“Vocês deram má sorte com o tempo”, disse a funcionária da Fundação Prada numa manhã de dezembro em que a sensação térmica era de -2°C, “mas tiraram a sorte grande na arte: tivemos dois cancelamentos hoje de manhã”.
A sorte a que se referia Inez, vestida de Prada dos pés à cabeça coberta por cabelo loiro encaracolado, era a de conseguir duas entradas para Carne y Arena, obra de realidade virtual do cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu que está à mostra até 15 de janeiro de 2018 no centro de arte patrocinado pela grife italiana, em um bairro fabril de Milão.
Havia, naquele momento, uma lista de espera de dois meses para pagar dez euros e viver a experiência. A obra estreou no festival de Cannes, em maio de 2017. Passou desde então pelo centro cultural universitário Tlatelolco, na Cidade do México, e no Lacma, em Los Angeles, antes de chegar a Milão. Sempre formou filas de semanas.
Carne y Arena rendeu a Iñárritu seu quinto Oscar (os outros vieram por Birdman, três, e O Regresso, um). Mas o prêmio foi especial, o primeiro fora das categorias habituais desde que John Lasseter terminou Toy Story, o primeiro longa-metragem inteiramente feito em animação computadorizada, em 1995. Isso porque Carne y Arena não é um filme, e sim uma obra de realidade virtual, que trata de um tema bem real.
A carne e a areia do título vêm da experiência de centenas de pessoas que tentaram cruzar a fronteira sul dos Estados Unidos ilegalmente. Depois de ouvir dezenas de histórias, Iñárritu filmou cenas de imigrantes entrando no país, e são essas cenas que os espectadores veem com os próprios olhos e ouvem com os próprios ouvidos.
Cada visitante tem dez minutos cronometrados para ficar no galpão, apelidado pela equipe Prada de “O Depósito”. Antes de entrar, o sujeito é obrigado a assinar um documento que tira da instituição o fardo jurídico de “náusea, desorientação, vertigem, convulsão, dor de cabeça ou perda emocional” que a experiência possa causar.
Após dar conta da papelada, é hora de entrar. A primeira sala tem o desenho de um coração gigante na parede (o órgão anatomicamente correto, não a adaptação para mensagens de texto <3). O átrio e o ventrículo direito levam pichada a palavra “U.S.” (nós, ou uma abreviação de USA, ou Estados Unidos da América). As câmaras esquerdas do coração são cruzadas pela palavra “T.H.E.M.” (eles).
Do vestíbulo, o visitante passa para uma sala de concreto, com bancos de madeira e vários pares de sapatos espalhados pelo chão. Cartazes avisam que aqueles calçados não são cenográficos, foram abandonados por fugitivos no deserto americano, e pedem que se entre descalço.
Um alarme soa, acompanhado por uma sirene de luzes vermelhas. É o aval para se entrar em uma arena onde verá dez minutos do cinema mais inovador que existe no mundo.
Duas instrutoras aguardam. Uma coloca os óculos de realidade virtual, que abraçam a cabeça, enquanto a segunda ajuda a vestir uma mochila pesada, na qual está acoplada uma corda que ela carrega nas mãos, como uma coleira – é para impedir que o visitante trombe com as paredes enquanto estiver na ilusão de que migra pelo deserto.
A miragem é instantânea. Assim que o equipamento é ligado, a sala gelada no norte da Itália vira o deserto no sul dos Estados Unidos. Dezenas de pessoas se materializam, falando em espanhol frases como “Faz dois dias que estou sem comer” e “Quanto tempo falta para chegarmos lá?”
A sessão passa por um problema técnico. No ápice da tensão, quando o grupo de refugiados é interpelado por um esquadrão de policiais americanos, com fuzis em riste e aos gritos de “Para o chão! Para o chão!”, as imagens são substituídas por uma sala de estar de luxo, com um divã roxo e um bar bem suprido.
O visitante, que estava de joelhos para obedecer a ordem dos policiais americanos, é levantado pelas duas funcionárias da Fundação Prada. “Desculpe, tivemos um problema técnico”, diz uma das instrutoras, tirando os óculos e a mochila.
O deserto do Novo México, para onde a realidade virtual havia transportado, volta a ser só uma sala fria com chão de cascalho, enquanto o bug é solucionado. Passados alguns segundos, a experiência recomeçava, com o grupo cruzando o deserto entre queixas de fome, sede e insolação. Spoiler: há mortes nesse filme. Dez minutos depois, deixo a sala com lágrimas nos olhos e com as calças sujas – no joelho.
Os visitantes que saíssem da experiência com o apetite preservado podiam se oferecer uma segunda vivência sensorial cinematográfica, bem mais feliz: comer no café da fundação, um salão em cores vibrantes e muito veludo, projetado por outro homem da sétima arte, o americano Wes Anderson. Não tive estômago para encarar o sanduíche de figo com queijo pecorino e rúcula, por mais bonito que ele estivesse.