Na noite anterior aos terremotos no Sul da Turquia e Norte da Síria, fui dormir com um pressentimento ruim. Moro no porão de um apartamento antigo em Kadiköy, bairro no lado asiático de Istambul, perto do Mar de Mármara. Numa das regiões que mais será destruída quando um terremoto atingir a cidade. Algumas semanas antes, meu companheiro começou a ler sobre esse tal terremoto que ia acontecer nos próximos anos em Istambul. Eu preferia não ler as previsões, cujas estimativas variam entre os próximos quinze, dez ou cinco anos. Algumas até alertam que pode acontecer a qualquer momento. Naquela semana a gente falou sobre se mudar, e ele até fez uma mochila com roupas quentes, comida e água, que ficou ao lado da cama. Naquele domingo, fui dormir achando que algo aconteceria.
Acordei na segunda-feira de manhã, 6 de fevereiro, sem lembrar dos pensamentos da noite anterior. Preparei café como num dia normal e ao ligar o celular vi a notícia dos terremotos ao Sul, ainda sem entender as proporções do ocorrido. A Universidade de Istambul, onde faço mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais, anunciou o cancelamento das aulas durante aquela semana, a primeira do semestre. Contudo, muitas pessoas tiveram que ir trabalhar como num dia normal. Mandei mensagem para o meu pai, que também mora em Istambul e trabalha como piloto de avião numa companhia aérea turca há mais de oito anos. Ele não recebeu a mensagem, então torci para que ele estivesse voando bem longe da região afetada.
Sou brasileira, nasci em Porto Alegre e cresci tanto na capital gaúcha quanto no Bahrein, uma ilha no Oriente Médio em que vivi por 4 anos durante minha infância. Tenho 24 anos. Por conta da profissão do meu pai, venho para a Turquia há mais de sete anos. No início vinha para passar as férias do colégio e, depois, da faculdade, e não demorou muito para eu me interessar pelo conturbado cenário político do país. A primeira vez que morei em Istambul foi em 2019, quando fiz um intercâmbio por um semestre na Universidade do Bósforo. Depois retornei no final de 2020 para fazer um estágio num centro de pesquisa por três meses. Considero Istambul como uma segunda casa, já que tenho família, amigos e conheço as ruas como se fosse Porto Alegre, minha cidade natal.
Ao longo da manhã, amigos começaram a postar pedidos de socorro nas redes sociais, com nomes de pessoas e seus respectivos endereços na região afetada pelos terremotos. Nas mensagens, procura por famílias inteiras se transformaram em súplicas para pessoas na região irem até tais prédios verificarem se as construções ainda estavam de pé. Caso não, para procurarem seus parentes e amigos. Foi assim que comecei a entender o tamanho da tragédia. Em todas redes sociais, só apareciam postagens de socorro.
Uma das mensagens foi do Yiğit, um amigo que se formou recentemente na universidade em que fiz intercâmbio há quatro anos. Temos muitos amigos em comum e todo mundo estava compartilhando o mesmo pedido de socorro a sua família em Antakya, capital de Hatay, uma das regiões mais afetadas pelo terremoto. Ele é uma pessoa tão alegre, que sempre demonstrava seu amor por sua família e por Hatay. Yiğit estava em Ancara, a mais de 600 km de distância da sua cidade natal. Naquela manhã ele ligou para números de resgate por horas e preencheu todos os formulários existentes para que unidades de resgates chegassem até as ruínas da casa de seus pais. A cada hora que passava, a chance de encontrá-los vivos diminuía exponencialmente.
A região de Hatay faz fronteira com o Norte da Síria, país que tem presenciado conflitos de maneira praticamente ininterrupta desde 2011. Região em que a população é de maioria curda, um grupo étnico diverso perseguido devido a sua demanda por independência e atacado tanto pelo governo sírio de Bashar al-Assad quanto pelo governo turco de Erdoğan. Após mais de uma década de bombardeios e conflitos, prédios já enfraquecidos tiveram menos chances de resistir aos terremotos. Serviços públicos já escassos e falta de ajuda de fora intensificam a catástrofe. Faltam água, alimentos e abrigo para a população atingida. Além disso, grande parte dos 3,6 milhões de refugiados sírios na Turquia vivem na região afetada, e há relatos de complicações no recebimento de doações por conta de eles não terem documentos de residência ou por não falarem a língua turca.
