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questões da desinformação

Uma mentira sobre vacina enganou 46% dos brasileiros

Pesquisa inédita do Ipec mostra alcance dos boatos – que incluem de tratamento alternativo a imunizante feito com células de fetos abortados

Amanda Gorziza | 22 mar 2021_15h48
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Nádia Bandeira, médica gaúcha de 56 anos, participa de um grupo no WhatsApp só com mulheres endocrinologistas. Nesse espaço, elas conversam sobre o cenário da Covid-19 e trocam informações sobre a doença. Mas boa parte do volume de postagens no grupo não traz informação – ao contrário, as médicas costumam compartilhar conteúdos falsos sobre a pandemia que recebem de conhecidos – e alguns despertam indignação nas participantes. Muitas vezes, as médicas ficam até em dúvida sobre o que é verdadeiro ou não, e Bandeira costuma falar com um colega pneumologista para se certificar. Nos últimos dias, o principal assunto discutido, não apenas no grupo das médicas, mas também no consultório, são as vacinas contra Covid-19. “Recebo vários pacientes que vêm com as ideias das fake news. Eles dizem: ‘não vou fazer a vacina porque estão inserindo um microchip dentro das pessoas, e esse será o controle total da humanidade’”, relata. Ela diz que procura explicar a seus pacientes o que é verdade e o que não é, mas ainda encontra resistência por parte de muitos.

Assim como Nádia Bandeira, vários outros brasileiros são expostos diariamente a informações falsas sobre vacinas – mas, diferente da médica, muitos acreditam nelas. Pesquisa inédita do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) revela que 46% dos entrevistados, ao serem questionados pelos entrevistadores sobre conteúdos falsos, concordam com pelo menos uma das fake news sobre as vacinas contra a Covid-19. As seis frases mentirosas apresentadas trazem as seguintes hipóteses: é possível se infectar com o coronavírus a partir de vacinas; há tratamentos alternativos tão ou mais eficientes que os imunizantes; a vacina modifica o DNA da pessoa; a vacina carrega, na verdade, um microchip que será implantado nos indivíduos; as vacinas podem causar autismo, provocar câncer ou transmitir HIV; as vacinas têm na composição células de fetos abortados e tumores. Os entrevistados responderam se concordavam ou discordavam, totalmente ou em parte, com essas seis afirmações falsas. E as inverdades sobre as vacinas alcançaram, assim, a concordância de quase metade deles.

A crença em fake news sobre vacinas está distribuída por todas as regiões do Brasil e por vários grupos sociais, embora seja mais frequente em alguns deles. Do mesmo modo, também estão mais disseminados entre pessoas que cursaram até a antiga quarta série do ensino fundamental (54%); em seguida, vem o grupo que, no máximo, concluiu o ensino fundamental (51%). Mesmo no grupo que concluiu o ensino superior, 32% acreditam em pelo menos uma das frases falsas sobre a vacina. Os boatos alcançaram a adesão de 54% dos entrevistados evangélicos e de 44% dos católicos. 

Dos entrevistados com renda mensal familiar de até um salário mínimo, 52% acreditaram em algum boato. Entre quem tem renda familiar superior a cinco salários mínimos, 27% concordam com as fake news. O Nordeste tem a maior proporção de entrevistados que acreditam nas frases falsas (57%), e o Sudeste, a menor (40%). No corte por tamanho de município, a desinformação encontra maior eco em cidades de até 50 mil habitantes (49%). Em todo o país, foram entrevistadas 2.002 pessoas face a face de 19 a 23 de fevereiro de 2021. O nível de confiança é de 95%, e a margem de erro máxima estimada é de 2 pontos percentuais para mais ou para menos.

A frase que alcançou maior nível de concordância, 26%, foi “há tratamentos alternativos tão ou mais eficientes que as vacinas contra a Covid-19”. Especialistas já afirmaram que, até o momento, não existe alternativa terapêutica comprovada para prevenir a doença. Além disso, 24% dos entrevistados responderam que concordavam com a afirmação falsa de que alguns imunizantes contra a Covid-19 podem infectar as pessoas com o coronavírus. Esse dado é incorreto, pois ou as vacinas não contêm o vírus ou ele está inativo, assim, elas ensinam o sistema imunológico a produzir anticorpos para combater o Sars-CoV-2.

