Oengenheiro Daniel Duarte é brasileiro e mora na Bélgica com sua mulher, a ucraniana Olga Lenin. Grande parte da família dela vive no Leste Europeu. A única irmã de Olga, a professora Anna Mamchur, vivia com o marido, Pavel Mamchur, e seus três filhos – de 14, 11 e 3 anos – em Kryvyi Rih, a 400 km da capital Kiev, quando a Ucrânia foi invadida pela Rússia. Duarte percorreu cerca de 1700 km, ao longo de quatro países, para tentar buscar a cunhada e os filhos dela. O marido de Mamchur não os acompanhou, pois os homens estão proibidos de deixar o país. Neste depoimento, Duarte e Mamchur relatam, sob perspectivas distintas, as experiências que viveram até se encontrarem em Rzeszów, cidade polonesa próxima à fronteira com a Ucrânia.
Em depoimentos a Emanuelle Bordallo
Quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022, primeiro dia de conflito
Anna Mamchur – O meu filho havia saído de manhã para ir à escola, em Kryvyi Rih, no sudeste da Ucrânia. No grupo de pais da escola começaram a chegar muitas mensagens do tipo: “ O aluno tal não vai hoje por motivos familiares.” Eu não entendi por que tanta gente não estava indo à escola. Um tempo depois, uma professora escreveu: “Devido à situação militar, todos os alunos devem ficar em casa hoje.” Eu liguei para o meu filho e disse para ele voltar. Foi muito inesperado.
Daniel Duarte – Eu estava em uma viagem a trabalho em Milão, na Itália. Às quatro e meia da manhã de quinta-feira, acordei com muita sede e levantei para beber água. Resolvi abrir o Twitter para ver as notícias. Foi quando soube de tudo o que estava acontecendo. A partir dessa hora, não consegui dormir mais. Voltei para a Bélgica no mesmo dia. À noite, eu e minha mulher, Olga, ligamos para a irmã dela em Kryvyi Rih. A situação estava aparentemente tranquila por lá, mas os bombardeios se espalhavam pelo país. A princípio, Anna, Pavel e as crianças planejavam ir para um sítio pequeno que a família tem na cidade. “Estamos nos preparando para ficar refugiados no porão, porque não sabemos como as coisas estão ainda”, disseram.
Sexta-feira, 25 de fevereiro, segundo dia de conflito
Mamchur – Nós assistíamos às notícias sobre Grózni, na Chechenia, quando os jornais falaram que 10 mil soldados kadyrovanos estavam vindo em direção à Ucrânia. Eles são muito conhecidos pela violência com que atacam e por praticarem tortura. Nesse momento, meu marido disse: “Arrume as malas, arrume as crianças e vão. Saiam da cidade, saiam do país! Os kadyrovanos são muito cruéis.” Ligamos para minha irmã.
Duarte – Por volta das cinco da tarde, Anna e Pavel nos ligaram dizendo que a situação havia piorado. Anna e as crianças iam deixar o país. Eles ainda não sabiam onde iriam se refugiar, e oferecemos nossa casa. Resolvemos que eu iria buscá-los e imediatamente comecei os preparativos para a viagem até a fronteira. Enchi o tanque do carro e mais dois reservatórios adicionais. Olga preparou sanduíches, água e café. Separamos roupas para as crianças, lenços umedecidos, além de almofadas e cobertores, caso fosse preciso dormir no carro. Afinal, eram quase 1700 km de estrada e quatro países para atravessar até chegar a Rzeszow, cidade polonesa perto da fronteira com a Ucrânia, onde eu iria buscá-los.
Mamchur – Sabendo que meu cunhado viria nos buscar, fomos imediatamente, às 18h, para a estação de trem em Krivyi Rih, para pegar o trem em direção a Lviv. Chegando lá, não havia bilhetes disponíveis, mas os operadores nos deixaram entrar mesmo assim no trem devido às circunstâncias de guerra. Viajamos até 14h do dia seguinte, quando chegamos na estação de Lviv – a 900 quilômetros de distância.
Sábado, 26 de fevereiro, terceiro dia de conflito
Duarte – Saí de casa às quatro e meia da manhã. Decidi pegar o caminho mais curto possível, que atravessa Antuérpia, na Bélgica, e vai em direção a Breda, na Holanda. Comecei o trajeto praticamente sem GPS, então me perdi um pouco. Na maior parte do caminho, o clima e a estrada estavam bons. A sonolência e a monotonia foram os maiores desafios. Na noite anterior, eu havia dormido apenas três horas. Em certo ponto na cidade de Dresden, na Alemanha, o tempo começou a ficar nublado, chuvoso. Nas paradas para ir ao banheiro, escrevia para a família. Queria saber se todos estavam bem. Além de Anna e as crianças, nós também temos familiares em Belarus. Sabíamos que eles poderiam acabar sendo envolvidos no conflito.
Mamchur – Em Lviv, a estação de trem estava completamente lotada. Tínhamos que comprar bilhetes para Przemysl, na Polônia, e de lá seguiríamos até Rzeszów. Mas havia tanta gente que a gente não tinha como se mover. Uma fila enorme para comprar bilhetes. Quando cheguei ao caixa, disseram que não havia mais nenhum disponível. Devíamos pedir ao controlador para ir sem bilhetes. Esperamos uma hora na plataforma. O trem não chegou.
