Numa rua estreita do centro de Kyiv,[1] em frente a um parque, dois elegantes prédios do século xix alojam um museu. Com um acervo de 25 mil peças de arte antiga do Ocidente e do Oriente, o Museu Khanenko abriga o maior conjunto de arte bizantina da Ucrânia dos séculos vi e vii e uma coleção preciosa, embora pequena, de objetos da Grécia, de Roma e do Egito antigos. Conta ainda com uma seleção rara de arte budista e islâmica produzida no Tibete, no Japão, na China e no Irã. A última exposição temporária do Khanenko – com delicados trabalhos em estilo Gongbi (pintura mais realista e meticulosa) e Xieyi (pintura de estilo mais livre e subjetivo) feitos por artistas chineses contemporâneos – encerrou-se no dia 13 de fevereiro de 2022. Uma semana e meia depois, Kyiv foi atacada de surpresa pela Rússia e amanheceu sob uma carga massiva de mísseis Kalibr, Iskander e X-101, cada um carregando até 600 kg de explosivos. Nos subúrbios, blindados pintados com a letra Z formavam uma sinistra fila à espera das ordens de Vladimir Putin para tomar a capital.
Enquanto as forças de defesa ucranianas se esforçavam para evitar a invasão da cidade – um feito militar admirável, obtido a um custo humano imenso –, o esquema de funcionamento do Museu Khanenko entrou em colapso. Num primeiro momento, com Kyiv a sofrer um dos assaltos mais cruentos a uma capital europeia desde a Segunda Guerra Mundial, os oitenta membros da equipe do museu, a exemplo da maioria dos moradores da cidade, se preocuparam em providenciar reservas de alimento e água e buscar proteção em abrigos antiaéreos para si e suas famílias.
Houve ainda quem optasse por fugir do país em trens lotados ou por estradas congestionadas de carros. Ainda naquelas primeiras semanas da guerra, os funcionários do Khanenko que permaneceram na cidade começaram a se perguntar o que poderiam fazer para proteger o acervo da instituição. O museu tinha um protocolo que indicava com precisão quais medidas tomar no caso de um desastre natural, mas não numa guerra. Surgiu a ideia de retirar do país o maior número possível de peças, mas logo o plano se revelou temerário. Nas dependências do museu, bem ou mal o acervo estava guardado sob condições controladas de temperatura e umidade. Já em uma evacuação improvisada por terra haveria o risco de as obras de arte sofrerem danos, afora o perigo de bombardeio e roubo. E mais: a expatriação de objetos de arte de imenso valor histórico, cultural e material só poderia ser feita com respaldo oficial das autoridades ucranianas, e naquele momento, com a população vivendo em porões e abrigos antiaéreos, estavam cortadas as comunicações do museu com o Ministério da Cultura e Política de Informação.
A decisão sobre o que fazer estava sob responsabilidade de Yulia Vaganova, a agoniada diretora do Khanenko. Miúda, com um olhar penetrante e um sorriso doce, Vaganova sabia que, se as tropas russas rompessem a defesa da capital, o valioso acervo corria sério risco de ser depenado. (Formada em história da arte, ela era justamente uma das responsáveis por operar o programa de localização e repatriação de bens culturais ucranianos roubados no século passado por soviéticos e pelos invasores nazistas.) Sem outro esquema mais elaborado à mão, Vaganova e sua equipe decidiram por uma solução mais simples: repartir o acervo em vários lotes para então, fatiado, escondê-lo em prédios localizados em diferentes pontos da cidade.
Passados quase três anos do início da guerra, os prédios do museu exibem os danos provocados pelos bombardeios, mas nenhuma peça do acervo que continuou por lá foi danificada. As obras que não foram para outros pontos da cidade, porém, seguem encaixotadas, já que Kyiv permanece sob ataque quase diário. Mas, quem esteve no Khanenko no início deste outono europeu viu mais do que o espetáculo natural das árvores da praça em frente, cujas folhas verde-bandeira davam lugar a infinitos tons de amarelo e vermelho: viu uma exposição de resistência da arte.
Uma vez por semana, ainda em escala reduzida de atendimento, o museu está abrindo as portas à comunidade. O público pode escolher: visitar o depósito e ver as caixas de madeira que guardam algumas das peças do acervo, ou fazer um tour pelo prédio e mirar as paredes de cores ocre e verde desbotado, totalmente vazias. No segundo programa, os guias começam por descrever os objetos de arte que eram expostos em cada uma das salas antes da guerra, e logo a visita se transforma em uma discussão sobre o museu e sua sobrevivência, a relação entre a instituição, os governos e a comunidade, a influência da ocupação soviética na arte ucraniana e, por fim, sobre o futuro. Eventos semelhantes têm sido realizados por alguns dos cerca de vinte museus que seguem em atividade em Kyiv. No Khanenko, os ingressos custam 100 hryvnias (em torno de 14 reais) para adultos e 50 hryvnias para estudantes e aposentados.