A manhã passou e nada de o meu pai ligar o celular. Lembrei de ele ter comentado que ia voar para Batman, uma cidade que foi pouco afetada, mas mesmo assim fiquei assustada. Às três da tarde mandei mensagem pra minha mãe, que mora em Porto Alegre, e ela me tranquilizou. Uma amiga dela tinha ouvido falar que nenhum funcionário da companhia aérea foi ferido.
Nas redes sociais, as mensagens de socorro logo se misturaram com chamadas de organizações e grupos diversos solicitando ajuda para angariar e distribuir doações. Recebi uma mensagem de uma professora solicitando aos alunos que pudessem doar sangue. Lembrei do centro de doações no caminho do metrô pelo qual cruzava frequentemente, e me perguntei o porquê de eu nunca ter ido doar. Olhei para fora e estava nevando, pela primeira vez no ano.
Chegando no posto da Cruz Vermelha de Kadiköy, o lugar estava lotado de pessoas de todas as idades. O vento e a neve levavam a multidão a se aglomerar entre o contêiner onde as doações ocorriam e uma barraca montada para doadores preencherem um formulário. Pedindo licença, tive que abrir caminho para passar, de tanta gente que tinha. Comecei preenchendo o formulário, e eventualmente pedi ajuda para alguém traduzir. A língua turca não é fácil de aprender. Conheci a Gülce, que logo começou com as perguntas íntimas sobre minha saúde para eu poder me cadastrar. Conversamos bastante e ela também contou que sempre passava na frente daquele centro, mas nunca tinha doado sangue.
Meu número era o 188, e como disseram que poderia demorar 2 ou 3 horas, fui caminhar pelo bairro e ver a movimentação. Andei até um dos prédios do município do bairro e fui seguindo as pessoas com sacolas na mão. Um casal carregando fraldas entrou numa pequena porta separada do prédio central, então, seguindo-os, desci umas escadas escuras. Fiquei extremamente surpresa com o tamanho e principalmente a quantidade de pessoas lá dentro. Muitas pessoas em idade de colégio, que vieram em grupos de amigos para se voluntariar na organização das doações.
A organização espontânea desde o primeiro dia foi crucial para enviar água, alimentos e roupas de todos os tipos, sapatos, remédios, eletrodomésticos, sacos de dormir, produtos de higiene, e tantos outros produtos necessários para a sobrevivência da população. Também vi alimentos para gatos, cachorros e aves. Universidades, centros de bairro, de esportes ou culturais, livrarias, até casas de pessoas viraram centros de arrecadação de doações, geralmente lotados e funcionando 24h por dia.
Caminhando ao redor do centro, fiquei impressionada com a sistematização organizada pelas pessoas ali. Praticamente uma linha de produção em que cada pessoa tinha uma tarefa: desde a entrega do produto para a mesa específica, a separação em caixas com produtos iguais, até a organização das caixas nos cantos do centro de maneira que ficaria mais prático levar até os caminhões. Tudo isso de maneira veloz. Ajudei um pouco a montar caixas de papelão, mas logo retornei à fila da doação de sangue para não perder a vez.
No caminho, pensei como essa geração que estava ajudando não havia presenciado terremotos tão devastadores. Na Turquia, há terremotos muito frequentes, mas até 6 de fevereiro, o terremoto mais devastador havia sido em 1999, em Izmit, cidade vizinha a Istambul, que matou mais de 17 mil pessoas. Em tal ano, muitos gritavam em volta das ruínas: “Onde está o Estado?” Esse terremoto foi decisivo para a chegada do AKP, partido de Erdoğan, ao poder, prometendo moradia de qualidade. Naquela época, foram reveladas construções com materiais de baixíssima qualidade. O Estado falhou em salvar ou socorrer parte da população atingida. Erdoğan chegou ao poder em 2003 prometendo mudança da classe política da Turquia, e o terremoto de 1999 foi usado por ele para demonstrar porque tal mudança é necessária.
Quando retornei ao centro da Cruz Vermelha, o lugar se enchia de doadores em potencial. De tanta gente, quem trabalhava no local pedia para retornarem no dia seguinte. Chegando minha vez para doar sangue, a médica pediu para fazer as últimas perguntas, e quando falei que sou brasileira e vim em outubro do ano passado, ela consultou uma lista com nomes de países e disse que eu não poderia doar. Por conta do risco da malária, brasileiros só podem doar sangue na Turquia depois de completarem um ano no país. Não teve jeito de doar.
