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    Foto: Felipe Werneck/Ibama

questões ambientais

Reserva legal, uma ilusão amazônica

Graças a brechas no Código Florestal, a maioria dos fazendeiros na região não é obrigada a preservar 80% de suas terras

Bernardo Esteves e Rodolfo Almeida | 05 fev 2021_08h06
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De acordo com o Código Florestal que começou a vigorar em 2012, quem tiver uma fazenda na Amazônia é obrigado a preservar a mata nativa em 80% de suas terras. Essa faixa de proteção se chama reserva legal e tem valores menores no resto do país – é de 35% no Cerrado e de 20% nos demais biomas. Muitos ruralistas consideram injusta a reserva legal de 80% e tentam flexibilizá-la sempre que a conservação da floresta entra em discussão.

Mas uma análise inédita de 389 mil imóveis na Amazônia revelou que a regra está longe de valer para todos os produtores rurais. O Código Florestal prevê uma série de exceções à reserva legal, que se aplicam a aproximadamente quatro de cada cinco propriedades estudadas. Na prática, apenas 22,75% dos 389 mil imóveis estão obrigados a manter a floresta de pé em 80% de sua área. “A exceção virou regra na Amazônia quando se fala em reserva legal”, diz o engenheiro ambiental Heron Martins, que fez o levantamento a pedido da piauí.

Martins se especializou em analisar imagens de satélite e trabalha para o Center for Climate Crime Analysis, ONG dos Países Baixos que atua em causas jurídicas relacionadas ao aquecimento global. Os resultados  da pesquisa foram apresentados na reportagem A Reviravolta, de João Moreira Salles, publicada na piauí_173, de fevereiro, dentro da série Arrabalde, sobre a Amazônia.

O levantamento se baseou em informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma base de dados em que cada produtor diz ao governo onde estão as áreas desmatadas e protegidas em suas terras. Martins avaliou todos os imóveis no bioma amazônico com CAR registrado até 31 de janeiro de 2020 e classificou-os de acordo com o tamanho da reserva legal, levando em conta as exceções previstas em lei à regra dos 80%.

A restrição não se aplica, por exemplo, aos imóveis menores do que quatro módulos fiscais (o tamanho do módulo fiscal varia conforme o município; na maior parte da Amazônia, o índice fica entre 70 e 110 hectares). Nesses imóveis, o dono só deve preservar as áreas de floresta que estavam de pé até 2008. A parte desmatada antes disso foi anistiada e não precisa ser recuperada pelo proprietário.

As fazendas situadas em municípios que já têm 50% de seu território incluído em unidades de conservação ou terras indígenas também escapam à regra. Ali, os produtores só estão obrigados a preservar metade de suas propriedades. Outra exceção se aplica aos municípios localizados em áreas que o zoneamento ecológico-econômico classifica como consolidadas para a ocupação. Neles, a reserva legal cai para 50% da propriedade. Esse tipo de zoneamento indica quais atividades podem ser realizadas em determinada região para garantir seu desenvolvimento sustentável.

Mas as exceções à regra não derivam exclusivamente do novo Código Florestal, conforme nota Joana Chiavari, advogada especialista em direito ambiental e pesquisadora do Núcleo de Avaliação de Políticas Climáticas, ligado à PUC-Rio. A reserva legal de 80% existe desde 1996, quando foi instituída por uma medida provisória que modificou o Código Florestal de 1965, em vigor na época. Até 1996, a proteção exigida dos produtores na Amazônia era de 50%.

O levantamento de Martins mostra que, graças às exceções previstas pela legislação, quase metade dos imóveis de até quatro módulos fiscais acaba protegendo somente 20% ou menos de sua área. O pesquisador acredita que certos produtores dividiram suas terras de maneira fraudulenta para se beneficiar de uma reserva legal menor. Ele chegou à conclusão depois de notar que pequenas propriedades contíguas e com pastagem contínua estão registradas no nome da mesma pessoa, ou de seus familiares, numa fragmentação que aparentemente só existe no papel (a Folha de S.Paulo denunciou um caso do tipo em 2017).

Martins também chama a atenção para a disparidade da proteção florestal nos diferentes estados da Amazônia. Naqueles que historicamente apresentam as maiores taxas de desmatamento, como Pará, Rondônia e Mato Grosso, as exceções à reserva legal de 80% são mais numerosas. “Isso se dá por questões óbvias”, explica o engenheiro ambiental, lembrando que os produtores desses estados foram anistiados pelo desmatamento ilegal feito até 2008. “O descumprimento da lei foi benéfico para eles.”

Os resultados do levantamento jogam por terra a reclamação dos ruralistas de que são excessivamente penalizados por uma reserva legal muito restritiva. De acordo com a comparação feita em 2016 por Blairo Maggi – produtor de soja que, na ocasião, era ministro da Agricultura –, o produtor rural na Amazônia amarga situação parecida com a do dono de um hotel que só pode ocupar 20% dos seus quartos.

A analogia, no entanto, induz ao erro. Seria mais adequado pensar no comprador de um lote que está sujeito às leis de zoneamento de seu bairro, conforme propõe o pesquisador Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Essas normas urbanas determinam, por exemplo, a área do terreno em que pode haver construção, a distância entre os imóveis de uma rua e as especificações das calçadas. Para Rajão, o desrespeito às regras ambientais na zona rural se compara à ocupação desordenada das favelas nas cidades: “A lógica de que a terra é minha e posso fazer o que quiser dela equivale à favelização do campo.” O professor da UFMG diz que os resultados do levantamento de Martins conferem com os obtidos por seu grupo de pesquisa e ainda não publicados.

O número de propriedades obrigadas a respeitar a regra mais restritiva “é muito menor do que se imaginava”, afirmou a advogada Roberta del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal, depois de avaliar o levantamento. Ela lembrou que as críticas dos ruralistas à reserva legal ignoram que a floresta em pé beneficia o próprio agronegócio. “A lei protege a chuva, a polinização e um monte de serviços ambientais que a floresta presta e que favorecem a atividade agrícola.”

A advogada disse, ainda, que estão em curso inúmeras propostas de flexibilização do Código Florestal, muitas delas fundamentadas nas críticas à reserva legal de 80% na Amazônia. Um levantamento publicado em setembro de 2020 por Joana Chiavari e duas colegas mostrou que, àquela altura, tramitavam no Congresso 56 projetos de lei que pretendem mudar as regras do código. Sete deles podem afrouxar de modo significativo a proteção à floresta.

Del Giudice afirmou, por fim, que os efeitos do aquecimento global devem se acelerar caso o desmatamento aumente. Não à toa, a política ambiental do país vem sendo questionada pela sociedade e por compradores internacionais das commodities brasileiras. “O mundo está mudando, mas infelizmente nosso processo legislativo caminha em outro sentido.”

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