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Raoni – dignidade e vilania (mais uma vez)

Ao atacar cacique na ONU, Bolsonaro reafirma seu exercício estabanado do poder

Eduardo Escorel | 02 out 2019_09h04
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Discurso ideológico de ataque à ideologia – um contrassenso, portanto, – foi o que o presidente da República fez terça-feira passada (24/9) em Nova York, na abertura da sessão de debates da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Contrassenso é sinônimo de incoerência, absurdo, contradição, disparate, incongruência, paradoxo, despropósito, insensatez, tolice, asneira, despautério, desatino etc. Espetáculo lamentável, em suma, foi o que houve na ONU.

Não seria preciso dizer nada além do que já disseram comentaristas políticos e cronistas sobre as deficiências do orador, o maltrato da língua portuguesa e a falsidade de vários pressupostos e argumentos do discurso. Basta lembrar que, segundo o presidente, o Brasil esteve “à beira do socialismo”, afirmação feita na primeira frase após o parágrafo de abertura; ou, mais adiante, a declaração que “presidentes socialistas” antecederam o orador na Presidência. Seria o caso de perguntar, perplexo: Como assim? Quando mesmo foi isso? Socialismo? Presidentes socialistas? É preciso ter muita desfaçatez para lançar mão desse conhecido recurso retórico – forja-se um inimigo ou uma ameaça para justificar o terrorismo de Estado.

De um presidente e ghost-writers despreparados não se poderia esperar nada melhor do que o medíocre pronunciamento feito ao mundo. O final do artigo de Maria Hermínia Tavares de Almeida, publicado quinta-feira (26/9) na Folha de S.Paulo, faz uma avaliação lapidar do discurso “defensivo e belicoso” no qual “não é possível encontrar menção aos problemas mundiais prementes, às formas de encaminhá-los de modo mais favorável aos múltiplos interesses do país e tampouco ao papel que podemos desempenhar. E assim faz o país se transformar em figurante sem voz.” Desse modo, além de incoerente, o presidente foi despropositado ao deixar de lado temas adequados à ocasião, ratificando a irrelevância do Brasil no contexto internacional.

Leo Aversa lembrou com razão no Globo (27/9) que “já fomos mais felizes”, referindo-se à apresentação de Gilberto Gil, em 2003, no mesmo plenário da Assembleia Geral das Nações Unidas em que o presidente discursou há dias. Gil, na época ministro da Cultura, além de atuar como músico, cantando e tocando durante quase uma hora, falou em inglês, pouco e bem, naquele dia. Em apenas 35 segundos disse o essencial: “Deixe a música falar. Deixe a música se manifestar. Deixe a música dizer o que paira além das palavras. Deixe que a música eleve a letra, faça fluir a poesia e sustente a elevação do espírito, que impregne esta sala de conflito e disputa, mas também de esperança, com o bálsamo da compreensão e da concórdia.”

Compreensão e concórdia é o que está em falta na Presidência da República. Não satisfeito em alinhavar disparates, o presidente retomou no seu discurso na ONU a agressividade habitual em resposta a reiteradas críticas, feitas pelo líder indígena da etnia caiapó Raoni Metuktire na primeira pessoa do plural em maio, e reiteradas há um mês no The Guardian (2/9). Segundo Raoni, “o presidente Bolsonaro do Brasil está encorajando os fazendeiros próximos às nossas terras a derrubar a floresta – e ele não está fazendo nada para evitar que eles invadam nosso território”.

Ao questionar a liderança de Raoni e levar Ysani Kalapalo para Nova York na comitiva presidencial, o presidente estimulou de forma deliberada a discórdia entre nações indígenas. Kalapalo é moradora de uma aldeia no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, e simpatizante das ações do governo na Amazônia. Destratado como se fosse um inocente útil a serviço de governos estrangeiros, Raoni respondeu no dia seguinte com dignidade e altivez, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Falou em sua língua nativa, com tradução sucessiva: “Eu quero falar para vocês que meu pensamento é tranquilo, que meu pensamento é pela paz. O Bolsonaro falou que eu não sou uma liderança e ele é que não é uma liderança e tem que sair. Antes que algo muito ruim aconteça, ele tem que sair para o bem de todos. Eu volto a repetir que minha fala é para o bem [?], que minha fala é tranquila e não ofendo ninguém. Que todo mundo viva com saúde e com tranquilidade. Essa é a [minha] fala, a [minha] luta. A minha luta é pela preservação do meio ambiente. E hoje todo mundo está com os olhos voltados para a destruição do meio ambiente e o [nosso] trabalho é para fortalecer, para preservar o meio ambiente para todos […].”

Da trajetória de Raoni em defesa da causa indígena, iniciada quando ele tinha menos de 30 anos e esteve com o presidente Juscelino Kubitschek no final da década de 1950, lembro aqui apenas do documentário Raoni (1978), do qual o cineasta belga Jean-Pierre Dutilleux e o brasileiro Luiz Carlos Saldanha são codiretores. Exibido no Festival de Cannes, em 1977, o filme, narrado em português por Paulo César Peréio, recebeu no Festival de Gramado de 1979, os prêmios de melhor filme, fotografia (Luiz Carlos Saldanha), música (Egberto Gismonti) e montagem (Vera Freire), e concorreu ao Oscar nesse mesmo ano.