A jornalista Bohdana Neborak percebeu que havia algo de novo na cena cultural de Kyiv quando, em setembro passado, esteve em um debate durante o relançamento de um livro publicado pela primeira vez havia quase três décadas. Dyskurs modernizmu v ukrainskii literaturi (O discurso do modernismo na literatura ucraniana), da crítica e ensaísta Solomiia Pavlychko, recorre ao estruturalismo, à psicanálise e à teoria literária para explicar como a ocupação soviética (1922-91) sufocou o surgimento de ideias originais na literatura ucraniana.
Escalada como mediadora do debate, Bohdana esperava um público pequeno. Porém, ao chegar ao local do evento, deparou-se com cerca de trezentas pessoas, boa parte delas sentada no chão ou em pé, devido à falta de cadeiras. A maioria dos espectadores era ainda criança em 1999, quando Solomiia Pavlychko morreu, aos 41 anos. O fenômeno de público tinha uma explicação evidente, me disse Bohdana: “Depois de quase três anos de guerra, as pessoas estão ávidas por programas presenciais. Não querem nada online, querem encontrar gente, querem conversar umas com as outras frente a frente.”
Antes daquele evento, a jornalista já notara a agitação cultural de Kyiv: a cada dia ficava mais difícil comprar ingressos para concertos, festivais de cinema, exposições e espetáculos teatrais. Os tíquetes se esgotavam em pouco tempo. A ebulição não é resultado de uma suposta escassez de programas, ao contrário. Em meados de novembro, havia cerca de sessenta casas de espetáculo em atividade na capital, de todos os tamanhos e gêneros, como a faustosa Filarmônica Nacional da Ucrânia e o despojado Docker-G Pub. Nos muros onde são colados os cartazes que anunciam as atrações, não há espaço vazio. O principal site de venda de ingressos de Kyiv registrava 47 concertos musicais, 47 shows cômicos, 24 peças para o público adulto e 23 espetáculos infantis entre novembro e dezembro deste ano. Para garantir presença nos eventos que lhe interessa, Bohdana fez um pacto com os amigos. “Assim que é divulgada a estreia de um show ou uma peça, compramos os bilhetes, às vezes com meses de antecedência. Quando chega o dia, se não podemos ir, ligamos uns para os outros e doamos as entradas.”
Por vias tortas, a agressão russa estimulou autores, editoras, livreiros e leitores ucranianos. “Nunca se leu tanto e nunca se publicou tanto”, assegura Bohdana. “Vivendo num lugar onde a guerra dura há tanto tempo, as pessoas descobriram que é um luxo parar um pouco, desligar-se do mundo, pelo menos por um instante, e ler um livro.” Uma pesquisa feita pelo instituto ucraniano Info Sapiens, com 1 016 entrevistados na faixa entre 16 e 59 anos, constatou um aumento 112% no número de pessoas que afirma ler todos os dias, na comparação de 2020 com 2023. Entre 1 071 crianças e adolescentes entrevistados, o aumento foi de 23%. A reação revela a resiliência do mercado editorial e livreiro. No início da guerra, as editoras ucranianas sofreram muito com os intensos bombardeios sobre Kharkiv, que concentra boa parte do parque gráfico do país. Num primeiro momento a produção de livros caiu, mas a recuperação foi rápida. Na editora Folio, uma das maiores da Ucrânia, o número de livros impressos no ano passado foi 150% maior que em 2019 (antes da pandemia, quando o mercado estava aquecido). A Vivat, que além de livraria atua também como editora, dobrou o número de funcionários depois do início da guerra.
No setor livreiro, o movimento é semelhante: depois do fechamento de inúmeros pontos de venda de livros no começo da guerra, o mercado vive agora, de acordo com o Instituto Ucraniano do Livro, um momento de euforia. Somente o grupo livreiro Knyharnya Ye, um dos maiores do país, abriu 22 novas lojas em 2023 e planejava abrir outras 22 neste ano. Já o grupo Vivat passou de três livrarias antes da guerra para nove. A piauí conseguiu contar outras nove livrarias abertas recentemente em Kyiv (Rodovid, Skovoroda, Zhovten, Readellion, Readeat, Knyzhkovyi Lev, Book Lion, Sens e Zbirka), o que aumenta a conta para 37 lojas somente no ano passado. (Para efeito de comparação, Praga, na República Tcheca, abriu sete livrarias em 2023.)
