Jair Bolsonaro tinha conversado por dez minutos com apoiadores na saída do Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente da República. Chovia naquela primeira sexta-feira de fevereiro, e os simpatizantes foram convidados a se proteger debaixo da marquise da guarita do Alvorada. O presidente tirou foto, falou de futebol, mandou abraço para mãe de eleitor. Já entrando de volta no carro, viu repórteres, fotógrafos e cinegrafistas tomarem chuva alguns metros à frente, em outro cercadinho montado exclusivamente para a imprensa. Enquanto aguardavam para entrevistá-lo, uma jornalista se arriscou a fazer uma pergunta à distância mesmo. “Vocês estão merecendo [resposta]?”, retrucou Bolsonaro de pé, com a porta do carro aberta. “Não”, respondeu um apoiador. “Vou ficar mais tempo aqui só para vocês tomarem mais chuva aí”, provocou o presidente. Um militar que o acompanhava riu, assim como a sua claque. “Chupa, Globo”, vingou-se uma bolsonarista. “Tchau, mito!”, despediram-se.
Dez dias depois, o céu estava claro em Brasília. Apoiadores de Bolsonaro e jornalistas, separados por uma grade baixa, tiveram contato com o presidente ao mesmo tempo. Ele respondia às perguntas da imprensa ao mesmo tempo em que recebia o entusiasmo dos simpatizantes. Mulheres de mais e menos idade se espremiam para ouvi-lo. Ele espontaneamente passou a falar do depoimento de Hans River do Nascimento, ex-funcionário de uma empresa investigada por disparo em massa de mensagens durante a campanha eleitoral de 2018. A prática, ilegal, foi revelada pelo jornal Folha de S.Paulo, em uma reportagem de autoria de Patrícia Campos Mello. No dia 11 de fevereiro, na CPMI das Fake News, Nascimento afirmou que a repórter, à época da apuração, se insinuou sexualmente para ele em troca de informação. Em poucas horas, ao dar publicidade à troca de mensagens e telefonemas entre os dois, a Folha provou o contrário: ele, sim, havia demonstrado interesse, não recíproco, por ela.
Só uma semana depois do depoimento de Nascimento na CPMI, no dia 18, Bolsonaro comentou o caso, na porta do Alvorada, para a claque e os repórteres de plantão. “A jornalista da Folha de S.Paulo, tem mais um vídeo dela aí. Não vou falar aqui porque tem senhora aqui do lado”, começou. E prosseguiu: “[Hans River do Nascimento] fala do assédio da jornalista. Ela queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim.”
A gargalhada das senhoras “ali do lado” foi a que se ouviu mais alto. Mas também riu Tercio Arnaud Tomaz, o assessor do Planalto que gerencia as redes sociais da Presidência e integra o chamado “gabinete do ódio”. Ele filmava a fala do chefe e a publicaria nas redes sociais em seguida. Os bolsonaristas se refestelaram.
Mais uns dias se passaram. Voltou a chover. O empresário Junior Manfrinato, de 52 anos, tinha dirigido uma caminhonete por 1 450 quilômetros desde Tangará da Serra, no interior do Mato Grosso, com o filho, até Brasília. Donos de uma escola de aviação, compareceram a uma reunião da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) na última quarta-feira (19) e aproveitaram para dar um pulo no Alvorada para ver o presidente. O objetivo não era trocar quaisquer palavras com Bolsonaro, mas conseguir uma selfie. “Falar, ele já está falando por mim o que eu gostaria de falar para o Brasil”, comemorou.
Manfrinato acompanha a rotina do Alvorada em transmissões ao vivo que apoiadores fazem por redes sociais. Assistiu ao dia em que Bolsonaro comentou o caso da jornalista e, como seus pares debaixo da marquise do palácio residencial, aprovou. “Cada ser humano tem um estilo, tem que respeitar o desabafo de cada um”, relativizou. “Não vi nenhuma agressão verbal tão expressiva quanto a mídia está colocando. Temos que ver também a situação da jornalista, o que ela provocou lá atrás”, argumentou.
