Há dez anos, Janio Ramos de Oliveira comprou 30 hectares de terra no Parque Nacional da Chapada das Mesas, no Maranhão. É uma região turística, conhecida por suas belezas naturais, com cachoeiras e morros escarpados em forma de mesetas, tudo cercado pela vegetação típica do Cerrado. O preço foi uma bagatela – 18,3 mil reais, em valores corrigidos – e havia razão de ser: o parque é uma unidade de conservação federal e, portanto, a venda de terras ali é proibida. Mas Oliveira não se constrangeu: tendo encontrado um posseiro que lhe oferecesse o negócio, não apenas comprou um terreno como o equipou com casa, barracão e curral para criar gado. Às margens do Rio Farinha, que passa pelo parque e é o principal curso d’água da região, derrubou seis hectares de mata nativa para fazer pastagem.
O poder público não demorou a notar o crime. Naquele mesmo ano de 2013, pouco depois de Oliveira se instalar na região, fiscais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) constataram a depredação e tomaram providências: embargaram a área que havia sido desmatada e multaram Oliveira em 60 mil reais por danos à flora, conforme documento obtido pelo Data Fixers, projeto jornalístico que investiga crimes ambientais. A multa, como acontece tantas vezes no Brasil, não foi paga e acabou prescrevendo depois de cinco anos – prazo máximo que o Estado tem, por lei, para cobrar multas por infrações ambientais.
O embargo, que significa a proibição de qualquer atividade econômica na área, não prescreve. Oliveira, no entanto, retomou suas atividades sem ser incomodado, depois daquele revés momentâneo. Em fevereiro do ano passado, uma equipe de fiscais voltou ao parque e constatou que ele não apenas continuava criando gado ilegalmente, como havia aprimorado, nos últimos dez anos, a infraestrutura da propriedade, com melhorias na casa e no barracão. Mais do que isso: em frente à casa, no meio do parque público, havia agora uma pista para pouso de aviões.
Ali, embora a presença de Oliveira já fosse conhecida das autoridades ambientais, criou-se nos últimos anos uma lucrativa rota de tráfico de drogas. Passavam por aquela pista toneladas de cocaína embarcadas em aviões que saíam da Bolívia e percorriam uma rota meticulosamente calculada até o Nordeste brasileiro. O caso, que já era investigado pela Polícia Federal sem que os fiscais do ICMBio soubessem, é exemplar de como a grilagem de terras, a pecuária, o garimpo e o tráfico de drogas muitas vezes andam de mãos dadas no Brasil.
Oliveira, o pecuarista, respondia a ordens de Paulo Márcio Ribeiro Santos, traficante conhecido pelo apelido de Cabeludo, de acordo com a Polícia Federal. Segundo a investigação, era ele, Santos, quem supervisionava toda a cadeia de transporte da cocaína boliviana. Funcionava assim: aviões do grupo criminoso (eram ao menos dezesseis, segundo a Polícia Federal) decolavam da Bolívia, do Peru e da Colômbia carregando, em média, 400 kg de cocaína. Pousavam na Terra do Meio, unidade de conservação federal no interior do Pará onde os traficantes construíram três pistas de pouso. De lá, as aeronaves faziam um segundo voo, dessa vez até a divisa dos estados do Maranhão e Tocantins, onde havia mais pistas de pouso clandestinas – entre elas, a de Oliveira, na Chapada das Mesas. Ao fim da jornada, o entorpecente era levado de carro ou caminhão a Fortaleza (CE), onde a maior parte do volume era exportado para a Europa.
O esquema era próspero. Segundo a PF, em apenas dois dias, em 2019, o grupo chegou a transportar 3 toneladas de cocaína, uma carga avaliada em 24 milhões de reais no Brasil. Santos não era dono das drogas; apenas oferecia frete aéreo para traficantes brasileiros e de outros países. Cobrava 1,3 mil reais por quilo transportado. Sendo assim, a cada voo carregado com 400 kg de cocaína, ele faturava 520 mil reais brutos. Os policiais suspeitam que parte dessa fortuna era lavada com ouro extraído de garimpos na Amazônia. Essa combinação entre tráfico internacional, grilagem, desmatamento de terras públicas e garimpo ilegal foi resumida por um dos integrantes da quadrilha com um neologismo: “agropó”.