Algumas livrarias em Kyiv são minúsculas, como a Zbirka, especializada em não ficção, ou imensas, como a Sens. “As pessoas estão procurando por respostas”, diz a jovem dona da Zbirka, Natalka Kuzmenko, uma ex-recruta de cabelos curtos e negros que serviu o Exército justamente no período mais agudo da guerra. A livraria Sens também tem sua história indiretamente conectada ao conflito. Inaugurada em fevereiro, a loja ocupa um prédio de três andares no Centro de Kyiv, com sete vitrines voltadas para a Rua Khreshchatyk, a mesma onde Vladimir Putin planejava fazer uma parada militar quando concretizasse a tomada da capital ucraniana (o que nunca ocorreu). A Sens estimula os clientes a comprarem livros para os soldados ucranianos que servem no front (exemplares pequenos e leves, já que a carga das mochilas é limitada). A energia que pulsa entre leitores, livreiros e editoras foi sintetizada no slogan adotado por participantes da feira do livro de Kyiv do ano passado: “Livros são armas.”
A guerra patrocinada por Putin continua trazendo dor e morte aos ucranianos. Dados recentes indicam que o conflito já matou 80 mil ucranianos, sendo mais de 10 mil civis. Deixou 400 mil feridos. Porções do território em Donetsk, Lugansk, Zaporizhzhia e Kherson estão sob domínio russo, além da Crimeia, anexada por Putin em 2014.
Em Kyiv, a vida segue com restrições pesadas. Assim como o restante do país, a capital está sob lei marcial. Entre meia-noite e cinco da manhã, ninguém é autorizado a andar nas ruas sem uma licença especial – o toque de recolher é rigoroso, e todos o seguem. Checkpoints controlam quem entra e quem sai da cidade, e só há como chegar a Kyiv por terra, já que o espaço aéreo está fechado à aviação civil. Nos subúrbios, sobretudo nas áreas de floresta, avisos indicam que os locais podem ter minas terrestres plantadas por soldados russos quando ocuparam os arredores da capital.
Nos sete dias que passei em Kyiv, no início de outubro, a cidade foi atacada pelas forças russas quase diariamente. Os bombardeios acontecem em geral durante a madrugada, feitos sobretudo pelos Shahed, os temidos “drones kamikazes” que carregam entre 30 e 50 kg de explosivos. De formato triangular e com até 3 metros de envergadura, essas bombas voadoras são lançadas contra unidades de energia, água e gás – o objetivo é debilitar a infraestrutura da capital para o inverno que se aproxima. O sistema de defesa ucraniano é capaz de destruir a maioria dos drones, mas não todos. E, mesmo quando os Shahed são interceptados pelas baterias antiaéreas, é comum que destroços atinjam residências, causando danos e incêndios, e eventualmente fazem mortos e feridos.
Mais perigosos que os “drones kamikazes” são os mísseis. Três meses antes da minha chegada à Kyiv, a Rússia lançou sobre o maior hospital infantil de Kyiv um míssil Kh-101. Com quase 8 metros de comprimento e cerca de 400 kg de carga explosiva, a bomba devastou uma ala inteira de um dos prédios do complexo, matando dois adultos e ferindo mais de cem pessoas, muitas delas crianças.
Quando os mísseis e drones russos zunem no céu, Kyiv torna-se palco de uma guerra à la Matrix, em que a matança real parece se confundir com um videogame: soldados pilotam drones de vigilância usando óculos de realidade virtual, joysticks e tablets; drones ucranianos caçam drones russos; aplicativos de celular monitoram as atividades do inimigo. Assim que os radares detectam um artefato explosivo voando na direção da cidade, uma sirene soa, em volume muito alto e por um tempo prolongado, nos alto-falantes instalados nas ruas e nos prédios – e agora também nos celulares. Desenvolvido com o patrocínio do Ministério da Transformação Digital da Ucrânia, o aplicativo Air Alert avisa sobre a iminência de um bombardeio. O celular vibra, a sirene toca e uma voz grave surge ao fundo, dizendo:
“Atenção. Alerta de ataque aéreo. Dirija-se ao abrigo mais próximo. Não seja descuidado. O seu excesso de confiança é a sua fraqueza.”
A voz é a do ator Mark Hamill – que interpreta o personagem Luke Skywalker de Guerra nas estrelas –, que, num ato de solidariedade ao povo ucraniano, topou gravar o alerta utilizando falas adaptadas do filme de George Lucas (parece brincadeira, mas o chiste fez disparar o número de downloads do aplicativo). Findo o perigo, os celulares voltam a vibrar, e Mark Hamill/Luke Skywalker anuncia: “Alerta encerrado. Que a Força esteja com você.” Podemos então sair do abrigo.
Nos meus dias em Kyiv, o alerta soou no meu telefone quase todas as madrugadas, obrigando-me a abandonar a estreita cama no Hotel Amarant e descer as escadas, de pijama, até o abrigo improvisado no subsolo do prédio. Houve noites em que soou mais de uma vez. Às vezes, o alerta durou entre 10 e 30 minutos, mas numa ocasião foram mais de 3 horas ininterruptas, enquanto o céu da cidade era palco de uma batalha.
