Quase metade da população brasileira ainda não tem acesso à rede de esgoto. Segundo o relatório final da equipe de transição de Lula, o governo Bolsonaro reduziu em 99,5% o orçamento para a área de saneamento em 2023 – o que deve afetar obras aprovadas ou em andamento. A meta do Plano Nacional do Saneamento (PlanSab) é atingir 90% de cobertura com rede de esgoto até 2033, mas se o país mantiver o ritmo dos últimos dez anos, só chegará a esse nível de cobertura em 2057. Na região Norte, apenas 14% da população é atendida com rede de esgoto (o que não abrange sistemas alternativos, como fossas), enquanto a região Sudeste tem quase seis vezes essa cobertura. Mas apesar de ter a maior cobertura do país, a região Sudeste tem o pior índice de tratamento de esgoto coletado. A cada cem litros de esgoto coletado em Minas Gerais, segundo o SNIS, 42 voltam para a natureza sem tratamento. O Brasil despejou, só em 2021, pelo menos 1,1 bilhão de m³ de esgoto não tratado na natureza, o equivalente a 177 Lagoas Rodrigo de Freitas. A falta de saneamento básico é fator de risco para uma série de doenças – e mata crianças e idosos país afora. Nesta semana, o =igualdades destrincha a tragédia do saneamento básico no Brasil.
A região Norte tem a menor cobertura de rede de esgoto do país. Em 2021 (ano do levantamento mais recente), apenas 14% da população era atendida com rede de esgoto, segundo os dados do SNIS – um avanço de seis pontos percentuais em comparação a 2010, quando a cobertura com rede de esgoto era de 8,1%. Já na região Sudeste, 82% da população é atendida com rede de esgoto. Isso significa que a cobertura na região Sudeste é quase seis vezes a da região Norte, proporcionalmente (os percentuais não abrangem sistemas alternativos, como fossas sépticas, fossas rudimentares, valas a céu aberto e lançamentos em cursos d’água). Os dados referem-se a uma amostra de municípios brasileiros que respondem à pesquisa nacional, e o SNIS é a principal fonte de informações usada pelo Ministério do Desenvolvimento Regional para obter o diagnóstico do setor.
O Brasil registrou recorde de investimento em saneamento básico no ano de 2021: 17,3 bilhões de reais (em média, 45% foi investido em abastecimento de água e 42,5% em esgotamento sanitário). A maior parte do dinheiro investido é proveniente dos prestadores de serviços de água e esgoto – companhias estaduais ou empresas privadas – e uma pequena parcela compete ao poder público. Mas o aumento progressivo do valor injetado no setor ao longo dos anos pouco alterou o mapa da cobertura de esgoto no Brasil. E apesar do recorde no cômputo geral, a distribuição do investimento ainda é desigual. O diagnóstico do Ministério do Desenvolvimento Regional mostra que o déficit de acesso aos serviços de água e esgoto na região Norte e Nordeste, por exemplo, é maior do que a proporção de recursos investidos. Além de ter a menor cobertura de rede de esgoto no país, em 2021 a região Norte teve o menor investimento per capita no setor: 50 reais por pessoa. Na região Sudeste, foram 98 reais. Isso significa que a região Sudeste teve o dobro do valor investido na região Norte.
O saneamento básico se tornou um imbróglio na transição do governo Lula. Parte da equipe defende a revisão de alguns pontos do Marco Legal do Saneamento, sancionado em julho de 2020 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A legislação facilita a concessão de serviços de água e esgoto à iniciativa privada, com o argumento de que essas empresas são mais eficientes e podem investir na universalização do acesso ao saneamento. Mas isso nem sempre é verdade. No ano 2000, os serviços de saneamento da cidade de Manaus, capital do Amazonas, foram entregues ao setor privado. Vinte e um anos depois, em 2021, a cobertura de esgoto da cidade continua muito abaixo da média nacional, atendendo 25% da população, segundo os dados do SNIS, com tarifa acima da média nacional. Isso significa que três em cada quatro manauaras não têm acesso à rede de esgoto.
O valor faturado pelas operadoras de saneamento nem sempre é sinal de melhora na estrutura da rede de esgoto. Mesmo tendo uma das menores coberturas do país, em Alagoas o faturamento é maior que a média nacional. No estado nordestino, operadoras de saneamento faturam 5,57 reais por cada m³ de esgoto. Em São Paulo, estado que tem o custo de vida mais elevado do país, a tarifa média de faturamento é de 3,72 por m³. Isso significa que, em um ano, as empresas de Alagoas faturam 264* reais por habitante para operar a rede de esgoto – quase o dobro do que é faturado em São Paulo, 176 reais*.
Apesar de ter a maior cobertura do país, a região Sudeste tem o pior índice de tratamento de esgoto coletado – 77,4%. Na região Nordeste, 77,9% do esgoto coletado é tratado. Na região Norte, 84,1%. No Sul, 94,3%. No Centro-Oeste, o índice é de 94,8%. A baixa porcentagem do Sudeste se deve ao estado de Minas Gerais, que, de acordo com os dados do SNIS, tem o terceiro pior índice de tratamento do Brasil (o estado só perde para o Maranhão e Rondônia). A cada cem litros de esgoto coletado em Minas Gerais, 42 voltam para a natureza sem tratamento.
Quando o esgoto não é coletado e tratado adequadamente, os resíduos são despejados na natureza, gerando uma série de problemas ambientais e de saúde. Em 2021, o volume de esgoto coletado chegou a 6,0 bilhões de m³ e 4,9 bilhões de m³ foram tratados. Isso significa que 1,1 bilhão de m3 de esgoto in natura foi despejado na natureza – o equivalente a 177 Lagoas Rodrigo de Freitas.
A falta de saneamento mata. Um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que antes da pandemia de Covid-19 – de 2008 a 2019 –, só os óbitos por doenças relacionadas a saneamento inadequado correspondiam a 0,9% do total de mortes ocorridas no país, levando em conta todas as causas. Ou seja, a cada mil mortes no Brasil, nove foram por doenças relacionadas ao saneamento inadequado, como disenteria, leishmaniose, esquistossomose, diarreia, doença de Chagas, etc.
*Nota metodológica: o valor foi calculado com base nos dados do SNIS, levando em conta a produção individual de esgoto de uma residência de padrão médio