Menos de três meses depois de tomar as ruas da França e as manchetes do mundo inteiro, os coletes-amarelos, movimento popular, populista e antissistema que queria a cabeça do presidente francês Emmanuel Macron, penam para encontrar um rumo e manter a unidade. Diante da profusão de reivindicações e de lideranças informais, da ruptura entre moderados e radicais e da indecisão sobre fundar um ou mais partidos políticos – tornando-se assim parte do sistema que criticam – os manifestantes enfrentam a erosão de seu capital político no país.
O problema enfrentado pelo movimento é que, quanto mais os protestos de rua persistem – e com eles os casos de violência e confronto com policiais –, menos apoio os franceses lhes dão. Pesquisas de opinião indicaram o aumento de popularidade de Macron, e o seu partido reassumiu a liderança nas intenções de voto para as eleições europeias de maio. Além disso, um novo movimento, “Lenços Vermelhos”, organizou-se contra os coletes-amarelos, “em favor da democracia e da República”, “contra a revolução”, e a favor de reformas. Em última análise, por Macron.
Entre os coletes-amarelos, a polarização da sociedade francesa também causa divisões. Os rachas internos ficaram mais claros após os “Atos 12 e 13”, a 12ª e 13ª semanas de protestos, nos dois últimos sábados. Passados noventa dias do início das manifestações, o movimento se subdividiu em quatro grupos principais.
O primeiro é um movimento de rua de confronto, matizes revolucionárias e convicções autoritárias e próximas da extrema direita, liderado pelo caminhoneiro Éric Drouet, o mesmo que estimulou uma invasão ao Palácio do Eliseu em dezembro. A principal marca desse primeiro subgrupo é a reivindicação violenta da interrupção do mandato e queda do presidente.
A segunda divisão, mais aberta ao diálogo, agrupa líderes identificados tanto com a ultradireita quanto de esquerda radical, como Etienne Chouard, economista e professor de ensino técnico, e Philippe Pascot, escritor, ensaísta e ex-vice-prefeito da cidade de Évry, na periferia de Paris. É liderado pela comerciante Priscillia Ludosky – uma das fundadoras dos grupos de “revoltados online” franceses – e por Faouzi Lellouche, líder comunitário muçulmano na periferia de Paris. O subgrupo se destaca pela defesa da realização de referendos como forma de participação direta da população no sistema político. O exemplo mais citado é o do modelo suíço (marcado pela realização frequente de plebiscitos para avalizar decisões do parlamento do país).
Os dois outros grupos vivem transformações mais institucionais: um coletivo independente de candidatos a deputados europeus criado sob a bandeira coletes-amarelos e hoje liderado pela auxiliar de enfermagem Ingrid Levavasseur. Sua principal bandeira é transformar o movimento social em uma formação política capaz de disputar e vencer eleições. Na plataforma do grupo, a queda do poder de compra dos franceses e a desigualdade atribuída à globalização são temas prioritários.
E por fim um primeiro partido político, Les Émergents (Os Emergentes), criado por Jacline Mouraud, bretã de 51 anos que lançou no Facebook um vídeo viral em outubro denunciando a suposta “caçada aos motoristas” pelo governo, em referência à política de redução da velocidade máxima em estradas regionais de 90 quilômetros por hora para 80 quilômetros por hora, de fiscalização eletrônica e de aumento do preço do diesel. Essa foi uma das origens do levante.
Esses grupos compartilham um forte pensamento conspiracionista e antissistema, o que impulsiona a mutação política em curso entre os coletes-amarelos. Depois da crítica ao aumento do custo de vida, aos altos impostos e ao que consideram serviços públicos de baixa qualidade, uma nova bandeira central do grupo – capaz de unir as subdivisões – tem sido o Referendo de Iniciativa Cidadã (RIC), idealizado por Etienne Chouard, originário do anarquismo de extrema esquerda e hoje próximo à extrema direita.
A iniciativa prevê “injetar um processo de democracia direta” no sistema democrático parlamentar, abrindo a possibilidade de impugnar via referendo mandatos de representantes eleitos no poder Legislativo e no Executivo – inclusive do presidente. Propostas como o RIC seguem mantendo um mínimo de união entre os subgrupos de coletes-amarelos. Mas as divergências são cada vez mais visíveis sobre como lutar por esses ideais e contra o “globalismo” e o “liberalismo sem freios”.
Ingrid Levavasseur, 31 anos, chefe de “família monoparental”, divorciada e mãe de dois filhos, originária de uma cidade rural e profissional de formação média com salário de 1,25 mil euros por mês – cerca de 5,3 mil reais –, aceitou ser a líder de candidatos coletes-amarelos, personificando a campanha às eleições parlamentares na União Europeia. Ex-eleitora de Macron, ela é o exemplo de francês pouco acima do piso de pobreza do país, apenas o suficiente para não receber auxílio dos programas sociais – um dos grandes fatores de insatisfação de classes populares na França.