No bunker do Amarant – que se vende no site Booking como um hotel com abrigo antiaéreo e gerador de energia – tive apenas a companhia de jornalistas húngaros também hospedados ali. Conheci dezenas de kyivanos e poucos deles seguiam as recomendações do alerta. Há quem tenha simplesmente deletado o aplicativo do celular – não por excesso de confiança, mas porque, após mil dias de guerra, há um cansaço com o sórdido jogo de gato e rato ao qual toda madrugada a Rússia submete a Ucrânia. Os kyivanos têm consciência de que o perigo é real. Porém, toda manhã, precisam estar descansados para trabalhar, levar os filhos à escola, fazer compras e ir à academia de ginástica. No final do dia, querem ainda estar com disposição para pegar um cineminha, assistir a uma peça de teatro ou a um concerto, jantar fora… Tudo na cadência Cinderela Black mirror: qualquer programa dura no máximo até as 22 horas. Às 22h30, os últimos clientes começam a se movimentar para ir embora, já ansiosos para chamar o Uber. À meia noite, com o toque de recolher, o encanto da cidade acaba.
Antes da guerra, Kyiv era considerada uma das capitais da música techno do Leste Europeu. Graças em boa medida a um bando de jovens inquietos que, no início dos anos 2010, ocupou um complexo industrial desativado ao sopé da Montanha Shchekavytsia, onde funcionou uma fábrica de fitas de tecido da era soviética. O Closer foi o primeiro club a se instalar naquele labirinto de passagens estreitas e cômodos escuros. A exótica arquitetura do prédio aliada à alta qualidade dos djs residentes atraía um público médio de 1,5 mil pessoas por dia. Às sextas e sábados, da meia-noite até o Sol bater a pino no alto do céu, os ravers se acabavam na pista de tábuas de madeira, ao som do fino house music dos anos 1990 (acid techno, minimal techno e detroit techno). O sucesso do club catalisou o surgimento de uma comunidade underground, que pouco a pouco foi ocupando outros ambientes da fábrica abandonada e montando bares, miniboates, lojas, espaços para performances, salas de debates sobre música e arte contemporânea.
Tudo era festa, tudo era energia ultrajovem, até que os tanques de Putin surgiram às portas de Kyiv. O Closer e seus satélites fecharam. djs e parte da equipe se engajaram nas forças de defesa; alguns optaram por deixar o país. Dos que ficaram, quem não pegou em armas acabou assumindo um papel nos bastidores, sobretudo na preparação de material para a frente de batalha (coquetéis molotov, bloqueios antitanque, redes de camuflagem). Os bares do complexo foram transformados em cozinhas comunitárias que preparavam trezentas quentinhas por dia para alimentar quem atuava na ponta da resistência nas áreas militar e hospitalar. Salões onde antes ribombava o techno passaram a abrigar preleções de recrutas sobre táticas de infantaria.
No segundo semestre de 2022, o ano do ataque, quando ficou patente que o Exército russo podia causar estrago, mas não era capaz de tomar a capital, o Closer foi retomando o funcionamento de forma gradual. “Os jovens queriam dançar”, diz Sergij Vel, fundador do club. “Como não era mais possível fazer as festas de madrugada por causa dos bombardeios, passamos a funcionar aos sábados e domingos entre 16 horas e 22h30. Assim, dá tempo para todos irem para suas casas em segurança”, diz. “Agora, além do techno, já retomamos as apresentações de teatro.”
Em outubro passado, numa tarde chuvosa de domingo, o complexo ganhou um novo inferninho, a Rave Mysterio – um cômodo de menos de 20 m² com paredes de blocos de concreto e decoração em estilo bricoleur (divisórias feitas com cortinas de plástico vermelho e preto, poltronas fabricadas a partir de estrados e caixotes de madeira). “A Rave Mysterio será um lugar de festa para os meus amigos e para os amigos dos meus amigos. A vizinhança também nos ajuda e nós ajudamos a vizinhança. Somos uma comunidade”, diz o proprietário, Andrii Gurtokk, com seus longos cabelos encaracolados, balançando por trás do boné enfiado na cabeça.
Na festa inaugural, Gurtokk pilotou dois velhos decks Pioneer cdj-350 numa mesa de som improvisada; das 16 às 22 horas, o chão tremeu ao som do techno e do breakbeat dos anos 1990. Os dezesseis clientes/convidados/amigos/vizinhos se divertiram, apesar dos rumores de que Kyiv seria atacada com especial dureza naquela madrugada. Seria uma espécie de homenagem macabra da Força Aérea russa ao aniversariante do dia, Vladimir Putin, que completava 72 anos. Ainda no táxi indo para casa, Gurtokk ouviu as sirenes anunciarem o início do assalto aéreo. No fim de noite e durante toda a madrugada, além dos cotidianos drones kamikases, choveram mísseis sobre a cidade, deixando feridos e causando danos.
