“Ele falou: ‘Cala a boca, negro.’” Ao final da vitória do Flamengo sobre o Bahia neste domingo (20), o meia Gerson acusou de racismo o atleta colombiano Ramírez, do clube adversário. Na quarta-feira (16), espalhou-se na internet um vídeo com o garoto Luiz Eduardo Bertoldo Santiago, atleta do Uberlândia Academy, que disputava um torneio de futebol em Caldas Novas, no interior de Goiás. Tão logo a partida terminou, o jogador de 11 anos desabou em lágrimas diante dos pais. Não chorava de alegria pela vitória contra o Set Esportes, mas de humilhação pelas palavras de cunho racista durante a partida. “Fecha o preto, fecha o preto”, ouviu. O goleiro Hugo Souza, o Neneca, também do Flamengo, sofreu ofensas raciais pela internet em novembro, depois do jogo em que o atleta perdeu a bola aos 42 minutos do segundo tempo e acabou cedendo a vitória ao São Paulo. “Perdemos por tua causa, seu macaco”, escreveu um torcedor nas redes sociais. Em novembro de 2019, Neneca já amargara o mesmo sofrimento. Ouviu gritos racistas durante a final do Campeonato Carioca Sub-20, contra o Vasco da Gama, vindos de torcedores acomodados no setor social do Estádio São Januário.
Gerson, Neneca e o menino Luiz Eduardo não são casos isolados. Pelo menos 67 jogadores se tornaram alvos de preconceito no Brasil em 2019. A informação é do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, que monitora esse tipo de ataque desde 2014 e publica relatórios anuais sobre o assunto. Seis anos atrás, o projeto sem fins lucrativos detectou vinte episódios de racismo no meio futebolístico do país. O número de casos aumentou, portanto, 235% entre 2014 e 2019. Já as 67 ocorrências do ano passado se revelaram 52% mais numerosas que as 44 de 2018. O relatório sobre os episódios de 2020 ainda não está pronto, mas tudo indica que os números serão menores que os anteriores. A pandemia, afinal, impediu o acesso das torcidas aos estádios. Por enquanto, o observatório identificou vinte casos, a maioria no ambiente online. “Considero uma quantidade alta para o período”, avalia Marcelo Carvalho, fundador do observatório. Os episódios com os jogadores do Flamengo e o atleta do Uberlândia Academy estarão contabilizados no relatório deste ano.
O racismo não é a única forma de preconceito no futebol. Ao longo de 2019, o observatório contabilizou 133 casos de discriminação no futebol, incluindo as machistas, as LGBTfóbicas e as xenófobas. Desses, 118 aconteceram no Brasil e 15 com atletas brasileiros no exterior. O racismo se manifestou em 82 daquelas situações: além das 67 registradas dentro do país, houve mais 15 que se passaram fora do território nacional. A maioria dos insultos raciais aconteceu nos estádios. Apesar do alto número de denúncias dessa natureza, somente dez foram julgadas e punidas pela Justiça Desportiva. As penas ora incidiram sobre a equipe que abrigava os infratores, ora sobre a torcida e ora sobre ambos. Os clubes tiveram jogadores suspensos, perderam pontos ou o mando de campo nas competições e pagaram multas que oscilaram de 400 a 50 mil reais. Em apenas dois casos os torcedores foram punidos e impedidos de ingressar nos estádios. Considerando os 45 casos julgados entre 2014 e 2019, apenas 60% resultaram em alguma sanção para o clube ou o atleta.
De acordo com o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, a discriminação racial será punida se praticada “simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade”. O problema é que a norma não diz o que significa “considerável número de pessoas”. “Num estádio lotado, com 50 mil torcedores, qual a quantidade necessária para um clube receber punição?”, questiona Marcelo Carvalho. Cabe a cada julgador decidir. “A legislação precisa mudar e estabelecer parâmetros mais claros.”
O observatório não só divulga as ocorrências de racismo no futebol amador e profissional como realiza ações para evitá-las, a exemplo de palestras e encontros. O relatório que o projeto faz anualmente em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) se baseia sobretudo em informações colhidas na mídia. Os números apresentados em cada estudo, no entanto, são apenas indicativos de um problema muito maior, já que nem todos os casos acabam denunciados pela vítima e pela imprensa.
Em 2019, o Flamengo manifestou apoio ao goleiro Neneca nas redes sociais. O Vasco da Gama soltou nota afirmando que não compactua com o racismo e lembrando o pioneirismo do clube no combate à intolerância racial, mas dizendo que os seguranças de São Januário não escutaram nenhuma ofensa como as que o atleta mencionou. Alguns torcedores chegaram a duvidar do jogador e dizer que ele estava mentindo. Depois da denúncia de Gerson, o Bahia soltou nota afirmando que afastou o atleta Indio Ramírez e que vai apurar o caso. Segundo o Bahia, Ramírez nega a acusação e terá a oportunidade de se defender. “O clube entende, porém, que é indispensável, imprescindível e fundamental que a voz da vítima seja preponderante em casos dessa natureza”, diz a nota.
O Rio Grande do Sul é o estado em que o futebol mais presenciou episódios de racismo (São Paulo ocupa o segundo lugar). De 2014 até o ano passado, o observatório registrou 44 ocorrências entre os gaúchos – 29,7% do total de casos no Brasil. Juntos, Rio Grande do Sul e São Paulo responderam por 44,6% dos ataques catalogados no país durante o mesmo período.
“Uma das metas do observatório é quebrar o silenciamento que ainda impera no futebol do país em torno do racismo”, afirma Marcelo Carvalho. Não à toa, o projeto incentiva cada vez mais que as vítimas denunciem as ofensas e os clubes se pronunciem contra a discriminação. O zagueiro Paulão, por exemplo, sofreu preconceito de torcedores gremistas quando jogava pelo Internacional em 2014. No ano seguinte, disse que o trabalho do observatório o ajudou a compreender que denunciar é um importante passo na luta antirracista.