“Quero meter [dinheiro] é no agropó”, disse o pecuarista Wallveber Sales da Rocha, responsável pelo abastecimento das aeronaves, numa mensagem de WhatsApp obtida pelos investigadores. Rocha já teve outros entreveros com a lei. Em 2012, uma fiscalização do Ministério do Trabalho encontrou nove trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma de suas fazendas. Apesar disso, é um pecuarista bem-sucedido: entre 2018 e 2022, Rocha vendeu mil cabeças de gado no Tocantins, segundo levantamento feito pela Center for Climate Crime Analysis (CCCA) a pedido da piauí. O pecuarista não foi localizado pela reportagem.
A criação de gado, meio no qual são comuns transações pouco transparentes, muitas vezes apenas simuladas, é comumente usada no Brasil para lavar dinheiro oriundo de crimes. “O que antes pareciam crimes autônomos, o delito comum e o de natureza ambiental ou mesmo trabalhista, têm se unido com uma velocidade espantosa na Amazônia”, diz Aiala Couto, geógrafo na Universidade Estadual do Pará que estuda as redes criminais na região Norte do país. Esse processo, segundo ele, se intensificou durante o governo Bolsonaro, devido ao desmonte dos órgãos de vigilância ambiental, como o Ibama e o ICMBio, e ao avanço do garimpo ilegal.
Um estudo do Mapbiomas divulgado no início do ano constatou a existência de 2.869 pistas de pouso na Amazônia, das quais 804 ficam em áreas de preservação ambiental. Entre elas estão a de Janio Oliveira, na Chapada das Mesas, no Maranhão, e as de Paulo Márcio Ribeiro Santos, na Terra do Meio, no Pará.
A mão de obra do tráfico era recrutada, em parte, nos garimpos amazônicos. Santos tinha preferência por jovens pilotos que já tinham trabalhado na exploração do ouro, acostumados a uma rotina insalubre. Pagava a eles 50 mil reais por frete. Uma remuneração elevada, mas que vinha com riscos também elevados. A fim de suportar o máximo de cocaína possível, os aviões, todos de pequeno porte, eram modificados: a estrutura de pouso era reforçada, os bancos traseiros retirados para dar lugar aos fardos da droga, e o sistema de abastecimento adulterado para garantir maior autonomia de voo. Acidentes eram frequentes: nos últimos anos, cinco pilotos morreram transportando cocaína para Santos. Em fevereiro de 2020, a mãe de um deles recebeu a notícia da pior maneira possível: um integrante da quadrilha mostrou para ela, no celular, a foto do filho carbonizado ao lado da fuselagem do avião em cinzas, na Bolívia. Ela nunca soube o paradeiro do corpo.
No Pará, as três pistas de pouso na Terra do Meio, onde Paulo Santos se instalou, formavam um triângulo, distantes cerca de 30 km uma da outra. O local, tomado por mata fechada e de difícil acesso, era permanentemente vigiado por olheiros armados com fuzis, conforme consta no inquérito da PF. Quando equipes do Ibama apareciam por ali, os olheiros eram orientados a dizer aos fiscais que as pistas serviam ao atendimento de indígenas caiapós da terra indígena vizinha, Baú.
A Polícia Federal identificou dez homens responsáveis pela manutenção dessas pistas, entre eles José Gomes Ferreira, o Zé Pifânio, e Eloir Rosa da Silva, o Carlão. Ambos se declararam donos de uma área dentro da floresta estadual do Iriri, vizinha à Terra do Meio, no Pará. Eles mesmos registraram a posse dessas terras no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – sistema criado pelo governo federal para inibir o desmatamento, mas que na prática tem sido usado por grileiros para dar um verniz de legalidade à posse irregular de terras. A PF suspeita que essas propriedades, tanto de Zé Pifânio quanto de Carlão, serviam para armazenar cocaína trazida da Bolívia. A maior é a de Carlão, com 32,3 mil hectares; a de Zé Pifânio tem 1,5 mil. Ambas estão cobertas de floresta, sem indício de desmatamento (Zé Pifânio foi autuado pelo Ibama em 2007 por desmatar 4 hectares na Terra do Meio, mas em outro local).