Todo dia é a mesma coisa, e a vida segue. Depois dos bombardeios, os moradores recolhem carcaças de bombas e pedaços de mísseis, granadas, morteiros e drones kamikases. Juntam tudo num canto bem visível para mostrar que, naquele dia, as armas da Rússia não puderam acabar com a Ucrânia. Às vezes constroem um monumento com o saldo abominável, como fizeram em Irpin, a 25 km da capital. “Nenhum aço é tão forte quanto a nossa determinação”, lê-se no alto da peça, em ucraniano e inglês.
No dia seguinte às bombas do natalício de Putin, reinava a típica pachorra pós-rave no complexo techno que abriga o Closer e a Rave Mysterio. No início da tarde, quando estive lá, o sonolento vigia, metido em velhos trajes militares mal-ajambrados, tentou me convencer a desistir de entrar – era segunda-feira, tudo estava fechado, nada de interessante acontecia ali, me explicou de forma educada. Mas acabou liberando a passagem quando eu disse que queria apenas conversar com os membros da comunidade. Ao contornar a cancela arriada e entrar no terreno da velha fábrica, a primeira pessoa que vi foi Gurtokk, que mal disfarçava a exultação com o sucesso da matinê inaugural da Rave Mysterio. Conversamos um bom tempo sobre seus planos para o futuro e, quando mencionei os bombardeios da noite anterior, ele se mostrou entediado. “É rotina. Eu não ligo mais para os alarmes.”
Despedi-me de Gurtokk decidido a enfrentar o labirinto de túneis escuros do Closer para tentar falar com seu proprietário. Encontrei Sergij Vel no topo de uma escada retocando um minúsculo defeito na parede do salão principal do club. Sem interromper o que fazia, ele me falou de amor, amizade, solidariedade e resiliência. Só depois de um bom tempo, quando a conversa já seguia adiantada, é que desceu da escada. E então falou da mulher e dos filhos que enviou para a Alemanha no começo da guerra (eles continuam lá), dos amigos que foram para o front de batalha e morreram, e sobre o que aprendeu com a reviravolta na vida nesses trinta meses. “Nunca pensei que a guerra chegaria aqui; até a véspera do primeiro bombardeio, eu duvidava. Só fui entender o que estava acontecendo quando, da minha janela, vi as bombas cruzando o céu.”
Vel tem 54 anos estampados em seu olhar zen e na calvície que avança de modo implacável. Nasceu na Rússia e mudou-se para a Ucrânia com os pais quando tinha 7 anos de idade. Na juventude, foi obrigado a voltar à terra natal para cumprir o serviço militar, por dois anos. Desde então, abomina tudo o que diz respeito às Forças Armadas: “Vida estúpida”, resume. Vel volta a subir na escada, mostrando que está verdadeiramente empenhado no conserto do defeito na parede. Entendo o recado e sigo em frente.
Ando pelas ruas de Kyiv até me deparar com três adolescentes à porta de uma confeitaria. Passa um pouco das quatro da tarde. Imitando as coreografias do filme Flashdance com grande potência e gozo, as garotas dançam Maniac, que toca alto no speaker. Um amigo um pouco mais velho, Yehor Bachynskyi, assiste à cena crispado de tanto rir. Atravesso a rua e entro na confeitaria. Segundos depois, estou cavaqueando com Bachynskyi, suas amigas e as atendentes da loja. Por sugestão quase unânime do grupo, experimento o que, naquele momento, acredito ser o melhor macaron de pistache que já havia comido, enquanto Bachynskyi, que agora inicia a vida adulta trabalhando num banco, me ensina: “É preciso viver, é preciso seguir adiante.”
Duas quadras à frente, passo diante de um café muito simpático com parede de tijolinhos brancos. O lugar se chama Shchyro (Sinceramente, em português). Lá dentro, numa grande mesa de madeira, jovens conversam animadamente ou dedilham o teclado de seus laptops em poses cool. Estico o pescoço e flagro, ao fundo do estabelecimento, um casal de crianças que faz cara de nojo quando os pais ameaçam dançar Don’t you want me, clássico do The Human League, de 1981, que toca na caixa de som.
Entro. Ao saber da minha origem, o barista Yavhenii Nihay propõe que eu experimente o expresso feito com grãos do Brasil – “dez de dez”, define ele. Com baladas do The Smiths, The Cure e de David Bowie servindo de fundo musical – sim, a trilha sonora da resistência de Kyiv é composta por hits espertos dos anos 1980 e 1990 –, Nihay e eu conversamos sem pressa, encostados no balcão, ao lado de um vaso de plantas de plástico. Ele conta que o café foi inaugurado há seis meses, na onda dos novos micronegócios que toma conta da capital ucraniana. “As pessoas seguem abrindo suas empresas, ainda que pequenas, como uma forma de dizer que ainda controlam suas vidas.”
