São 10 horas da manhã de sábado, 10 de outubro. Neste exato momento, está sendo inaugurada no Instituto Moreira Salles Rio a Ocupação Eduardo Coutinho. Uma hora depois, o Festival É Tudo Verdade iniciará a exibição do curta-metragem inédito Zuza Homem de Mello (2015), de Jorge Bodanzky, em homenagem póstuma ao historiador e crítico musical, sete dias após a sua morte. Em seguida, uma entrevista do diretor dada a Amir Labaki poderá ser assistida. Às 6 horas da tarde, será a vez de Carlos Alberto Mattos, João Moreira Salles e Jordana Berg conversarem no YouTube sobre a finalização de Últimas Conversas (2015), documentário que Coutinho deixou inacabado ao falecer, em 2014. Temos pela frente, portanto, um dia ocupado com evocações.
11h40. Acabo de assistir ao curta-metragem dedicado a Zuza Homem de Mello e à entrevista de Bodanzky – belo e comovente posfácio ao 25º Festival É Tudo Verdade. O filme, que havia sido esquecido, – inclusive pelo próprio diretor, conforme ele contou –, foi resgatado a tempo e Zuza pôde assistir a ele uma semana antes de morrer. É um registro informal, feito na sua própria casa, com ele envolto por sua fabulosa coleção de fotografias, álbuns e música gravada em suportes variados, de discos 78 rpm a CDs. O relato, conduzido com a simplicidade própria de Zuza, é espontâneo, sintético, gravado e editado com a eficiência característica do diretor.
No e-mail que mandou para Bodanzky em 24 de setembro, depois de ter assistido ao curta-metragem pela primeira vez, Zuza escreveu: “Engraçado notar que grande parte do que foi dito acabou ocorrendo nos cinco anos seguintes, entre eles o livro sobre o samba-canção (Copacabana, a trajetória do samba-canção, Editora 34) que não sei se você tem. E agora a biografia de João Gilberto que estou finalizando para ser lançada no início de 2021. Tudo se encaixa nesse seu filme em que tive a honra de participar.”
19h30. Iniciada pontualmente às 6 horas da tarde, terminou há pouco a conversa de Carlos Alberto Mattos, João Moreira Salles e Jordana Berg sobre os dilemas enfrentados para terminar o documentário Últimas conversas, de Eduardo Coutinho. A gravação integral está disponível no site do IMS em www.youtube.com/watch?v=05W9T2QLZHI. Destaco aqui apenas um breve trecho do final da conversa, em que João conta que Jordana e ele entraram na ilha para editar o filme três ou quatro dias após a morte de Coutinho como “uma maneira de estar na presença dele, de estender o convívio. Duro foi terminar. Ganhamos uma sobrevida com Coutinho quando decidimos abandonar a primeira versão editada e fazer outra partindo do zero… Minha impressão é que é um filme sobre o Coutinho, não um filme do Coutinho, um imenso amigo meu e da Jordana”.
Mesmo sem ter assistido ainda a Segredos do Putumayo, de Aurélio Michiles, o crítico e historiador Paulo Paranaguá me escreveu há uma semana (06/10) via WhatsApp que o filme “retoma a trama do romance de Mario Vargas Llosa, O sonho do celta”, e acrescenta não saber “se o cineasta reconhece a dívida”. Ao conferir, verifiquei que os créditos finais de Segredos do Putumayo começam com a legenda “Este filme é baseado no The Amazon Journal of Roger Casement, editado por Angus Mitchell em 1997”. Considerado a maior autoridade em Casement, Mitchell é autor de vários livros sobre ele e é entrevistado em Segredos do Putumayo. Imagino que Michiles possa ter lido O sonho do celta, publicado no Brasil em 2011, mas, tendo começado a ler o livro de Vargas Llosa, cuja edição original é de 2010, não me parece haver dívida a resgatar com o escritor que, inclusive, inclui Mitchell nos agradecimentos que faz no final do romance, junto com dezenas de outras pessoas, bibliotecas e arquivos.