Carlão é, segundo o Ministério Público, um conhecido pistoleiro que costuma vender seus serviços criminosos a fazendeiros e grileiros da região. Entre 2011 e 2016, trabalhou como segurança na fazenda Goiânia, pertencente ao empresário Bruno Peres de Lima. A propriedade fica no complexo Divino Pai Eterno, área pública de 9,8 mil hectares destinada pelo governo federal à reforma agrária e parcialmente ocupada por trabalhadores sem-terra em São Félix do Xingu. Segundo investigação feita pela Polícia Civil em 2017, Carlão chefiava um grupo de pistoleiros que ameaçava constantemente os sem-terra. Em novembro de 2015, segundo os investigadores, ele intermediou a contratação por Lima, seu então chefe, de um grupo de sete homens armados que sequestrou e agrediu um grupo de sem-terra e, em seguida, assassinou um deles. Lima, Carlão e um dos sicários são réus em uma ação penal por esse homicídio. O caso ainda não foi a julgamento. Carlão também é réu em outro processo criminal por tentativa de homicídio a um sem-terra no Divino Pai Eterno. Ultimamente, além de cuidar das pistas de avião que servem ao tráfico, Carlão tem negociado ouro oriundo de garimpos ilegais do Pará, segundo a PF.
Zé Pifânio, por sua vez, auxiliou Santos na compra de fazendas na região de São Félix que servissem tanto para a descida dos aviões quanto para a lavagem de dinheiro do tráfico por meio da criação de gado. Um investimento do “agropó” por excelência. “Fui lá olhar o negócio, viu? Lá é bom, viu, meu chefe, o trem lá tem futuro, falta só limpar a estrada lá, mas é bom. […] O vizinho mais perto 10 km” [sic], escreveu Pifânio para o chefe, em maio de 2020. Ele se referia à fazenda Reunidas, que tempos depois foi adquirida por Santos pela soma de 1,3 milhão de reais.
Ouvido pela piauí, o advogado de Zé Pifânio, Rogério Rodrigues de Paula, negou envolvimento do seu cliente com o narcotráfico. “Ele é uma pessoa muito simples, que apenas cuidava da fazenda [Reunidas]. Lógico que descia avião lá, mas ele não tinha conhecimento do que se tratava.” Por duas semanas a reportagem tentou contato com Carlão, mas não conseguiu encontrar números de telefone atualizados. O advogado que o defendeu nas ações penais por homicídio informou que não trabalha mais para ele e não soube identificar seu atual defensor.
Quando reuniu 4 milhões de reais em espécie, oriundos em boa parte do tráfico, Paulo Santos quis lavar o dinheiro também por meio da compra de ouro. Com esse objetivo em mente, em maio de 2020, entrou em contato com um subordinado de Pedro Emiliano Garcia, garimpeiro de quem tinha comprado um avião tempos antes. Há pelo menos três décadas, Garcia explora ouro ilegalmente na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, e não hesita em usar violência contra os nativos da região. Em 1993, 24 garimpeiros, entre eles Garcia, promoveram uma chacina que vitimou ao menos dezesseis yanomamis. Entre os mortos estavam três adolescentes, duas idosas, quatro crianças e um bebê. O caso ficou conhecido como massacre de Haximu. Passados três anos do crime, Garcia e os demais garimpeiros foram condenados por genocídio. Em 2020, Garcia voltou a ser preso, dessa vez ao ser flagrado com dois quilos de ouro de origem ilegal em sua casa, em Boa Vista.
A negociação entre Santos e Garcia acabou não indo adiante. Mas o volume de dinheiro vivo em posse do traficante deu uma amostra, para a Polícia Federal, do tamanho de seus negócios. Ele passou a ser acompanhado de perto pela PF.
