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Uma canção de Caetano

Quando o galo cantou. Foi esta a canção que mais me agradou no último álbum do Caetano, Abraçaço. A única que eu de fato achei exuberante, simples e excepcional.

Paulo da Costa e Silva | 05 jan 2015_15h30
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Quando o galo cantou. Foi esta a canção que mais me agradou no último álbum do Caetano, Abraçaço. A única que eu de fato achei exuberante, simples e excepcional. Não sei por que, ela me remete às canções que Caetano fez nos anos 1970. Talvez seja a fatura celeste dos versos do refrão – “deixa este ponto brilhar no Atlântico Sul / deixa este cântico entrar no sol, no céu nu” – versos que me trazem à mente a “estrela colorida e brilhante” da qual desce um índio, no “hemisfério sul da América”; ou a “lua de são Jorge”, “cheia branca inteira”, “solta na amplidão”; ou o verso que diz “gente estrela da noite no céu de anis”, da canção Gente; ou a lua refletindo-se, multiplicando-se a si mesma no “lua-lua-lua-lua”; ou ainda as “tais fotografias” nas quais a Terra aparece “inteira”, sem contudo estar nua, “e sim coberta de nuvens”– numa canção que não se cansa de evocar de modo singelamente sensual (“eu estou apaixonado por uma menina Terra”; “Terra para as mãos carícia”, etc.), o nosso malfadado planeta. Tudo isso é anos 1970. O bonito nesse erotismo astral, que de resto não me parece um traço específico da poética de Caetano, é o modo como o baiano brinca com as escalas: como traz para o convívio íntimo signos que pertencem à imensidão sem fim.

Depois do Transa, os discos dos anos 1970 trazem uma atmosfera de ambiente interior, de recolhimento. A voz de Caetano, notou Lorenzo Mammì, é a voz do amigo – uma voz pessoal, íntima, cúmplice. É como se depois de tanta confusão (passeatas, prisão, exílio, rock’n roll, contracultura), ele tivesse voltado para um espaço mais recuado, quase uterino, no qual seria possível pensar o mundo a partir da sala de um apartamento – ou, o que daria no mesmo, a partir do próprio umbigo. Depois da ressaca, a calmaria. Uma disposição mais relaxada em relação à vida, um “quero comer, quero mamar, quero preguiça” (Tempo de estio), que seria lida por alguns críticos na chave conciliatória de uma capitulação política – o abandono das aspirações mais coletivas em prol de um mergulho narcísico. Até São Paulo, em seu frenesi produtivista, seu capitalismo implacável, seria retratada de modo aconchegante e sentimental (em melodia de choro), como local  para ser “curtido numa boa” pelos “Novos Baianos” – não os trabalhadores da construção civil, mas os músicos do momento. Seja como for, assim foram concebidos alguns dos discos de que mais gosto de Caetano – Qualquer coisa, Jóia, Terra (dentro da estrela azulada).

Embora pertença a um disco feito quatro décadas depois, a canção Quando o galo cantou me remeteu justamente a esse período.  Ela nada tem a ver com a fase roqueira do baiano. “O relógio parou, mas o sol penetrou entre os pêlos brasis / que definem sua perna e a nossa vida eterna”: o mesmo entrelaçamento do banal e do sublime, das coisas concretas que existem sob o sol e dos anseios de transcendência (“o que fiz pra merecer essa paz, que o sexo traz?”). Depois de uma série de ilações feitas com palavras que se atropelam, e que descrevem o êxtase amoroso, a espessura do instante, a comunicação direta dos amantes com o Cosmo, somos obrigados a “aturar”  um “deixa o pagode romântico soar”. E ainda tem o “galo” cantando, essa velha e antiquada referência natural da passagem do tempo, coroando o “instante de nunca parar” do casal enlaçado, sua completa indiferença aos destinos do mundo (“deixa o tempo seguir, mas quedemos aqui / deixa o galo cantar”), e que me remete ao canto do galo em umas das primeiras canções do baiano, É de manhã – e, se não for auto-referente, não é Caetano. Em suma, uma das últimas grandes canções que escutei, indecisa entre um “romantismo erótico” e um “erotismo romântico”, daquele jeito que só o “homem velho” de Santo Amaro conseguiria fazer.

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