Boatos sobre os imunizantes se intensificaram no segundo semestre de 2020, em meio às desavenças políticas relacionadas com a vacina CoronaVac, produzida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e à crescente desconfiança das pessoas com as instituições. O presidente Jair Bolsonaro tem estimulado a desinformação, defendido o tratamento precoce e minimizado a doença – e isso multiplicou ainda mais os boatos, muitas vezes orquestrados por grupos antivacina e apoiadores do presidente.

Desde o início da pandemia, a Agência Lupa, veículo de verificação de informações, já checou pelo menos noventa conteúdos relacionados às vacinas contra Covid-19. Nos últimos meses, o debate digital sobre o assunto se intensificou e, com isso, as fake news também. “Em 2021, estamos verificando bastante conteúdo sobre vacinação, desde questões relacionadas à eficácia, à sinofobia [preconceito com chineses] e também às questões políticas”, afirma Natália Leal, diretora de conteúdo da agência. Neste mês, a Lupa já verificou nove conteúdos falsos sobre vacinas. Um deles afirma que governadores estariam escondendo imunizantes para desestabilizar o governo Bolsonaro, o que não tem fundamento, já que o próprio Ministério da Saúde orientou que os estados fizessem reservas de vacinas para a aplicação da segunda dose da CoronaVac. Neste domingo (21), foi autorizado que os imunizantes armazenados possam ser usados imediatamente como primeira dose para ampliar o número de vacinados.

De acordo com Natália Leal, a desinformação ocorre em ondas, já que está ligada com os assuntos debatidos no momento, principalmente nas redes sociais. Desde o início da pandemia, as ondas já percorreram diferentes temas, como origem do vírus, formas de prevenção, uso da hidroxicloroquina e agora miram as vacinas. “As narrativas vão sendo formadas de acordo com os debates que estão acontecendo.” Leal destaca que, além da crença por parte de alguns grupos de que a vacina não funciona e não é segura, há um pensamento errôneo de que a doença não é tão grave. “Há também fatores externos, como questões políticas, que estão influenciando a crença das pessoas em uma eficácia ou não da vacina, e não somente as questões relacionadas à saúde.”

 

A britânica Claire Wardle, cofundadora e diretora da ONG First Draft, é referência internacional no combate à desinformação. Foi uma das apoiadoras da implementação no Brasil do Comprova, projeto que reúne jornalistas de 28 veículos de comunicação, incluindo a piauí, para verificação de notícias. De acordo com a pesquisadora, sempre se soube que a desinformação causava danos, mas às vezes era difícil vê-los imediatamente. “Quando se trata de desinformação em saúde, é muito claro que elas podem levar a danos muito graves. Potencialmente, podem fazer com que menos pessoas sejam vacinadas, o que pode ter implicações muito sérias para países como o Brasil ou os Estados Unidos.”

O estudo realizado pelo Ipec também revelou que 26% dos brasileiros acreditam totalmente ou em parte que as vacinas contra Covid-19 não são seguras. E 18% dos entrevistados não se disseram interessados no imunizante: discordaram totalmente ou em parte da afirmação “pretendo tomar a vacina assim que ela for disponibilizada para minha faixa etária”. Um dos motivos citados por essas pessoas para não se vacinar é a insuficiência de testes dos imunizantes. “Vemos um número crescente de pessoas que não confiam nas instituições e este é um dos efeitos colaterais das desinformações”, afirma Wardle.

Com a pandemia, a vida das pessoas virou de cabeça para baixo. Muitas perderam amigos e familiares para a doença; outras foram demitidas de seus empregos. Em  momentos de vulnerabilidade e medo, os indivíduos estão mais suscetíveis a serem influenciados por informações incorretas. “Como humanos, gostamos de consumir conteúdo que nos faça sentir algo. E muitas dessas desinformações são eficazes porque afetam as pessoas em um nível emocional”, explica Wardle. Uma das formas de responder a isso é, avalia Wardle, responder de modo claro aos questionamentos das pessoas sobre os imunizantes – e o jornalismo tem papel fundamental nisso. “Uma vez que as pessoas tenham essas perguntas respondidas, é mais provável que sejam vacinadas.”

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