Era perto de uma da tarde quando quase cem recrutas da Marinha, a maioria com cara de adolescente, formaram um corredor humano no Salão Verde da Câmara dos Deputados. Vestiam calça e camisa brancas, com chapéu de marinheiro, e se puseram em pé ao longo do tapete vermelho que atravessava o Salão e por onde passariam as autoridades convidadas para a posse do presidente Lula. Eles ficariam em pé ali, estáticos, durante três horas. “Quando ele [Lula] sair, vai ser dado ‘sentido’ e continência. Entendido?”, orientou o sargento responsável pelos recrutas. “Sim, senhor!”, responderam os jovens.
Lula, a essa altura, ainda estava no hotel onde se hospedou em Brasília. Na Câmara, começaram a aparecer os primeiros parlamentares. Marcelo Freixo (PSB-RJ), que perdeu a eleição para governador do Rio de Janeiro e agora assumirá a presidência da Embratur do governo Lula, falou com os jornalistas sobre “a potência do turismo”. Como ele, muitos integrantes do novo governo usaram o Salão Verde para mostrar trabalho em suas áreas.
Questionado sobre o que previa para o futuro de Jair Bolsonaro, que deixou o Brasil às vésperas da posse de Lula, Freixo suspirou: “Tanta coisa boa para falar hoje e vamos falar de Bolsonaro?” O deputado federal eleito Tarcísio Motta (Psol-RJ) foi mais incisivo. “Eu acho que o Bolsonaro vai definhar como liderança política.”
Metade do Salão Verde foi reservada para políticos e assessores. A outra metade, para jornalistas – uma multidão maior e mais diversa que o habitual. Os parlamentares, acostumados a lidar com repórteres de jornalões e grandes emissoras, tiveram de responder a perguntas de pequenas tevês e rádios que foram a Brasília. Petistas e aliados falaram com todos os repórteres – mesmo com os da Jovem Pan, emissora que se alinhou ao bolsonarismo radical. Tudo muito diferente de quatro anos atrás.
“É uma emoção muito grande essa posse do presidente Lula. Nenhuma posse teve a emoção que essa terá”, previu o senador Renan Calheiros (MDB-AL) ao aparecer na Câmara. Abraçou animado o senador Jean Paul Prates (PT-RN), recém-indicado por Lula para a presidência da Petrobras. Estava confortável no mar de parlamentares petistas.
Quando o presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle Pou, apareceu na Câmara, quase ninguém deu bola. Os repórteres e assessores olhavam para seu acompanhante, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que andava lentamente e acenava para os jornalistas. Mujica foi chamado, mas não conversou com os repórteres. Um cinegrafista carregava consigo uma pasta cheia de papéis com um título na frente: “Carômetro – Chefes de Estado.” Era uma lista com os nomes e fotos de todos os líderes internacionais convidados para a posse, para que não deixasse de filmá-los quando passassem pelo Salão. A posse foi acompanhada por 54 chefes de Estado e representantes de países, além da União Europeia.
“Tá chegando!”, gritou um cameraman em dado momento. Lula e Alckmin, acompanhado de Janja e Lu Alckmin, se aproximavam do Congresso no Rolls-Royce presidencial. O senador Jean Paul Prates, que dava uma entrevista, foi interrompido e todas as câmeras se viraram para a Chapelaria da Câmara. “Marinha, sentido!” Os recrutas da Marinha firmaram os braços esticados ao longo do corpo. Figura exótica, o deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), vestido em trajes militares, surgiu caminhando pelo Salão Verde. Falava ao telefone e carregava nas mãos a bandeira de Israel e um exemplar enorme da Bíblia.
Lula chegou num comboio de políticos e assessores. A ex-presidente Dilma Rousseff estava ali, conversando com Jean Paul Prates. O braço de Isidório, esticado para o alto com a Bíblia, se destacava no meio do enxame. Ninguém falou com a imprensa. Foram direto para o plenário. “Esperei desde as onze da manhã pra isso?”, reclamou um cinegrafista, em tom de brincadeira.
Lula tomou posse sentado entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Quem leu o termo de posse foi o deputado federal Luciano Bivar (União Brasil-PE), que cinco anos atrás alugou seu partido, o PSL, para que Bolsonaro se elegesse presidente da República. No outro extremo da mesa estava Augusto Aras, procurador-geral da República que fez o que pôde para travar investigações que corriam contra Bolsonaro. De todos os integrantes da mesa, Aras foi o menos aplaudido ao ser anunciado por Pacheco. Evitou olhar para a plateia.
Quando Lula citou Dilma em seu discurso, foi interrompido por aplausos. Disse que a eleição de 2022 serviu para interromper um “projeto autoritário de poder”. Defendeu o sistema eleitoral e elogiou a atuação do Tribunal Superior Eleitoral (nova salva de palmas). “Não carregamos nenhum ânimo de revanche”, afirmou, “mas vamos garantir o primado da lei”. O petista lembrou que, em 2002, a palavra-chave de seu discurso foi mudança. As palavras deste discurso, destacou ele, eram esperança e reconstrução. Fez questão de assinar o termo de posse com uma caneta que, segundo ele, ganhou de um eleitor em 1989, no Piauí.
Depois de Lula, Rodrigo Pacheco fez um longo discurso. Boa parte dos petistas deixou o plenário nesse momento. Dilma, ao ir embora, não falou com a imprensa, apesar dos pedidos insistentes de entrevista. Mas sorriu e gritou de volta para os jornalistas: “Saudades!”
Em seguida, o ministro do STF Alexandre de Moraes também foi embora, acompanhado de sua mulher. No meio da multidão de jornalistas, um gaiato gritou: “Moraes, eu te amo!” O ministro riu, fez um joinha com a mão e foi embora sem dar declarações.
Ao deixar o Congresso, Lula embarcou novamente no Rolls-Royce e foi levado ao Planalto. Na subida da rampa, ao lado de Janja, Alckmin e Lu Alckmin, ganhou a companhia de oito representantes do povo brasileiro: o cacique Raoni, o influencer Ivan Baron (pessoa com deficiência), o metalúrgico Weslley Rocha, a cozinheira Jucimara Fausto dos Santos, o professor Murilo Jesus, a catadora Aline Sousa, o artesão Flávio Pereira, que participou da vigília em Curitiba quando Lula esteve preso, e o menino Francisco Carlos do Nascimento e Silva, de 10 anos, nadador do Corinthians. Foi deles que o novo chefe do Executivo recebeu a faixa presidencial – ela passou de mão em mão e foi entregue a Lula pela catadora Aline, uma mulher preta de 33 anos. Um acontecimento inédito no Brasil. Bolsonaro se recusou a transmitir a faixa e viajou para os Estados Unidos.
“O presidente recebe a faixa das mãos do povo brasileiro”, anunciou o locutor da cerimônia. Em novo discurso, agora em tom mais emocional, Lula chorou ao falar da fome e da desigualdade. Voltou a dizer que os pobres estarão no orçamento. Falou em unir o país e em responsabilização do governo anterior pelos erros cometidos na pandemia. No gramado, ouviu-se a resposta da plateia: “Sem anistia! Sem anistia!”