A piauí ia dizendo que a jornalista publicara uma reportagem sobre supostas condutas ilegais da campanha de Bolsonaro, mas foi interrompida. “É o fato, está ali. A gente tem que investigar a causa do fato.” Ecoando o presidente, Manfrinato suspeita, sem apontar provas, de uma motivação política por trás da denúncia. E, como Bolsonaro já fez em 2003 no episódio com a deputada Maria do Rosário – quando disse que ela não merecia ser estuprada– , fala em agressão merecida.
“Vou falar da minha esposa ou da minha mãe. Mesmo se fosse com minha mãe, se ela merecesse ouvir isso [a agressão sexista feita à repórter], eu aplaudiria o presidente. Poderia ser um outro amigo meu [que insultasse sua esposa ou mãe], eu dava os parabéns para ele porque ela mereceu ouvir isso daí”, comparou. “Ah, mas é uma difamação, isso, aquilo”, seguiu, lembrando o argumento dos críticos de Bolsonaro, dos quais discorda. “Mas de repente é um estilo [do presidente]: ‘Olha, gente, por que só eu? Por que vocês só falam de mim? Por que não viram o foco para a jornalista? O que ela falou para que eu falasse isso?’”
Faltaram-lhe palavras para explicar o que justificaria sua mulher ou mãe “merecerem” ouvir uma acusação como a desferida contra Campos Mello. “Aí que tá. Não estudei o caso da jornalista, estou em viagem. Gosto de estudar, gosto de ler pra chegar ao julgamento… Quem sou eu para julgar um presidente? Mas, como eleitor, eu tenho tudo guardado”, contou. Afinal, que atitude de uma mulher seria passível de uma agressão verbal? “Não é agressão”, respondeu o bolsonarista. “É defesa do presidente ou defesa do povo brasileiro”, ele definiu.
A convicção de Manfrinato é o que move as redes sociais bolsonaristas. Os seguidores desse grupo são coesos, agem rápida e uniformemente toda vez que uma polêmica estoura. Um levantamento da consultoria Arquimedes para a piauí mostra que, no episódio envolvendo Campos Mello, a ação sincronizada dos bolsonaristas gerou uma reverberação que, equivocadamente, aparentou ser mais volumosa do que a reação dos que saíram em defesa da jornalista.
Ao analisar um total de 966 mil publicações no Twitter com menções ao episódio, a Arquimedes constatou que ele dividiu a rede: 51% das postagens foram em favor de Campos Mello, e 49% endossaram o discurso de Bolsonaro. É um empate técnico.
Em geral, a estratégia bolsonarista é mais bem-sucedida que a do campo oposto. O ambiente de apoiadores do presidente tem menos influenciadores para aderir a uma determinada campanha – dez a quinze perfis, estabelecidos há cerca de três anos, respondem pela maior parte das interações –, mas geram volume de postagens igual ou maior do que a oposição, segundo a Arquimedes. As redes sociais adversárias são mais dispersas e não têm formadores de opinião fixos; eles variam conforme o episódio.
“O caso da Patricia expõe a polarização total, de gente que defende Bolsonaro incondicionalmente, acredita em todas as suas versões. Mesmo que indícios apontem ao menos para uma dúvida a ser suscitada, eles correm para a rede e já defendem Bolsonaro”, anotou a Arquimedes em relatório sobre o episódio. As publicações no Twitter de maior impacto nesse caso começaram desde o depoimento de River do Nascimento, no dia 11 de fevereiro, uma semana antes de o presidente entrar no ringue. Em comum, elas questionam a veracidade do relato da jornalista e da mídia.
O perfil @Patriotas (205 mil seguidores) fez a primeira publicação de impacto (2,7 mil retuítes) naquele mesmo dia: “Patricia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, tentou trocar favores sexuais em troca da matéria. Será que vai passar no Jornal Nacional?”.
No dia seguinte, o influenciador @Leandro Ruschel (365 mil seguidores) foi mais longe (4,3 mil retuítes) ao escrever, acompanhado de um depoimento filmado de Marcelo Odebrecht à Lava Jato: “Quem é Patrícia Campos Mello, a jornalista petista que foi desmentida por Hans River na CPI das Fake News? É filha de Helio Campos Mello, dono da finada Revista Brasileira [o nome certo é Revista Brasileiros], que recebeu R$ 1,6 milhão da conta de propinas da Odebrecht, a pedido de Guido Mantega”.