Marlon Brando é o narrador da versão em inglês de Raoni, além de participar do prólogo, filmado em julho de 1978 quando 2 mil americanos nativos de mais de setenta nações chegaram a Washington D.C., no final da caminhada iniciada em São Francisco, que levou perto de cinco meses e percorreu cerca de 4 800 quilômetros. “A caminhada mais longa” (The longest walk), como é chamada, foi um protesto contra a legislação que estava em tramitação no Congresso e, de acordo com a narração do documentário, “fecharia todos os hospitais, escolas, projetos habitacionais indígenas e, de fato, extinguiria a própria identidade dos americanos nativos como um povo à parte”.

Ainda em off, Brando diz que ele mesmo “veio a Washington para ajudar a chamar atenção para os problemas dos índios das Américas do Norte e do Sul […]”. Sentado no gramado diante do Lincoln Memorial, Brando conversa com os líderes indígenas Greg Zephier e Philip Deer. “Nós provamos aos americanos nos últimos seis meses que muitos de nós não fomos conquistados. Se tivéssemos sido conquistados estaríamos em casa assistindo à televisão”, diz um deles. O outro acrescenta: “A liberdade que buscamos é a que tivemos desde o começo dos tempos. É o direito de ser quem nós somos. Não um tipo de liberdade que outro homem nos concede.” E Brando acrescenta, seguido da sombra de um avião projetada sobre a floresta nas margens do Rio Xingu: “Alguém fica só impondo sua vontade aos outros e não conseguimos entender que haja pessoas em todo parte neste globo que querem simplesmente ser deixadas em paz. Há povos tribais em todo lugar no mundo, agora, lutando por suas vidas, hoje mesmo.”

Embora seja o personagem-título, Raoni assume apenas aos poucos o papel de protagonista do documentário. Só começa a se destacar depois de transcorrido o primeiro terço dedicado à vida e cultura dos caiapós no Parque Indígena do Xingu. A narração explica que “os índios têm uma concepção de autoridade diferente da nossa. Eles não reconhecem nenhuma autoridade política. Quando o chefe fala, seus pontos de vista são sempre desprovidos de interesse pessoal. O chefe nunca pedirá ajuda dos outros para construir uma nova oca, mas esperará até que a construção lhe seja sugerida. O chefe deve ser discreto, eficiente, generoso e ter coragem. Ele não tem qualquer poder para impor ou reprimir. Ele apenas sugere” – lição que detentores do poder brancos fariam bem em assimilar.

Raoni é filmado vendo a floresta ser derrubada por grossas correntes puxadas por retroescavadeiras; ele toma posição conciliadora diante de outros caiapós que propõem matar os brancos (no caso, a começar pelos integrantes da equipe de filmagem); vai ao encontro do general Ismarth Araújo de Oliveira, presidente da Fundação Nacional do Índio, no Posto Leonardo Villas-Boas do Parque do Xingu, e diz a ele que “não podem esperar mais a demarcação das terras”; em resposta, ouve do general pedido de “crédito de confiança” e a promessa de que “vamos procurar resolver o problema de vocês”.

Antes de tomar o avião de volta para Brasília, o general Ismarth declara: “A imprensa falada e escrita pode exercer um papel fundamental na política indigenista. Às vezes, ela ajuda criticando, mostrando a crise, o que está errado” – outro ensinamento útil para quem governa, dado na Presidência do general Ernesto Geisel.

Levado pela equipe de filmagem, Raoni vai pela primeira vez a uma grande cidade. Em São Paulo, encontra Cláudio Villas-Boas, com quem conversa sentado no banco da praça; percorre a exposição de pintura do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand; vê o tigre, no Jardim Zoológico, além dos macacos, da girafa e do hipopótamo; e visita uma aldeia Guarani. O filme termina em Santos, diante do mar que Raoni nunca tinha visto.

Passadas quatro décadas do lançamento do documentário de Dutilleux e Saldanha, a Fundação Darcy Ribeiro propôs a candidatura de Raoni ao Prêmio Nobel da Paz de 2020 por sua luta pelos povos e pela preservação da Amazônia. Conforme declarou Toni Lotar, porta-voz da Fundação, “a nomeação foi inicialmente aceita pelo Comitê Norueguês do Nobel, responsável pela escolha dos laureados, mas resta ainda completar o procedimento formal”. Lotar disse ainda que “o cacique Raoni é um símbolo vivo da luta pela proteção da natureza e dos direitos indígenas. Ele é respeitado mundialmente por uma vida inteira dedicada à sobrevivência de nosso planeta, tão ameaçado pelas mudanças climáticas”.

Ao se preparar para encerrar o recente discurso feito na ONU, o presidente reafirmou a noção que demarca seu exercício estabanado do poder. Trata-se, para ele, de travar uma guerra permanente contra inimigos forjados – neste caso, “sistemas ideológicos de pensamento que não buscavam a verdade, mas o poder absoluto”. Cultura, educação, mídia, meios de comunicação, universidades e escolas são denunciados por terem sido, supostamente, ocupados pela ideologia que “invadiu nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família. Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica. […] A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu”, disse o presidente.

É nesse arroubo ideológico disparatado de crítica à ideologia que a “cultura” é mencionada pela única vez. Engavetada no Ministério monstro da Cidadania, a cultura, e o cinema aí incluído, dá sinais de estar sendo asfixiada. Enquanto isso, o ministro Osmar Terra voltou a se notabilizar pelo silêncio diante da agressão a Fernanda Montenegro feita por um diretor da Funarte, seu subordinado, alegando que as ofensas exprimem “uma opinião pessoal”.

Raoni e Fernanda Montenegro são exemplos de dignidade, ofendidos pela vilania que continua a emanar da Presidência da República e de setores do governo federal.

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