Na Ucrânia, quem tem ao menos 35 anos nasceu e cresceu sob a forte influência (quando não sob a mão pesada) de Moscou. Os mais velhos ainda se lembram de quando sua terra natal era apenas uma das repúblicas da União Soviética, a quem deviam obediência. O Kremlin ditava os rumos políticos e econômicos do país e, em nome da russificação, sufocava a língua e as tradições locais.
Em 1991, depois de sete décadas de dominação, a Ucrânia pôde enfim retomar a construção de sua identidade. Não foi um processo fácil. Mesmo após a debacle do império soviético, a Rússia detinha forças (econômicas, políticas e culturais) suficientes para inibir o pleno florescimento da personalidade ucraniana. Até o início dos anos 2000, por exemplo, em muitas universidades do país continuava a ser obrigatório o estudo da língua russa.
Em 2014, quando a Ucrânia ainda gatinhava em busca de sua identidade, a Rússia, sem grande esforço ou reação internacional, tomou-lhe a região da Crimeia. Kyiv foi então sendo engolfada por uma torpe campanha da máquina de propaganda de Moscou que negava a existência de uma identidade ucraniana. Putin em pessoa dizia, publicamente, que a Ucrânia não existia enquanto nação, mas apenas enquanto integrante do “mundo russo”.
Quando os blindados marcados com a letra Z cercaram Kyiv no início de 2022, a imberbe cultura ucraniana pós-soviética se viu novamente em xeque. Jovens de 15 a 30 anos que se preparavam para tomar as rédeas de um país com cultura autônoma se viram então na iminência de voltar à condição de colonizados, como acontecera com seus pais e avós. A identidade ucraniana corria novamente o risco de ser apagada.
De fato, em quase três anos de guerra, as forças de ocupação russas deram especial atenção à destruição do patrimônio cultural ucraniano. Mais de 110 artistas e intelectuais locais foram mortos, assim como 78 jornalistas – vários deles, caçados a dedo pelas forças de ocupação. Pelas contas da pen Ukraine, entidade que agrega escritores, jornalistas e tradutores, setecentas bibliotecas foram total ou parcialmente destruídas desde o início do conflito.
Em um valente trabalho de campo, o Lemkin Society, ong que atua na prevenção de genocídios, já identificou a destruição de dezenas de museus, centros de cultura e sítios de grande valor histórico e artístico, além do roubo de 100 mil objetos de arte. “Não estamos falando de dano colateral. É intencional. A cultura é o alvo”, diz a jovem advogada Halyna Chyzhyk, diretora executiva da entidade. Eu a encontrei numa tarde ensolarada num escritório em Kyiv repleto de caixas e arquivos. “Nosso trabalho é registrar os casos e coletar provas para embasar, em fóruns internacionais, futuros processos legais por crimes contra a cultura”, diz Chyzhyk. “Para conseguir as condenações, a condição básica é provar que os crimes ocorreram de forma sistemática. Nos casos em que estamos trabalhando na Ucrânia, isso não é difícil.”
Na noite posterior ao fatídico aniversário de Putin, eu estava em um dos muitos excelentes restaurantes de Kyiv, numa mesa animada, quando surgiu novamente à baila o tema da estratégia russa de tentar solapar a cultura ucraniana. “Não se trata apenas de uma guerra por território, mas também por identidade. O que a Rússia está fazendo aqui é um genocídio cultural”, me disse Danylo Lubkivsky, diplomata e diretor do Fórum de Segurança de Kyiv. (Parênteses: naquela mesa, entre manjares preparados com delicadeza, acompanhados de um correto vinho branco local, o prato principal mais uma vez era a resistência ucraniana: assim como novos cafés, livrarias e clubs surgem a cada dia, em todos os cantos da capital são abertos charmosos e deliciosos restaurantes, onde são resgatados métodos ucranianos ancestrais de preparo de alimentos.)
No dia seguinte, num giro por duas cidades próximas a Kyiv, eu tive a chance de ver materializada à minha frente o que Chyzhyk e Lubkivsky tentavam me explicar. Irpin (43 mil habitantes) e Borodyanka (14 mil), respectivamente a 30 e 60 minutos de carro da capital, tiveram a desventura de estar no caminho dos tanques russos que, em 2022, rolavam suas lagartas em direção a Kyiv. Ambas sofreram bombardeios massivos e chegaram a ser ocupadas pelas tropas de Putin durante cinco semanas. Em Irpin, as bombas e os mísseis arrasaram o principal hub cultural e social da cidade, a Casa de Cultura, portentoso edifício neoclássico com fachada azul-bebê, construído logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com estátuas de figuras heroicas do realismo soviético à porta. O centro tinha amplos salões, uma escadaria monumental e um auditório para 484 pessoas, onde eram realizadas apresentações de teatro e dança, shows, festas sociais, eventos infantis e aulas de arte. Só sobrou a carcaça do prédio.
