Uma das novidades do atual processo eleitoral é o surgimento de diversos grupos oriundos da sociedade civil, suprapartidários, que têm como objetivo promover a renovação da Câmara dos Deputados e das assembleias estaduais. Querem melhorar a qualidade dos nossos representantes em Brasília e nas capitais estaduais.
Ao que tudo indica, gente relativamente jovem, relativamente rica e seguramente bem-intencionada olhou para o Legislativo e não gostou do que viu. Parecem acreditar que se mudarmos as peças no tabuleiro conseguiremos construir uma democracia melhor. É claro que a qualidade dos representantes importa. Mas o que acontece se o problema estiver menos na escolha das peças do que nas regras do jogo? E se a questão realmente importante for a relevância do Legislativo como um todo?
Há duas semanas escrevi neste mesmo espaço sobre o diagnóstico que predomina na ciência política brasileira a respeito das relações entre Executivo e Legislativo, em particular na esfera federal: o presidente da República e um pequeno grupo de líderes partidários na Câmara disporiam de poderes suficientes para ditar a agenda e o conteúdo dos trabalhos legislativos, independentemente da fragmentação de interesses representados no Congresso.
Isso geraria um ganho do ponto de vista da governabilidade: o governo funcionaria, formaria maiorias, conseguiria a aprovação de boa parte da sua agenda. Mas traria custos na outra ponta, a da representatividade e da relevância das diversas demandas da sociedade no Legislativo, para além daquelas expressas na escolha do presidente. No limite, até mesmo a importância das eleições parlamentares pode ser colocada em questão: os poderes do chefe de governo são tais que ele consegue formar maiorias com grande grau de liberdade em relação à composição da Câmara saída das urnas.
A situação é ainda mais grave nas assembleias legislativas, nos estados. Nelas, a preponderância da vontade do Executivo é tamanha que, desde o final dos anos 90, o cientista político Fernando Abrucio passou a se referir aos arranjos institucionais locais pelo termo “ultrapresidencialismo estadual”.
Os governadores dispõem de instrumentos semelhantes aos do presidente para controlar a agenda e os trabalhos parlamentares. Na prática da vida política dos estados, contudo, esses poderes se revelam ainda mais efetivos do que em Brasília. Os legislativos estaduais, escreveu Abrucio em seu livro Os Barões da Federação, não raro acabam desempenhando um papel “em grande medida apenas homologatório” das vontades palacianas.
Mas como se explica essa hipertrofia de poder dos governadores? Uma das razões está no fato de os integrantes das assembleias terem ainda menos autonomia e recursos – tanto financeiros, quanto políticos – do que os deputados federais.
“Em geral, um deputado federal já é um político de carreira, que tem muito mais capital político”, me disse o cientista político Vítor Sandes, professor da Universidade Federal do Piauí. “O deputado federal tem mais acesso a recursos políticos e financeiros, tem maior trânsito junto a financiadores de campanha e mais poder dentro do partido em seu estado.”
Com menos recursos políticos e financeiros, os deputados estaduais, por sua vez, acabam se tornando muito dependentes dos governadores para as suas possibilidades de reeleição. O direcionamento de verbas, obras e atenção do Executivo local para o reduto eleitoral deste ou daquele deputado é decisivo para as chances do parlamentar nas urnas. Não espanta que a maior parte deles troque esse apoio eleitoral decisivo, vindo do Executivo, por votos na assembleia a favor das vontades do governo.
Ao analisar as relações entre Executivo e Legislativo no caso particular de São Paulo, a pesquisadora Ana Paula Massonetto, aluna de Fernando Abrucio na Fundação Getulio Vargas, argumentou em sua tese de doutorado que “o comportamento governista, e a decorrente subserviência do Parlamento, se justificariam pela falta de alternativa à sobrevivência política dos parlamentares”. “O monopólio do governador no acesso aos recursos públicos”, ela escreve, “o coloca em posição estrategicamente favorável para negociar com os partidos e com parlamentares, arregimentando as coalizões paulistas.”
“Qual o papel do Legislativo?”, perguntou Massonetto numa conversa recente que tive com ela, pelo telefone. “Quando você considera a ideia de divisão de Poderes, o objetivo seria o de colocar freios num estado autoritário. Mas não existe freio hoje em dia, nos estados. O Legislativo não tem instrumental para fiscalizar o Executivo. Como pode um governo de coalizão ser o fiscal do próprio governo?”
Além dessa consequência, que diz respeito à divisão de Poderes, o “ultrapresidencialismo estadual” interfere também na relação entre cidadãos e seus representantes. Quando a grande maioria dos parlamentares se alinha às preferências do Poder Executivo em quase todas as questões, será que os seus eleitores estão sendo bem representados?
Por fim, é possível especular sobre uma derradeira decorrência desse ganho de governabilidade nos estados. Não é absurdo supor que esse arranjo político e institucional ajude a explicar a longevidade de grupos políticos específicos em vários estados, verdadeiras oligarquias locais. Como tem sido o caso do PSDB, em São Paulo.
Essa concentração de poderes nas mãos dos Executivos é desejável? O ganho em governabilidade compensa os custos desse arranjo? “Há sempre uma troca, um trade-off, entre estabilidade e representatividade, nas escolhas institucionais”, me disse Sandes.
“Se a gente ganha em estabilidade, perde em representatividade, em pluralidade. Se perdemos em estabilidade, ganhamos do outro lado. O princípio da democracia é o de que as demandas, os diferentes interesses, a pluralidade de ideias e visões surjam e participem da política. Por outro lado, se não houver decisões majoritárias, tomadas de forma estável, não se consegue governar, estabelecer as bases de um governo. O excesso de pluralidade sem decisão gera paralisia decisória.”
Esses são os termos gerais do problema. Mas e a solução particular que o Brasil encontrou para esse dilema? Um sistema eleitoral que promove a fragmentação de partidos e interesses, de um lado, e regras que compensam essa fragmentação, concentrando poderes nas mãos do Executivo em sua relação com o Legislativo, de outro. Esse arranjo tem se mostrado satisfatório? Sandes acha que não.
“Temos um sistema eleitoral muito personalista, e um sistema de governo muito centrado na figura do presidente. As discussões, nas eleições para o Legislativo, não se dão em termos de programas. Já o debate entre o Executivo e o Legislativo, em particular no plano federal, é programático. Esse gap entre as duas arenas, eleitoral e governamental, potencializa o descrédito das instituições representativas – que é um fenômeno mundial – no caso do Brasil. Esse gap entre o que o cidadão deseja e o que as instituições entregam faz com que os cidadãos brasileiros tenham cada vez mais desconfiança do sistema político.”