ao neoliberalismo? As conotações políticas desse erro – em que ele tanto insiste, afinal, escreveu até uma tréplica na qual defende mais uma vez sua interpretação do ocorrido – não deveriam escapar a um professor tão erudito. Como quer que seja, elas se tornaram evidentes nos dois textos que ele publicou nesta revista.

 

Deve-se rebater sem rodeios a ideia de que qualquer contestação, mesmo local e momentânea, de um método ou de uma prática pedagógica (tal como o reajuste da carga de leitura de um curso) seja necessariamente motivada, da parte dos alunos, pela preguiça, pelo desprezo à experiência dos docentes, pela suposta adesão dos estudantes a uma lógica neoliberal ou – pior – por certo autoritarismo oportunista. O próprio fato de o professor ter decidido publicar suas elucubrações da maneira como o fez indica um problema muito maior: não aquele (real, mas distinto) do autoritarismo de certa esquerda universitária, mas o das dificuldades práticas (pessoais e interpessoais, além de materiais, teóricas e pedagógicas) de se avançar na democratização da universidade.

Afinal de contas, permanece a questão a que aludimos acima: por que razão a tentativa de abrir um diálogo em sala de aula teria parecido a um professor como tentativa de personalizar a dinâmica universitária, como se estivéssemos em busca de um self-service educacional? E esta questão se articula a outras, igualmente complexas. Que relação teórica pode haver entre deliberação (democrática) e customização (mercantil)? Que estrutura de autoridade explica a possibilidade prática dessa confusão, fazendo com que um processo político, dialógico e coletivo parecesse ameaça para uma autoridade estabelecida, dando ensejo à sua acusação de que esse mesmo processo não passava de uma rebeldia de consumidores insatisfeitos? Por fim, que tipo de estrutura social e de espaço intersubjetivo permite que a relação entre professores e alunos resvale da afabilidade informal à insegurança, até chegar à controvérsia pública?

A educação é, certamente, um dos campos desse embate entre democracia e mercado, e isso merece ser estudado mais a fundo e a sério. Pois o problema é complexo demais para que seja suficiente reciclar a já desgastada ideia de que as chamadas pautas identitárias (supondo que este nome sirva, o que é duvidoso) estariam sendo apropriadas por estudantes cujo único interesse verdadeiro seria trabalhar pouco, como imagina um certo conservadorismo contemporâneo. O que esteve em questão em nosso “motim” e permanece um problema em situações semelhantes é como a universidade pode, democraticamente, lidar com as muitas desigualdades socioeconômicas que há entre os estudantes – como, por exemplo, no que diz respeito à disponibilidade para a permanência no campus, quando a realidade é que muitos alunos trabalham em período integral ou parcial.

Este é o problema para o qual os textos do professor parecem apontar, em última análise. Em outras palavras, a pergunta é: o que efetivamente quer dizer “democracia”, no contexto da educação? Se nossa interpretação estiver correta, no entanto, o apelo ao fantasma neoliberal está longe de explicar tudo, e nossa discussão mal terá começado.

 

Muito do que dissemos acima já estava escrito quando foi publicada a segunda investida do professor, no texto Pós-verdade e carteiradas de identidade. Nela, o autor recorre novamente à sua versão do “motim” de modo particularmente problemático, instigando-nos, então, a dar novos esclarecimentos.

Eis como definiu o grupo amotinado: “Dos catorze pós-graduandos matriculados na disciplina, apenas cinco se rebelaram, todos eles brancos cis e graduados em prestigiosas universidades paulistas. Destes cinco, três eram homens e nenhum era cotista.” E concluiu: “Se alguém entendeu que esses consumidores rebeldes eram oprimidos ou excluídos social ou racialmente, sinto muito, mas meu texto não justificava essa leitura.”

De fato, o texto não justificava essa leitura, e por isso induzia gravemente ao erro, de diferentes maneiras. Primeiro, porque, se nós três que aqui escrevemos podemos ser homogeneizados enquanto estudantes “brancos cis e graduados em prestigiosas universidades paulistas”, o mesmo não ocorre se forem comparadas as condições socioeconômicas de cada um de nós (para não falar de outras formas de “opressão social”), como já indicamos. O fato de o professor ignorar as discrepâncias entre nós, bem como entre os demais alunos, longe de ser mero detalhe, revela justamente a predominância em seu raciocínio de uma lógica meritocrática: ao ignorar tudo aquilo que não diz respeito ao campo da educação no sentido mais estrito possível, ele ignora as desigualdades de fundo (como em relação à moradia, ao transporte, à alimentação e à aquisição de livros e outros materiais), que são o que transforma abstrações em seres concretos.

Novamente, não é preciso ser marxista para concluir que, ignorando as condições de reprodução dos sujeitos da atividade em questão (no caso, dos alunos que precisam se manter como pessoas para poderem se manter como alunos), acaba-se por mistificar a própria sala de aula. E a primeira mercadoria-fetiche na esfera dessas trocas simbólicas é, sem dúvida, a própria performance escolar, a performance do aluno enquanto aluno. O ruído que fica, então, quando essa performance não corresponde ao esperado é aquilo que se vê atropelado pelos diferentes silêncios de um episódio como o nosso. Isso, sim, nos parece digno de associação com certa lógica neoliberal. Como se vê, nesse xadrez edipiano, o professor está jogando contra si próprio.