Em Borodyanka, a casa de cultura local, mais modesta, teve a mesma sina. Na praça principal da cidade, o alvo foi o busto de um antigo poeta ucraniano – violação que resume não apenas a vilania da agressão, mas também a potência da resistência ucraniana. O que sobrou do monumento em homenagem a Taras Shevchenko (1814-61) continuava na praça quando estive lá, em outubro. O poeta foi retratado com seu farto bigode e os olhos pungentes mirando para baixo, levemente à esquerda. O busto tem dois buracos do tamanho de uma bola de tênis (um na têmpora esquerda e outro no alto da testa) feitos com disparos de arma de grosso calibre. Um terceiro tiro, na nuca, de projétil ainda maior, provocou um rombo do diâmetro de um melão. Ao alvejarem aquela escultura, os invasores russos deram um sinal nada sutil de como Shevchenko, morto há mais de 150 anos, ainda incomoda Moscou.
Poeta, pintor e ativista político, Shevchenko se notabilizou na primeira metade do século xix ao denunciar a cruenta opressão imposta pelo Império Russo. Na prosa, que escrevia tanto em ucraniano quanto em russo, e na poesia, sempre na língua materna, ele exaltava a identidade de sua terra natal e incitava seus compatriotas a lutar pela liberdade. Seu poema Testamento, de 1845, que se firmou como o símbolo maior e atemporal da construção da identidade ucraniana, diz: Quando eu morrer/me enterre/na minha amada Ucrânia […] Oh, enterre-me, e então se levante/Quebre suas correntes pesadas/E águe com o sangue dos tiranos/A liberdade que você conquistou.
Dois anos depois de escrever o poema, Shevchenko foi preso a mando do imperador russo Nicolau I e foi acusado de vários crimes, entre eles o de escrever na língua da “pequena Rússia” (ou seja, a Ucrânia). Mantido em condições degradantes em cárceres nos confins do império, o poeta contraiu reumatismo e escorbuto. Solto dez anos depois, foi forçado a permanecer na Rússia sob forte vigilância. Morreu no exílio aos 47 anos, engolfado em profunda tristeza. Desde então, a mensagem, o exemplo e o sacrifício de Shevchenko vêm sendo cultuados pelos ucranianos. A partir de 1991, quando o país se tornou independente, o poeta foi alçado à condição de figura nacional mais popular (estima-se que haja em todo o território cerca de 1,3 mil monumentos em sua homenagem). O busto na praça de Borodyanka não foi a única escultura do poeta a ser violada nessa guerra.
Movida pelo desejo de sobreviver e afirmar a identidade ucraniana, Kyiv procura, entre 8 e 22 horas, manter sua vibração cultural. “Cuidado com o que vê. Essa maravilha é uma ficção”, alerta o diplomata Danylo Lubkivsky, com voz grave. “Nós ainda estamos em guerra.”
Olena Honcharuk, diretora do Centro Nacional Oleksandr Dovzhenko, a cinemateca ucraniana, descreve como o público cinéfilo de Kyiv mudou desde o início da guerra. Ela conta que, na fase mais dura dos bombardeios, a cinemateca promovia sessões de cinema nas estações de metrô a fim de proporcionar um respiro à população. Agora, diz Honcharuk, com mais de cinquenta salas de cinema funcionando novamente, mesmo que em tempo parcial, o público tem se mostrado bem mais seletivo e crítico, tanto em relação às produções audiovisuais ucranianas da era soviética quanto ao cinema realizado após a independência. “É a decolonização dos olhos”, diz ela.
Não procure livros de Dostoiévski, Tolstói, Górki e Púchkin nas livrarias de Kyiv e nas bibliotecas abertas depois do início da guerra. Não há mais, pelo menos por ora. Assim como não são exibidas peças de Maiakóvski. Ou os filmes de Eisenstein e Tarkóvski, nem mesmo O encouraçado Potemkin (1925), ainda que a famosa cena do carrinho de bebê que despenca pela escadaria continue a ser o símbolo de Odessa, uma das cidades ucranianas mais atingidas nesta guerra.
O cancelamento de autores russos é estimulado pelo governo. Logo depois da tentativa da tomada da capital, o presidente Volodymyr Zelensky assinou uma série de leismedidas visando a “desrussificação” cultural do país, entre elas a proibição de alguns autores e obras, sobretudo contemporâneos. Bibliotecas ucranianas foram orientadas a retirar livros russos de seus acervos, com exceção de obras clássicas consideradas como patrimônio cultural comum (o critério, porém, é vago). Na outra ponta, o governo ucraniano tem subsidiado a publicação de autores nacionais.