Já era de tarde e retornei ao centro de arrecadação de doações, tentando ser útil naquele mar de gente. Falando um pouco de turco consegui me juntar ao grupo que organizava produtos de higiene. Era muita gente, mas o processo estava organizado. Separamos fraldas e absorventes em caixas distintas conforme o tamanho. Uma caixa com lenço umedecido, outra com escovas e pastas de dente. Papel higiênico, shampoo, sabonete, detergente, tudo em grandes quantidades.
Era tudo muito rápido e, ao fecharem uma caixa pesada, gritavam “Burada bir erkek istiyorum”, [“quero um homem aqui”], para carregar a caixa até um canto. Toda vez que eu pegava uma caixa que parecia pesada, vinham meninos e meninas manifestarem sua opinião de que um homem deveria carregar. Isso aconteceu com outras amigas minhas também. Sei que em momentos de tragédia esse é um detalhe irrelevante, mas se repetia tanto que fiquei bastante incomodada. Passei a falar em turco que eu era forte e conseguia carregar. Enquanto eu pegava as caixas, as pessoas riam do meu turco söyle böyle [mais ou menos].
Perto da porta da garagem, os caminhões aguardavam levarmos as caixas. Ao lado, ficava uma mesa com um microfone. Por ali, uma mulher já sem voz gritava comandos e formas de organização. De repente, quando um caminhão chegava, ela chamava para formarmos uma fila. Em menos de cinco segundos a fila estava formada, tanto para levar caixas até os caminhões quando para receber doações que seriam organizadas ali.
Às oito da noite, enquanto eu voltava pra casa ainda sem resposta do meu pai, minha mãe ligou preocupada, já que ele não havia nem recebido mensagem alguma. Contudo, alguns minutos depois que cheguei em casa, meu pai ligou dizendo que estava tudo bem com ele, apenas ficou sem bateria e os aeroportos estavam com os voos muito atrasados, tanto por conta dos terremotos quanto pela neve. Ele contou como alguns colegas foram fazer voos de resgate, mas teve que dormir logo porque ia trabalhar cedo novamente.
Respirei aliviada e tive coragem novamente de abrir as redes sociais, mas meu amigo Yiğit ainda não havia encontrado seus pais. No outro dia ele foi até Antakya para procurar sua família embaixo dos escombros, como muitos fizeram. Ele se juntou a vizinhos e outros sobreviventes, usando as mãos para tirar os pedaços de concreto, bem como utilizando diesel e um guindaste pelos vizinhos do apartamento para possibilitar resgates. Num tuíte no terceiro dia ele contou como a ajuda do governo estava sendo enviada apenas para o centro das maiores cidades. Seu bairro em Antakya, por exemplo, não recebeu comida do Estado, apenas sopas pelos veículos metropolitanos de Ancara, a capital turca. Segundo Yiğit, a solidariedade das pessoas que cuidou do resto.
Neste último mês, a partir do terremoto, o dia a dia em Istambul ficou desanimado. Na rua, todo mundo fala sobre a tragédia no Sul do país. Nos transportes públicos, passa na tela dicas do que fazer quando o terremoto atingir Istambul. Meu companheiro e amigos voltaram para seus respectivos países com medo de a tragédia se repetir aqui. Nesta semana, um mês depois do terremoto, o semestre na Universidade de Istambul começou. Mas as aulas têm sido virtuais, e provavelmente vão continuar assim nos próximos meses, impedindo algo tão importante nesse período: o suporte pelas relações interpessoais.
Meus colegas estão emocionalmente devastados. Conversando com eles, fica óbvio que as aulas têm sido virtuais para que estudantes não protestem nem organizem manifestações contra o despreparo do governo. Para que não haja voz contra as atitudes, ou falta de atitudes, daqueles com poder. As aulas têm sido virtuais para enfraquecer a população, principalmente os mais jovens. Mas isso demonstra que tais mobilizações amedrontam os governantes.
Novamente, pessoas na região atingida perguntam “Onde está o Estado?” ou “Pagamos nossos impostos, mas o governo nos deixou sozinhos”. Tal coleta se trata de impostos especiais para alívio em terremotos, mas já foi comprovado que esse dinheiro público não foi destinado para eventuais desastres naturais. O governo prefere destinar o dinheiro para setores de alto crescimento do que para eventuais respostas a desastres imprevisíveis.
Depois de um mês Yiğit encontrou apenas uma foto da família, mas não encontrou os corpos de seus pais. A demora em receber ajuda e a descoordenação no resgate faz com que ele questione se teria sido possível salvá-los.
Foto: Clarice Schreiner