À primeira vista, o documentário holandês Lidando Com A Morte (Dealing With Death, 2020) e Deserto Particular (2021), filme de ficção brasileiro, não aparentam ter semelhanças, exceto talvez o fato de ambos terem sido premiados em festivais europeus (Amsterdam e Veneza), além de estarem sendo exibidos na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Mas aparências enganam, adverte o clichê, e há pelo menos um aspecto que os aproxima, mesmo guardadas suas dessemelhanças.
Os filmes de Paul Sin Nam Rigter – diretor e ator holandês, nascido em 1974 na República da Coreia – e de Aly Muritiba – baiano de Mairi, nascido em 1979 – lidam com iniciativas que, em um caso, demonstram ser inúteis, e, no outro, têm consequências dolorosas.
Em Lidando Com A Morte, tudo começa a partir de decisão política tomada com a melhor das intenções, mas que revela estar desconectada de qualquer demanda real. Deserto Particular, por sua vez, é a história de um ato irrefletido perturbador. Em última análise se trata de uma decisão racional, no primeiro filme, que acaba se revelando aquém de sua grandiosa expectativa, e de um ato impulsivo, no segundo, prejudicial para aquele de quem o personagem principal tem o objetivo de se aproximar. Em outros termos, Lidando Com A Morte e Deserto Particular podem ser considerados variantes de uma mesma premissa.
Premiado como Melhor Documentário Holandês no IDFA – The International Documentary Filmfestival Amsterdam, de 2020, Lidando Com A Morte surpreende ao ser visto agora no Brasil. A iniciativa anterior à pandemia de criar um serviço funerário multicultural em Bijlmer, bairro de Amsterdam onde vivem imigrantes, na maioria do Suriname, das Antilhas e de Gana, contrasta de modo radical com o descaso criminoso da Presidência da República frente aos mais de 606 mil óbitos causados, entre nós, pela Covid-19. Enquanto a Holanda teve ao todo cerca de 18,7 mil mortos do coronavírus e na estatística por milhão de habitantes está na 63ª posição com 1091 mortes, o Brasil ocupa nesse quesito o infame 8º lugar, com 2830 falecimentos.
Não se trata de comparar países tão diferentes quanto Holanda e Brasil, mas é preciso reconhecer que ambos se encontram em estágios civilizatórios diversos, o que salta aos olhos em alguns documentários holandeses, inclusive Lidando Com A Morte.
Deserto Particular, por sua vez, estreou em setembro na 78ª edição do Festival de Veneza, onde recebeu o Prêmio do Público de Melhor Filme na Giornate Degli Autori, e vem de ser escolhido para ser considerado pela comissão da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, sediada em Beverly Hills, na Califórnia, que escolherá os concorrentes ao Oscar 2022 de Melhor Filme Internacional. São credenciais de respeito do filme que tem inúmeras qualidades, entre as quais se destacam os dois atores principais (Antonio Saboia e Pedro Fasanaro) e a fotografia de Luis Armando Arteaga.
O roteiro de Aly Muritiba e Henrique dos Santos, e, em decorrência, a montagem de Patrícia Saramago, no entanto, levantam questões sobre as quais vale refletir.
Salvo vontade de ser excêntrico, qual o motivo de o título e os créditos só surgirem na tela após cerca de 29’ de filme? Dividir a narrativa em duas partes? Sem dúvida. Mas essa maneira de separá-las contribui de alguma maneira para o andamento do enredo? Não creio. A obsessão de Daniel (Saboia) fica clara no plano noturno de abertura em que ele corre em uma avenida deserta de Curitiba e diz em voz off:
Pensei em você hoje enquanto eu corria. Não sei explicar direito, mas eu sempre penso em você enquanto eu estou correndo. Dá uma sensação boa, sabe? Correr e pensar em você… Lembra de quando a gente conversava de ficar sozinho no mundo? E então? A sensação deve ser um pouco parecida com a que eu senti. Sabe o que é que aquela sensação me fez perceber? Que não era só o ar que me faltava. Faltava você.
A rigor, Daniel poderia partir para o Nordeste no plano seguinte. Se o que vem a seguir serve, de fato, para traçar o perfil de um dos personagens principais, por outro lado prolonga além da conta a partida dele à procura “de você” – a desaparecida Sara, com quem ele não consegue entrar em contato. A viagem de carro de Curitiba a Sobradinho, no Norte da Bahia, leva cerca de 6’ de tempo narrativo, duração exagerada, mesmo para dar conta dos mais de 2600 km e das 37 horas de viagem que separam as duas cidades.