Ao se lançar candidata ao Parlamento Europeu liderando um grupo independente de coletes-amarelos – que postulam o cargo sem representarem, por ora, um partido formal –, Levavasseur centralizou uma parte do ódio dos manifestantes que antes era exclusividade do governo. Ao se candidatar, ela e outros líderes mais “midiáticos” do movimento, como Hayk Shaninyan, foram acusados de “institucionalizar” os protestos sociais, canalizando-os para interesses que não necessariamente eram os originários. Por isso, sofre com críticas violentas e não raro ofensivas de outros coletes-amarelos nas redes sociais, principal ambiente de comunicação dos grupos. Drouet, por exemplo, é um de seus mais duros críticos, por preferir a ação de rua – incluindo a desobediência civil e a violência – como estratégia prioritária. “Eu sabia antes mesmo de lançarmos a lista para a campanha europeia que seríamos muito criticados e controversos, mas já estava preparada para isso”, contou a jovem.
Na entrevista que me concedeu, Ingrid admitiu que a tendência é o movimento de rua perder fôlego, e que a ação passe para o campo político. Ao ser questionada sobre o futuro dos coletes-amarelos, ela falou dos protestos no passado. “Apesar da redução eventual de mobilização, o movimento marcou os espíritos. Mesmo que a França seja um país muito aberto e livre, não somos ouvidos, e não podemos mais aceitar essas classes sociais que ficam cada vez mais ricas, com uma maioria cada vez mais pobre”, justificou.
Ela deixa de lado a moderação quando fala sobre a ação violenta de pequenos grupos que depredaram e se confrontaram com a polícia em Paris, Bordeaux e Toulouse. Para ela, são apenas “pessoas que estavam com raiva”. Levavasseur, no entanto, negou que militantes de grupos de extrema direita fascistas e neonazistas seriam excluídos dos coletes-amarelos. “Este movimento deve ser visto como um tronco comum. Somos de todos os horizontes e todas as classes sociais – há até mesmo gente de classes superiores”, relativizou. “Somos obrigados a aceitar todos e tudo será resolvido no voto, nas urnas. Não haverá purga.”
Lidar com esses militantes extremistas e mais violentos, que incluem anarquistas de ultraesquerda integrantes dos movimentos de rua, tem sido nas últimas semanas a tarefa de Faouzi Lellouche. Originário de Sevran, periferia pobre de Paris, Lellouche me surpreendeu no início do movimento ao aparecer na linha de frente das manifestações, recusando por ora a institucionalização dos coletes-amarelos como partido político. Militante muçulmano, trabalha com jovens em situação de delinquência e fracasso escolar, tentando colocá-los nos eixos e, de quebra, levá-los à religião. Foi nessa condição que nos conhecemos há cerca de três anos.
Hoje Lellouche desempenha uma função estratégica entre os coletes-amarelos: garantir que haverá o mínimo possível de incidentes com as tropas de choque e de depredações nos caminhos das passeatas. Tudo tem sido feito, garante ele, para tentar apaziguar o movimento e evitar o derretimento do apoio da opinião pública. Partidário de uma linha mais moderada, Lellouche explica que os coletes-amarelos continuarão a ser um “movimento antissistema”, mas que seu grupo tem adaptado sua pauta para chegar a consensos internos que sejam menos polêmicos entre os franceses. “Estamos tentando concentrar nossas reivindicações naquelas que fizeram as pessoas saírem às ruas: o poder de compra, a política fiscal, as condições de vida de cada pessoa…”, explicou. “Mas não sabemos qual será o futuro dos coletes-amarelos.”
A principal restrição manifestada pelos grupos que defendem a continuidade dos protestos e recusam a organização partidária é uma certa desconfiança mútua entre coletes-amarelos, além da prioridade dada pelos moderados a negociações para que parte da agenda do movimento seja incorporada pelo governo. Para militantes como Lellouche, Macron tem sorte de ter se mantido no poder, mas precisa dar uma guinada em seu programa de governo para apaziguar o país. “Talvez eles tenham razão em lançar a lista de candidatos nas eleições europeias, mas não sei nem como são financiados”, criticou. “Discutindo com eles, me dei conta de que se lançaram à política porque estão cansados dos políticos que deveriam fazer as coisas por nós, e que acabam fazendo apenas por eles próprios.”
Lellouche entende que o movimento vai se transformar em múltiplas ações, associações e partidos que serão mais moderados no futuro. “Haverá um antes e um depois dos coletes-amarelos. É uma vitória da sociedade. Os que virão depois no poder estarão mais atentos a tudo o que se passou.” Ele também não acredita na hipótese de que os coletes-amarelos se transformem em uma derivação partidária populista. “Não creio que caiamos nos extremos. Aqui há uma mistura social de pessoas de diferentes origens que acreditam em ideais como os direitos humanos e a fraternidade.”
Em entrevista recente ao jornal Le Monde, o cientista político Olivier Costa, do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, resumiu as contradições dos coletes-amarelos que, segundo ele, dificultam uma visão de futuro sobre o movimento e o levam a um esvaziamento progressivo. “É claro entre os coletes-amarelos que nenhum líder principal emergiu, em especial porque para se tornar um Beppe Grillo [político italiano] ou um Donald Trump é preciso um senso de eloquência, relações e meios financeiros que esses líderes informais não têm”, explica. “Ou uma dinâmica se organiza em torno de um líder, ou o movimento se decomporá, e suas ideias serão recuperadas por partidos políticos tradicionais. Essa segunda hipótese me parece a mais provável.”