Santos, na verdade, já estava no radar da polícia havia dez anos, mas não era considerado uma figura relevante. Na época, trabalhava para o piloto do tráfico Elvis Moreira Rocha. Sua função era recolher o dinheiro dos compradores de cocaína no Maranhão e Ceará e entregar a Rocha, a quem cabia levar o faturamento para os fornecedores na Bolívia e, de lá, retornar com mais cocaína. Em 2016, a PF deflagrou a Operação Cardeal, cumprindo mandados de prisão contra 28 acusados de tráfico e lavagem de dinheiro. Santos estava entre eles, mas conseguiu fugir. Em decorrência da investigação, foi condenado na Justiça de Rondônia a quarenta anos de prisão por tráfico internacional e lavagem de dinheiro. Depois disso, arrumou documentos falsos e passou a se apresentar como Antonio Ribamar dos Santos (curiosamente, preservou o último sobrenome). Não tardou a retomar os negócios: comprou aviões para transportar cocaína e montou uma base de operações em Araguaína, município no Norte do Tocantins. Foi assim que Santos, até então um peixe pequeno aos olhos da PF, tornou-se chefe de uma operação de tráfico.
Seu esquema vinha passando despercebido pelas autoridades até que, em 2020, a movimentação crescente de voos no aeroporto de Araguaína chamou a atenção de policiais federais baseados na cidade. Os agentes passaram a vigiar discretamente o local e, certo dia, conseguiram fotografar o chefe do esquema. Ao inserir as fotos em um programa de reconhecimento facial da PF, o delegado Allan Reis de Almeida descobriu que não existia nenhum Antonio Ribamar: tratava-se de Paulo Santos, o traficante foragido havia quatro anos. Com o material em mãos, Almeida obteve na Justiça permissão para quebrar os sigilos telefônico e telemático de Santos, enquanto equipes da delegacia passaram a seguir os passos do traficante.
Em novembro daquele ano, ao analisar as antenas de celular utilizadas por Santos, a PF descobriu que ele estava na região de São Félix do Xingu, próxima à Terra do Meio, onde mantinha suas pistas de pouso clandestinas, até então desconhecidas da polícia. O traficante tinha acabado de despachar 815 kg de cocaína em um caminhão com destino ao Ceará – devido às intensas chuvas do inverno amazônico, não fora possível levar a droga usando aviões. Os policiais federais, ao tomarem conhecimento disso, notificaram a Polícia Militar, que, no dia 5 de novembro, apreendeu o veículo com a droga em Tucumã – o motorista morreu em uma suposta troca de tiros com os agentes. No dia seguinte, Santos foi finalmente preso em flagrante em Araguaína (TO). Ele segue preso até hoje e é réu em ação penal na Justiça estadual do Tocantins, acusado de tráfico de drogas.
Ao ver o comparsa sendo preso, Wallveber Sales da Rocha, o pecuarista que cunhou o termo “agropó”, cogitou uma operação para resgatar Santos da carceragem da PF em Araguaína. “Já tô pensando é de juntar com os cara aí e ir lá e libertar o Cabeludo [Santos] lá da PF. Chegar lá, vinte cara armado com fuzil. Mete bala ali. Liberto o Cabeludo. Boto o Cabeludo no [avião Cessna] 210 aí. O Cabeludo rasga para a Bolívia. Vai ser feliz, Cabeludo… Em outro lugar”, disse Rocha em um áudio de WhatsApp obtido pelos policiais. Ao saber disso, a Polícia Federal transferiu Santos para um presídio estadual e o plano de Rocha acabou abortado.
A fase ostensiva da operação da PF de Araguaína contra o esquema liderado por Santos foi deflagrada em abril último. Foram cumpridos 28 mandados de prisão preventiva e 95 ordens de busca e apreensão em treze estados. No último dia 24, o Ministério Público Federal denunciou os alvos da operação à Justiça, mas os procuradores do caso não quiseram informar à piauí quem foi denunciado e por quais crimes, alegando sigilo do caso. A reportagem contatou o escritório de advocacia que atua na defesa de Santos e deixou recado na quinta-feira, dia 24, mas não houve retorno. Um novo contato foi feito na última terça-feira (29), mas ninguém atendeu a ligação. O espaço segue aberto para eventual manifestação.
A pista de pouso que Janio Oliveira construiu no meio do parque da Serra das Mesas, Sul do Maranhão, bem como as três pistas da Terra do Meio, no Pará, foram interditadas pela Polícia Federal e, em tese, não podem receber nenhuma aeronave. A PF pediu as prisões de Oliveira e Carlão, mas os pedidos foram negados pelo juiz Victor Curado Silva Pereira, da 1ª Vara Federal de Araguaína.