Vencidos quase 35’ de filme, Deserto Particular finalmente começa e, apesar de prejudicado pela excessiva duração anterior, consegue se reabilitar. É então que Daniel comete, em nome de sua paixão, o ato impensado de espalhar pela cidade cartazetes com uma fotografia de Sara, pedindo informações a quem souber de seu paradeiro, sem medir as possíveis consequências desastrosas de sua iniciativa.
Por maior que seja o embaraço causado pela iniciativa de Daniel, o roteiro de Muritiba e Santos tem a virtude de não julgar, muito menos condenar, o personagem. O filme supera o agravante e converge para a sequência chave, à beira do lago de Sobradinho, com a barragem ao fundo, em que as motivações psicológicas de Sara – Robson são explicitadas em afirmações que, para alguns, podem parecer profundas: “…o homem quando quer consegue tudo. Até controlar esse rio desse tamanho”; “Eu sou isso aqui que você está vendo, Daniel. Sara, Robson, tanta coisa. Sou que nem esse lago aí embaixo. Um monte de água prestes a arrebentar com tudo e correr solta por aí. E você, quem é, Daniel?”
Falas reveladoras, ainda mais cotejadas às declarações de Muritiba após o prêmio em Veneza e a indicação para Deserto Particular ser avaliado pela comissão do Oscar. É difícil compreender a defesa que ele faz do “amor, em um tempo tão turbulento” por acreditar que “no fim o amor sempre vence! E isso não é só nos filmes, o amor sempre vence na vida real e o amor vencerá inclusive na nossa história política.” (íntegra disponível em
Dizendo-se “cansado de tanto ‘ódio’ e ‘notícia ruim’”, Muritiba decidiu que “Deserto Particular não seria uma obra de ‘resistência’, mas de ‘existência’. Em resumo: uma história de amor em que um raio de esperança parecesse possível no Brasil contemporâneo.” (O Globo, 16/10). Seria interessante saber quando essa decisão foi tomada. Teria sido em 2015, quando o projeto teve início? (ver declaração de Muritiba em https://www.exibidor.com.br/noticias/mercado/12272-34deserto-particular34-e-escolhido-para-representar-o-brasil-no-oscar-2022 ). Remontaria, nesse caso, ao segundo governo Dilma Rousseff, antes de o presidente da Câmara dos Deputados aceitar a denúncia por crime de responsabilidade fiscal? Não teria relação, portanto, com o “ódio” instalado na Presidência da República em janeiro de 2019? Ou seria uma intuição premonitória?
De qualquer modo, em vez de “uma história de amor”, o que se vê em Deserto Particular está mais próximo de uma paixão fugaz.
Alguns dos comentários feitos acima, em especial nos três parágrafos finais, foram abordados domingo passado (24/10) no programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena. Muritiba, Saboia e Fasanaro divergiram cordialmente das questões que levantei. A gravação integral da conversa está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ar9yva4UZ6U .
Já exibidos duas vezes na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ainda haverá uma sessão de Lidando Com a Morte hoje (27/10) no Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 2, às 21 horas; e outra de Deserto Particular dia 30, sábado, no Espaço Itaú de Cinema – Augusta Sala 1, às 13h30. Depois, a estreia de Deserto Particular no circuito de salas de cinema está prevista para 25 de novembro.
Os dois outros documentários apresentados na Mostra a que pude assistir merecem atenção. As Bruxas do Oriente será exibido dias 1 e 2 de novembro, no Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 4 e 3, às 21h20 e 13h30, respectivamente; Quem Fomos terá ainda uma sessão, em 2 de novembro, às 15h30, no Espaço Itaú de Cinema – Frei Caneca 5.
As bruxas, no caso, são as jogadoras japonesas de vôlei que ganharam medalha de ouro nas Olimpíadas de Tóquio, em 1964, ano em que a modalidade se tornou um esporte olímpico. Na final, o Japão ganhou da União Soviética, apesar de a prática de vôlei ser recente no país.
Em Quem Fomos, o avanço tecnológico da humanidade é contraposto à sua capacidade destrutiva, em um grandioso painel de especialistas dedicados à preservação do meio ambiente. Entre eles, a bióloga marinha e exploradora Sylvia Earle especula sobre a razão de a profundidade dos oceanos – “repleta de vida” – permanecer pouco conhecida enquanto as conquistas espaciais prosseguem. Earle pergunta: “O que estamos esperando?”