Enquanto aguardávamos, conhecemos três estudantes da Nigéria. A estação anunciou mais uma hora de atraso, em ucraniano. Percebi que eles não entendiam o idioma e traduzi. Meu filho mais novo começou a chorar de cansaço. Os jovens ofereceram um chocolate e o convidaram para deitar em uma das malas. Nada de o trem chegar. Até que chegou outro aviso: o trem para a Polônia havia sido cancelado.
Muita gente entrou em pânico. Metade foi embora a pé, a outra ficou. Decidimos ir de ônibus. Fomos para o terminal rodoviário e lá encontramos mais caos. Uma multidão se empurrava para conseguir espaço. Um homem desconhecido, que viu meu filho pequeno chorando, pegou ele nos braços e o empurrou para dentro de um dos ônibus, por cima das pessoas. Depois, ele colocou meu filho do meio. Na hora, meu mais novo começou a chorar e eu fiquei muito preocupada. Não sabia se eu e minha filha mais velha conseguiríamos entrar. Algumas pessoas viram a situação e convenceram os outros a nos deixarem passar. O ônibus começou a andar. Chegando ao Centro de Lviv, ouvimos o alarme de ataque aéreo. As sirenes tocavam muito alto. De repente, ela parou e nós prosseguimos. Estávamos indo em direção a Rzeszów, na Polônia. Em tempos normais, o trajeto podia ser feito em três horas. Logo que saímos da cidade, deparamos com o início da fila até a fronteira polonesa. Ao todo, eram 25 km de carros. Por horas, nenhum veículo se moveu. Muitas pessoas resolveram fazer o percurso a pé. O termômetro marcava -2ºC.
Duarte – Sábado à noite, depois de atravessar Bélgica, Holanda, Alemanha e Polônia dirigindo por 18 horas, cheguei à cidade de Rzeszów, na Polônia. Encontrei um primo da minha esposa, Gregor Biassonau, que é de Belarus, mas estuda turismo em Lublin, na Polônia. Ele também foi ajudar. Vi carros de vários países – todos com pessoas que foram encontrar parentes ou servir como voluntários. Anna e as crianças ainda não haviam atravessado, então fomos para um pequeno hotel. Como tudo estava praticamente lotado, só depois percebi que ele era bem afastado da cidade, em uma zona rural. Dirigi por mais uma hora.
Mamchur – Os policiais rodoviários disseram que provavelmente não chegaríamos até a fronteira e que nos levariam para passar a noite em alguma escola. Nós nos recusamos. Demoraria muito mais tempo. Falamos com o motorista e ele não aceitou. Descemos do ônibus e precisamos negociar com os guardas. Demorou, mas os convencemos a continuar na fila. O motorista, então, decidiu tomar um caminho mais longo, mas que evitaria uma parte da fila. Passamos por um vilarejo, onde o ônibus parou por muitas horas. Os moradores fizeram sopa, cozinharam batatas e trouxeram para a gente. Foi uma bênção. Todos já estavam sem comida. Eu estava sentada nos degraus do ônibus e meu filhinho adormeceu no meu colo. Seguimos viagem no ônibus. Enfim dormimos.
Domingo, 27 de fevereiro, quarto dia de conflito
Duarte – Fui para a fronteira com Gregor de manhã e percebi que eles ainda não tinham chegado. Comecei a me preocupar, estavam demorando muito mais tempo do que outras pessoas que deixaram o país antes. Após aguardar três horas, os guardas disseram que teríamos que liberar caminho. Vimos caminhões da Otan passando.
Mamchur – Ao amanhecer, percebi que o ônibus quase não se movia, estava a 20 metros por hora. Fiquei nervosa, peguei meus filhos e fomos a pé. Havia aproximadamente cem ônibus entre nós e a fronteira. Meus filhos ficaram felizes por finalmente vê-la. Pela fronteira ucraniana passamos relativamente rápido. A fila para mulheres e crianças era separada da dos homens, que tinha muitos estrangeiros. A deles quase não se movia. Andamos mais algumas centenas de metros até a fronteira com a Polônia. Nessa hora, começou a nevar, e meus filhos, já sem forças, choravam. Já estávamos muito cansados. Passamos trinta horas dentro do ônibus para fazer um percurso que normalmente é feito em três horas.
Duarte – Eles decidiram enviar todos que aguardavam para o centro de refugiados, que ficava em um supermercado desativado, em Rzeszów. Encontramos muitas doações e pessoas trabalhando voluntariamente por lá. Conheci um deles, Oscar, que havia dirigido sozinho da Holanda até lá apenas para ajudar. Não tinha parentes, não falava polonês, ucraniano nem russo. Só queria estar à disposição das pessoas. Muitas pessoas me abordaram perguntando se podiam usar minha internet. Vi pessoas ligando para os pais no Paquistão, para a Embaixada do Azerbaijão em Varsóvia e para a família no Marrocos.
Mamchur – Após atravessarmos a fronteira polonesa, precisamos pegar um ônibus até o centro de recepção aos refugiados, a 12 km de onde estávamos, o que demorou mais um tempo. Na maior parte do caminho, pareceu que tínhamos mais chances de não conseguir do que de conseguir. Pensamos muitas vezes em simplesmente voltar para casa. Muitos ficaram para trás por não terem aonde ir. Outros, por não quererem ir a lugar algum, na esperança de que a guerra termine. Depois de mais uma hora, conseguimos chegar ao centro de refugiados. Finalmente encontramos Daniel e Gregor.