Retratos de identificação, de Anita Leandro, suscita algumas questões, o que não é dizer pouco diante da pasmaceira predominante no cinema brasileiro. Dada sua importância, o documentário merece atenção mais detida do que a deste post. Ainda assim, fica registrada desde já uma breve impressão inicial.
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e documentarista, com anos de experiência anterior como editora, Leandro recupera fatos ocorridos entre novembro de 1969 e junho de 1976 com os então militantes políticos Antônio Roberto Espinosa, Maria Auxiliadora Lara Barcellos (Dora), Chael Charles Schreier, integrantes da organização armada VAR-Palmares, e Reinaldo Guarany, da ALN.
A partir de fotografias e fichas de identificação do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), além do laudo de necrópsia do Hospital Central do Exército no qual é constatado que Schreier sofreu lesões fatais enquanto esteve sob responsabilidade da Polícia do Exército, na Vila Militar (http://www.ebc.com.br/sites/default/files/autopsia_chael.pdf), o documentário reconstitui o período que vai da prisão de Espinosa, Dora e Schreier, numa casa de subúrbio do Rio de Janeiro, ao suicídio de Dora, atirando-se na frente de um trem, na estação de Neu-Westend, em Berlim.
Retratos de identificação inclui ainda os depoimentos de Dora filmados no Chile, na década de 1970, para os filmes A Report on Torture, de Haskell Wexler e Saul Landau, e Não é hora de chorar, de Pedro Chaskel e Luiz Alberto Sanz. E também depoimentos atuais, gravados por Leandro, dos dois sobreviventes – Espinosa e Guarany –, reagindo às fotos que não conheciam de si mesmos e dos seus companheiros mortos.
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No debate há alguns dias (29/11/2014) no Forumdoc.BH 2014, depois da exibição de Retratos de identificação, Leandro disse que não fez perguntas a Espinosa e Guarany ao gravar seus depoimentos. Diante do fundo branco que identifica as gravações como contemporâneas, em contraposição às lacunas do passado, assinaladas pela tela preta, eles falaram livremente, o que quiseram e quanto quiseram, o que não deixou de causar certa estranheza a um deles. Mas, o espectador não tem como identificar esse método peculiar de encaminhar o depoimento. Daí, a primeira questão: por que não revelar no próprio documentário a opção por evitar perguntas e respostas, procedimento tão esclarecedor sobre quem fala? E também, por que não deixar mais claro que eles estão reagindo a fotos que nunca tinham visto?
Em tempo (1): segundo uma colega, Leandro não teria dito no Forumdoc “que não fez nenhuma pergunta” aos entrevistados. Fica o registro de nossas memórias divergentes. Além disso, minha colega discorda que seja importante revelar o dispositivo adotado nos depoimentos. Para ela vale mais o resultado do método e a qualidade do que é dito. Nesse ponto, discordamos.
Outra questão. A origem das fotos e dos documentos incluídos no filme é informada, o que permite ao espectador lhes dar o justo valor, sabendo que foram produzidos pela polícia e pelo Exército. O mesmo não ocorre, com clareza ao menos, a não ser nos créditos finais, em relação aos depoimentos filmados de Dora. Sem saber quando e em que circunstâncias foram filmados, o espectador não tem como situá-los de forma adequada.
Em tempo (2): minha atenta colega avisa que, ao contrário do que escrevi, os filmes são identificados através de uma legenda superposta à imagem na primeira vez que aparecem. Fui traído pela memória. Apesar do erro cometido no parágrafo anterior, creio que a identificação do título, nome do diretor, país e ano em que a filmagem foi feita não são suficientes para conhecer a origem, motivação e usos dos registros filmados. A legenda funciona como uma nota de pé de página, mas não informa mais do que o nome de quem fez a filmagem, nem com que propósito foi feita, e o que levou Dora a concordar em ser filmada etc.
A terceira questão diz respeito ao tratamento dado às fotografias. Tendo optado por melhorar a “qualidade” dessas imagens com o Photoshop, por que não incluir também as versões originais dos documentos, no estado em que foram encontrados?
Em tempo (3). Minha colega implacável avisa que as imagens não foram “melhoradas” no Photoshop. A única restauração de imagem feita no filme foi dos negativos das fotos feitas quando Espinosa, Dora e Schreier foram presos. E isso só foi feito porque era preciso contestar a falsa informação de ter havido ferimento letal em combate, forjada por um dos assassinos de Schreier. Traído pela impressão causada ao ver o filme, fica aqui a retificação do parágrafo anterior.
Finalmente, a questão da luta armada. Passados mais de 40 anos dos fatos narrados, não seria hora de um documentário como Retratos de identificação problematizar a atuação política dos seus personagens? Leandro reconstitui eventos, edita e colhe depoimentos, o que por si só, no caso, tem seus méritos. Mas ao não questionar documentos e personagens acolhe vestígios e registros atuais pelo seu valor de face, ficando aquém do grande potencial de Retratos de identificação.
Em tempo (4). Ao contrário da minha rigorosa colega, não sei se é suficiente mostrar documentos inéditos e confrontá-los com outras provas e testemunhos. Nesse ponto, ao menos por enquanto, também continuamos divergindo.
Segundo o relato do próprio Reinaldo Guarany, publicado em 1984 em A fuga, o sequestro do embaixador americano, em setembro de 1969, “foi o início do fim, por que dessa ação as quedas sucederam-se como na teoria do dominó”. Passados vinte anos, não é legítimo estranhar que tanto ele quanto Espinosa, este particularmente fantasioso em seu relato digno de Robin Hood, sejam complacentes com seus próprios passados? Nesse ponto, o método de não intervir fazendo perguntas, adotado por Leandro, acaba sendo traiçoeiro, tornando-a conivente com a postura de seus personagens.
Nada do que vai escrito acima pretende negar ou diminuir a importância e o pioneirismo de Retratos de identificação. A valorização feita dos arquivos da ditadura diferencia o documentário e o coloca em plano superior ao que o cinema brasileiro produziu até agora sobre o período. E isso, como escrito no início, não é pouco.
Para concluir, enquanto não assistir de novo a Retratos de identificação, deixo aqui um agradecimento à minha colega que leu e comentou a versão inicial deste post em vez de aproveitar melhor este domingo de céu azul e temperatura amena.