Ao avançar na leitura de O sonho do celta, com o devido cuidado de evitar fazer comentário precipitado, salta aos olhos a dissemelhança entre o romance histórico de Vargas Llosa e o documentário de Michiles, além das diferenças inerentes aos respectivos gêneros. Como é natural, o escritor dedica boa parte da narrativa ao diplomata e nacionalista irlandês, seu fascinante personagem principal, enquanto o cineasta, sem desconsiderar Casement, demonstra maior interesse pelo holocausto da borracha e pela permanência até nossos dias do tratamento inumano dado aos povos indígenas da Amazônia. A substância de Segredos do Putumayo não é o próprio Casement, mas seu relato sobre os horrores do colonialismo que testemunhou no Estado Livre do Congo e no Alto Amazonas, dos quais Vargas Llosa também trata, naturalmente. Michiles, porém, apenas menciona de passagem, já próximo ao final do filme, o escândalo criado pelo governo britânico ao divulgar anotações íntimas de Casement, feitas em seu diário enquanto aguardava o resultado do seu pedido de indulto, após ter sido preso, acusado de traição por sua luta em favor da independência da Irlanda e condenado à morte. Considerados comprometedores, esses registros pessoais teriam influído para que a sentença fosse confirmada. Vargas Llosa, por sua vez, permeia O sonho do celta, desde o primeiro capítulo, de referências ao conteúdo julgado comprometedor dos escritos apreendidos pela Scotland Yard. Após dar essa notícia a Casement, o ajudante do seu advogado pergunta indignado e com a boca torcida, conforme escreve Vargas Llosa: “- Como pôde colocar aquelas coisas no papel, homem de Deus?” No epílogo de O sonho do celta, indo além, Vargas Llosa reproduz o relato do médico que assistiu a execução de Casement e “cumprindo uma ordem das autoridades britânicas que queriam alguma certeza científica em relação às ‘tendências perversas’ do executado… concluiu que essa exploração confirmava ‘as práticas a que o executado aparentemente era inclinado’”. A meu ver com razão, Michiles deixou essas informações fora de Segredos do Putumayo, e eu me pergunto se Vargas Llosa fez bem ao inclui-las em O sonho do celta.
A Ocupação Eduardo Coutinho, o curta-metragem Zuza Homem de Mello e Segredos do Putumayo são atos de resgate da memória, cada um em sua dimensão própria, mas todos três especialmente valiosos por serem feitos em um país renomado não apenas por cultuar o esquecimento, como pela capacidade extraordinária de fabulação de muitos brasileiros, inclusive de integrantes da alta esfera do desgoverno federal. A chamada Lei da Anistia, de agosto de 1979, é um marco desse processo que busca, como se costuma dizer, “passar uma borracha” no passado, ou seja, suprimir fatos comprovados – no caso, crimes contra a humanidade na forma de assassinatos e tortura, e livrar os responsáveis de serem julgados.
O vice-presidente da República, em entrevista ao programa Conflict Zone, da Deutsche Welle (DW), na semana passada, declarou que “lidamos muito bem com essa crise pandêmica” por já termos curado “mais de 4 milhões de pessoas aqui no Brasil”. Classificou, além disso, o notório torturador, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, como um “homem de honra e que respeitava os direitos humanos de seus subordinados” – declaração aberrante, desmentida de forma categórica, entre outros, pelo vereador em São Paulo Gilberto Natalini: “Ustra foi um torturador cruel e facínora. Sou testemunha pessoal disso. Fui torturado pessoalmente por ele.” Quanto ao governo ter lidado bem com a pandemia, as mais de 150 mil mortes de brasileiras e brasileiros falam por si. Fica clara, assim, a importância de impedir que fabulações mentirosas como essas prevaleçam, através de atos de resgate da memória.