 

Ou contra o fantasma que projeta sobre seu adversário: o rei imediatamente tropeça quando um peão toma a palavra e se transforma em rainha. Acuado, ele se expõe em gestos mal calculados, que revelam a falta de responsabilidade política de alguém preocupado em salvar a própria pele e o próprio argumento, a todo custo.

Isso se revela na sua afirmação de que “alunos oriundos de grupos tradicionalmente excluídos não deixam nada a dever aos de grupos privilegiados”. Frase complicada: se, por um lado, há estudos mostrando que, na universidade, o desempenho de alunos cotistas (por exemplo) se equipara, e muitas vezes supera, o dos demais estudantes, seria importante pensar melhor sobre o significado, nesse contexto, do verbo “dever”. Pois, de fato, a conclusão de tais estudos tende a insistir sobre o fato de que é a universidade que dá formação e diploma, e não o vestibular, e que, portanto, o problema crucial é duplo: de um lado, trata-se do crivo socioeconômico do vestibular e, de outro, dos inúmeros desafios à chamada permanência estudantil.

Assim, é certo que, em termos de direito de acesso à educação superior pública de qualidade, idealmente estudante nenhum teria nada a “dever” a outro. Entretanto, quando se trata da possibilidade de se dedicar com exclusividade ao estudo, esbarra-se nas condições socioeconômicas de cada um (que são aquelas de sua fração de classe, condicionadas por sua trajetória social). Desse ponto de vista, nos parece particularmente irresponsável imaginar que, inversamente, nada é devido a certos estudantes que não dispõem da mesma estabilidade material (para falarmos apenas desta) que a de grupos privilegiados.

Seja como for, um novo índice de confusão se encontra na afirmação categórica do professor de que nenhum aluno cotista teria se manifestado no “motim”. Aqui nos deparamos com um anacronismo grave, pois o episódio, como dissemos, ocorreu em 2017, e é do ano seguinte a primeira turma incluindo cotistas na universidade em questão. Seria isso apenas um lapso relacionado à maneira tão peculiar pela qual o professor rememora o passado? Ou seria um indício de seu nível de envolvimento com as discussões e lutas que levaram à criação de cotas no programa de pós-graduação?

Seu raciocínio pressupõe que a ausência de cotistas entre os “amotinados” bastaria para deslegitimar nossas reivindicações e sua possível ressonância entre os demais estudantes. Ou, então, ainda que houvesse cotistas, pressupõe que estes deveriam necessariamente se expor e concordar com as nossas reinvindicações, correndo o risco de perderem toda e qualquer legitimidade se não o fizessem. Curiosa carteirada de identidade”, esta!

 

Reduzir nossa manifestação a uma mera reação de “brancos cis” privilegiados acaba por desviar o foco do problema de fundo para o qual apontávamos. Mas há mais. Embora tenhamos levado a tentativa de diálogo tão longe quanto foi possível, os desdobramentos parecem não ter abalado a convicção do professor de que ele foi traído por seus alunos, ao que ele acrescentou agora a acusação de que estávamos baixando o nível do ensino. Ora, se o professor vê uma equivalência entre a proposta de simplesmente repensar detalhes do modelo de um curso e o rebaixamento da qualidade do ensino, é porque ele nutre uma ideia anacrônica e descontextualizada do que possa ser a democratização da universidade.

É hora de dizer com clareza: a democratização do ensino deve ser um verdadeiro desafio institucional, ou não será nada. Enquanto desafio, essa democratização exige tempo, reflexão, disposição e engajamento por parte de todos. Ela depende, sobretudo, de uma maior sensibilidade dos professores às particularidades dos estudantes vindos de grupos desprivilegiados, bem como preparo mental para se conduzir – e conduzir uma sala de aula – num clima de deliberação e reflexão, as quais somente poderão parecer contestatórias àqueles que ainda preferirem se curvar aos fantasmas das cátedras. Entenda-se: há, sim, que buscar na tradição de nossas instituições o que efetivamente possa nos servir ainda de inspiração (inovadoras experiências de pesquisa, por exemplo), mas é tão ou mais necessário reconhecer tudo aquilo que devemos deixar para trás, como a mística e incontestável autoridade do catedrático.

Em outras palavras, não há o que temer: se alguma ideia de autoridade puder prevalecer na nova universidade, ela deverá estar atada à estima e ao respeito inspirado pelos docentes, em vez de ser um produto artificial e mistificador da sua própria posição enquanto tais. Quem sabe, pode até ser que o resultado do processo seja um melhor “desempenho”, digamos assim, dos próprios professores.

 

No final de sua tréplica, o autor escreve: “Baixar o nível do ensino justamente quando se democratiza a universidade é uma cruel perversidade. É como dizer aos novos convidados para uma festa que eles são muito bem-vindos, mas que a comida, a bebida, a música e a conversa já acabaram.” Esse professor, no entanto, parece apostar suas fichas numa “festa” em que todos, independentemente de quem sejam, de onde venham e do que desejam (pois o desejo também conta), dancem a mesma música, comam da mesma comida e conversem sobre o mesmo assunto, e sempre de uma mesma e única forma. Talvez isso não devesse nos surpreender. Afinal, como já se disse por aí, o Um só enxerga o Um, e o Um se mede pela régua da meritocracia. Ocorre que a identidade é só um caso da diferença.

*

NOTA DA REDAÇÃO: Com este texto a piauí encerra a publicação de artigos a respeito do ensaio Parece revolução, mas é só neoliberalismo. Outras manifestações sobre o mesmo tema podem ser enviadas na forma de cartas para o e-mail redacaopiaui@revistapiaui.com.br 

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