Em geral, as polêmicas de rede social não duram mais do que 48 horas, mas desta vez elas tiveram sobrevida com a declaração tardia de Bolsonaro – numa estratégia vista por críticos como forma de ele desviar o assunto de problemas mais graves, como o envolvimento de um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), com o miliciano Adriano da Nóbrega, assassinado no último dia 9 na Bahia.
No dia 18, horas depois de o presidente se pronunciar sobre Campos Mello, a deputada federal Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal (318 mil seguidores), movimentou o Twitter (e conseguiu 5,5 mil retuítes) quando escreveu: “Em dezembro de 2018, Hans River depôs no MPF (Ministério Público Federal) e falou exatamente o que repetiu na CPMI da censura, chamada de CPMI das Fake News. No entanto, ele está sendo tratado como mentiroso pela esquerda e pela mídia e até por associação de juiz. Ele não tem presunção de inocência? Só quem foi condenado?”.
Nenhuma publicação teve mais repercussão do que uma da própria Campos Mello (14,9 mil retuítes, 103 mil seguidores) no dia do depoimento de Hans River. Ela postou a reportagem com áudios, fotos, telas e planilhas provando que ele mentira. “Agradeço a solidariedade de vocês e peço para que compartilhem, para que o insulto e a narrativa mentirosa não prevaleçam”, escreveu.
O petista Fernando Haddad (1,6 milhão de seguidores), candidato à Presidência em 2018, foi autor de uma das postagens que mais fizeram barulho (1,9 mil retuítes) no seu campo, já na segunda semana de polêmica – o que, por si só, já mostra a dispersão desses seguidores, porque o petista não costuma ter relevância estatística no Twitter, segundo monitoramentos da rede. “Um ser abjeto na Presidência da República”, escreveu Haddad.
Como regra, reverbera mais quem melhor traduz o sentimento de seu grupo nas redes sociais, segundo a Arquimedes.
De volta à marquise do Palácio da Alvorada, o empresário Junior Manfrinato está contente com o que chama de “era Bolsonaro”. A escola que abriu com o filho em 2018 começou com uma frota de duas aeronaves e já conta oito. No início do governo Lula (2003-2010), ele também sentiu bons ventos: abriu uma revendedora de automóveis em São Paulo e teve sucesso. “Até acontecer tudo o que aconteceu, e eu acompanhei a decadência”, lamentou o empresário, que tem o segundo grau completo.
Ele atribui a bonança que voltou a bater à sua porta ao agronegócio, que, otimista com o governo, investe e expande sua produção. “Voltei a ter respaldo do governo nessa era Bolsonaro, e não é financeiro. É o cliente vir até gente com alegria e confiança. São pessoas que acreditaram no governo, que plantavam 30 mil hectares e estão plantando 50 mil, cujos funcionários receberam proposta para ser piloto de avião. Se não tivesse o otimismo com governo, não acontecia isso.”
Manfrinato tem paciência. Até o presidente “saber o que tem na mão, de onde está entrando e de onde está saindo dinheiro”, vai levar “de um ano a um ano e meio” – já foram doze meses desde a posse. O empresário incorporou o discurso anti establishment dos bolsonaristas aguerridos, segundo o qual há uma casta de burocratas e políticos determinados a obter vantagens às custas do Estado. “Vai gerar um monte de conflito isso daí, tem lá pessoas que estão acostumadas com aquilo, isso ainda está acontecendo”, repetiu, ao seu estilo.
Os atritos com a imprensa e com a oposição, para Manfrinato, não refletem o autêntico espírito do tempo brasileiro. “Vocês estão conseguindo desequilibrar, pegando o ponto fraco dele [Bolsonaro], que ele é pá e bola, [primeiro dá uma] resposta, depois pensa o que acontece, assim é o ser humano. Ele é um ser humano que chegou pelo povo, está aqui representando o povo e está agradando muito bem o povo, entendeu?”, encerrou.