Os esforços de Zelensky, somados à rejeição à cultura do invasor que se espraia na sociedade, já apresentam resultados. Os ucranianos estão fartos de qualquer coisa falada ou escrita na língua russa, inclusive os fabulosos clássicos que eles sempre consumiram. Segundo a pesquisa do Info Sapiens, o índice de leitura de obras publicadas na língua russa caiu de 27% em 2020 para 10% no ano passado. O cancelamento dos autores russos também é movido por campanhas coletivas, que resultam na estranheza de se ver até uma livraria (no caso, a Siayvo, de Kyiv) convocando a coleta e destruição de livros russos. Cinquenta mil exemplares foram vendidos como papel reciclado. O dinheiro arrecadado foi doado às forças de defesa ucranianas.
Aviso aos turistas que porventura venham a contratar os serviços da guia ucraniana Olena Oros: não esperem que ela apresente a deslumbrante Catedral de Santa Sofia de Kyiv na língua russa. Ela não o fará. Já o fez (e muito), até porque houve uma época em que metade de seus clientes vinha da vizinha Rússia e das ex-repúblicas soviéticas. A história de Oros é mais uma das que ilustram a transformação pela qual passa a sociedade ucraniana. Em 2022, quando Kyiv estava na iminência de ser invadida, ela deixou a cidade e se refugiou na parte ocidental do país. Voltou dois meses e meio depois e foi gradualmente retomando o trabalho. Nessa fase, os poucos clientes que conseguia arranjar eram moradores da Grande Kyiv interessados em conhecer melhor a história da cidade e do país. Atualmente, com o turismo de lazer praticamente reduzido a zero, Oros faz tours para os turistas acidentais de passagem pela capital (jornalistas, diplomatas, voluntários, pesquisadores). Apenas em inglês e ucraniano.
“Kyiv espera por você após a vitória!”, anunciam (com exclamação) banners espalhados pelo Centro da capital. A mesma expressão foi usada por Oros ao se despedir de mim: “Espero poder revê-lo após a vitória.” Nenhuma vez ouvi de um ucraniano a palavra “paz” – apenas “vitória”. Do diplomata Lubkivsky ao barista Nihay, do bancário Bachynskyi ao servente Ivan Polhui.
Quando estive com Polhui em seu minúsculo vilarejo, Yahidne, a 130 km ao Norte de Kyiv, já próximo da fronteira com a Rússia, ele me levou ao porão do jardim de infância onde foi encarcerado pelos invasores junto dos 360 habitantes da aldeia, o mais novo com 1 ano e 1 mês de vida; o mais velho, com 93 anos. Ele contou como, durante 28 dias, no duro inverno de 2022, o grupo foi mantido naquele cárcere de 198 m² (média de 55 cm² por pessoa), pé-direito baixo, sem calefação, com as paredes impregnadas de umidade e mofo. Segundo Polhui, dez pessoas morreram ali dentro – de desnutrição, de maus-tratos, por falta de medicamentos, por doenças causadas pelo ambiente insalubre ou executadas por soldados russos. Quando ele iluminou as paredes do porão com a lanterna do celular, vi os desenhos a giz feitos pelas crianças (eram 77) e as anotações dos adultos com os nomes das pessoas que iam morrendo. Perguntei como estavam seus filhos e netos que estiveram presos com ele no porão; o servente me fitou com seus olhos tristes e disse: “Todos esperam pela vitória.”
No começo da noite de uma terça-feira de outubro em Kyiv, em uma quadra cimentada entre prédios de um bairro residencial, moradores dependuram nas árvores longas guirlandas de lâmpadas de luz amarela e espalham espreguiçadeiras coloridas, aleatoriamente. Em um pequeno palco, uma banda amadora, formada por quatro músicos muito jovens (rabeca, violino, violoncelo e bubon, uma espécie de tamborim tradicional da Ucrânia), começa a tocar músicas folclóricas.
De óculos escuros e gorro preto, o mestre de cerimônias – definitivamente o mais feliz entre as pessoas tão felizes ali – dá instruções para a dança de roda que começa a se formar na quadra. Garotas e garotos rodopiam de mãos dadas, algumas meninas com longos vestidos rodados de estilo retrô. O microfone falha, a microfonia azucrina, mas ninguém para. Num canto, alheio a tudo, um grupo de adolescentes forma um bolo humano, emaranhado num nó cego de abraços, e canta uma música só deles, de olhos fechados.
Às 22h30, todo mundo se pica dali.
O repórter Lucas Figueiredo viajou à Ucrânia a convite da pen Ukraine.
[1] Kyiv (Київ) é o nome ucraniano da capital que os russos chamam de Kiev (Киев).