Ao estrear no Festival de Cinema de Sundance, em 2018, as três letras do título original foram suficientes para identificar a personagem central do documentário de Betsy West e Julie Cohen – RBG. Na América é de conhecimento geral que essas são as iniciais de Ruth Bader Ginsburg, juíza da Suprema Corte conhecida por seus fãs como a “notória RBG”.
Depois de ser lançado nos Estados Unidos em maio do ano passado, e exibido pela CNN em setembro, RBG concorreu ao Oscar este ano, chegando a ser apontado como possível ganhador antes de Free Solo (comentado aqui em 27 de fevereiro de 2019) se tornar o franco favorito e acabar recebendo o troféu. Lançado primeiro em 34 cinemas, RBG chegou a ser exibido em 432 salas, permaneceu em exibição durante 23 semanas e rendeu 14 milhões de dólares só no mercado americano.
Lançado por aqui com o título A Juíza em 23 de maio, com poucas sessões por dia em apenas seis cinemas, o documentário não tem recebido a atenção que merece. Nas três primeiras semanas de exibição, foi visto por 4.272 pessoas (no mesmo período, Aladdin foi visto por 3.186.99 espectadores, segundo dados do portal Filme B).
Quem tem mais a perder com a passagem em branco pelas nossas telas da juíza Ruth Bader Ginsburg somos nós mesmos. Vale a pena conhecê-la, mesmo por intermédio de A Juíza, um documentário banal sobre uma advogada e juíza singular cuja atuação profissional, iniciada na década de 70, foi decisiva para assegurar às mulheres igualdade de direitos em seu país.
Quando Ginsburg, juíza de apelação admirada e respeitada, foi nomeada para a Suprema Corte por Bill Clinton, em 1993, o jornal The Washington Post saudou o presidente americano por valorizar “reputação em vez de celebridade”, conforme escreveu Jill Lepore na revista The New Yorker : “Ginsburg era e continua a ser uma scholar”, escreve Lepore, “uma advogada e uma juíza de sofisticação, complexidade e, não menos, contradição e limitação extraordinárias.”
A Juíza permite entrever traços desse perfil, mas sem se concentrar na “reputação” de Ginsburg. As codiretoras West e Cohen fizeram questão de ter acesso à sua vida pessoal e familiar. Assim, deixam de lado o que mais importa em favor de amenidades e flagrantes da célebre personagem em atividades que nada tem a ver com sua atuação pública – fazendo pilates ou mostrando sua coleção de golas de renda, como Lepore assinala com toda razão.
Ginsburg é apresentada no documentário como sendo uma pessoa tímida e reservada, de personalidade oposta à do seu extrovertido marido. Também advogado, ao longo dos anos ele se aperfeiçoou em contar piadas ao mesmo tempo autodepreciativas e elogiosas à mulher. Fica evidente, porém, que ela está longe de corresponder ao perfil usual dos integrantes da Suprema Corte – a maioria não chega a preferir o anonimato, diz Lepore, mas procura permanecer ao menos “em grande parte desconhecida”.
Ícone da cultura pop feminista, Ginsburg marca presença na mídia em diversas manifestações, com algumas das quais colaborou de perto, todas inadequadas para uma pessoa considerada discreta – ela é super-heroína de história em quadrinhos; personagem interpretada por Felicity Jones em Suprema (On the Basis of Sex, 2018), filme biográfico lançado no Brasil em março; foi biografada em Ruth Bader Ginsburg: A Life (2018), de Jane Sherron De Hart, professora de história da Universidade da California (sem edição no Brasil) etc. Amante de ópera, Ginsburg aparece no palco em A Juíza fazendo uma breve cena dialogada de uma ópera, paramentada com figurino e peruca do século XVIII. Nada disso a desmerece, apenas indica a dificuldade de delimitar sua personalidade.
No primeiro plano de A Juíza, Ginsburg diz o que repete adiante no filme e parece ser o lema que balizou sua atuação contra a discriminação das mulheres: “Eu não peço favores para o meu sexo. Tudo que peço aos nossos irmãos é que tirem os pés de nossos pescoços.”
Trata-se, na verdade, de uma versão resumida de uma citação famosa de Sarah Moore Grimké (1792-1873), nascida em Charleston, na Carolina do Sul. De uma família proprietária de escravos, Grimké foi impedida de receber educação formal, mas se tornou abolicionista, advogada e juíza autodidata. Extraída de seu livro Letters on the Equality of the Sexes and the Condition of Woman, de 1838, a versão completa do trecho mencionado por Ginsburg é a seguinte: “Eu não peço favores para o meu sexo. Eu não renuncio a nossa reivindicação de igualdade. Tudo que peço aos nossos irmãos é que tirem os pés de nossos pescoços e nos permitam permanecer eretas nesse solo que Deus nos destinou para ocupar” (tradução por minha conta).
Além de Grimké ter inspirado Ginsburg, elas costumam ser descritas como tendo o mesmo traço de personalidade – a timidez, ou a suposta timidez seria mais correto dizer, pois nunca as impediu de assumir e defender posições contrárias às convenções estabelecidas. A abolicionista e defensora dos direitos da mulher falava para multidões e diante do poder Legislativo do Estado, representando a Sociedade Americana Anti-Escravagista. Para escândalo dos líderes sulistas, Grimké escreveu estar “persuadida que os direitos da mulher, como os direitos dos escravos, só precisam ser examinados para ser compreendidos e assegurados”.
A Juíza falha ao mencionar Grimké apenas de passagem, deixando inexplorada vertente narrativa promissora para conhecer os fundamentos do pensamento de Ginsburg. O documentário fica, dessa maneira, como costuma acontecer, aquém de sua personagem.
Meses antes de ser nomeada para a Suprema Corte, em 1993, Ginsburg deu uma palestra na Universidade de Nova York sobre “a importância da colegialidade no processo decisório, e da moderação de estilo”. Segundo Lepore, “ela invectivou contra a ‘frequência excessiva de opiniões em separado e declarações em tom imoderado’” – posição que algumas ministras e alguns ministros do nosso Supremo Tribunal Federal fariam bem em não esquecer.
Confrontada com a contradição entre a defesa dessa postura de moderação e suas posições na década de 70, em favor da proteção constitucional para mulheres “não obstante o que o resto da sociedade, inclusive o Legislativo, pensavam sobre o assunto”, Ginsburg se esquivou na sabatina de confirmação do Senado americano de sua nomeação para a Suprema Corte: “Eu considerava meu papel naqueles dias como o de uma advogada”, ela disse, e ofereceu, segundo Lepore, “um breve sermão sobre [a necessidade da] reticência”:
“Nós gostamos de viver em uma democracia […] Juízes precisam ser conscientes do seu papel nesse sistema e devem lembrar sempre que vivemos em uma democracia que pode ser destruída se juízes tomam a si a tarefa de governar como guardiões platônicos.”
Nada disso está em A Juíza. É pena. Acredito que ajudaria o espectador a conhecer melhor quem é RBG.