Enquanto a Europa e os Estados Unidos enfrentam a segunda onda de coronavírus, por aqui a impressão dominante é que, apesar das milhares de mortes e dos milhões de contaminados, a pandemia acabou ou, pelo menos, está terminando. Será mesmo? O que nos protege das curvas de vítimas fatais e de contaminados voltarem a ter crescimento acentuado, como vem ocorrendo em tantos países? A falta de uso de máscara, ou a negligência ao usá-la, o desrespeito ao distanciamento em locais públicos, as aglomerações nas praias e na frente de bares e boates, a reabertura de cinemas etc. indicam a possibilidade, para não dizer probabilidade, de a situação atual, que continua grave, piorar ainda mais. “No cerne de todo sistema eficaz para deter a propagação da doença está um sistema eficiente de teste e rastreamento. As autoridades precisam ser capazes de ver onde e como a doença está se espalhando, se quiserem ter alguma esperança de contê-la.” (Emma Graham-Harrison, The Guardian, 20 de setembro de 2020). Alguém tem notícia de estar sendo feito um esforço sério nesse sentido, que testes e rastreamentos estejam sendo feitos em quantidade suficiente e de modo adequado, de modo a permitir identificar “onde e como a doença está se espalhando” pelo país? Em relação ao Brasil, Graham-Harrison só tem a dizer que “vários lugares, incluindo a cidade de Manaus, na Amazônia brasileira, viram a doença atingir uma população relativamente desprotegida, mas desde então os casos diminuíram, embora as taxas de infecção não tenham atingido os níveis normalmente necessários para criar imunidade de rebanho. Eles esperam ser poupados de uma segunda onda”. Haverá mesmo quem confie na esperança para não ser contaminado? De minha parte, só o que espero é não continuarmos a perder vidas por negligência agravada pela inépcia de você sabe quem e dos nossos demais governantes em nível federal, estadual e municipal.
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A 9ª edição de Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, iniciada dia 7, segue até 15 de outubro. Realizado online, os filmes a serem exibidos estarão disponíveis no site do Festival onde a programação completa pode ser conferida: www.olhardecinema.com.br. Na sessão de encerramento será exibido Antena da Raça (2020), de Paloma Rocha e Luís Abramo, documentário que recupera diálogos, excertos, cenas dos filmes e entrevistas de Glauber Rocha. O documentário, que integra a seleção oficial da Mostra Cannes Classics, foi apresentado dia 10 no Festival Lumière, em Lyon, terá nova exibição em 18 de outubro e, em novembro, será exibido no Rencontres Cinématographiques de Cannes, entre 23 e 26 de novembro.
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Na próxima terça-feira, 20 de outubro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Bruno Risas, diretor de Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu, filme que cruza a fronteira entre documentário e ficção, e estará disponível na Netflix a partir de quinta-feira (15/10). O filme recebeu o Prêmio Loridan-Ivens/CNAP destinado ao melhor longa-metragem de estreia no 42º Cinéma du Réel, em 2019. No release, Risas declara: “Ao longo dos nove anos do processo [de realização] de Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu, minha mãe frequentemente me perguntava ‘se você pode fazer um filme sobre alguém, por que escolheu fazer sobre a gente, sobre ninguém?’ Nunca consegui responder. Mas, talvez tenha a ver com um desejo: esmiuçar o processo de formação de nosso imaginário nesse país inventado, de encarar de frente as contradições e as violências que o formam.” O acesso à conversa de terça-feira, dia 20, poderá ser feito através do link https://youtu.be/k4JsVugz2To .
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De 22 de outubro a 4 de novembro será realizada a 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na maior parte online para todo o Brasil. A programação inclui 198 filmes de 71 países, apresentados nas seções Perspectiva Internacional, Competição Novos Diretores, Mostra Brasil e Apresentação Especial. Participam da Mostra Brasil dezesseis filmes. Entre outros, #eagoraoque, de Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald; Ana. Sem título, de Lucia Murat; Glauber, Claro, de César Meneghetti; Luz Acesa, de Guilherme Coelho; Nas Asas Da Pan Am, de Silvio Tendler; O Lodo, de Helvécio Ratton; Sobradinho, de Marília Hughes e Cláudio Marques; e Verlust, de Esmir Filho.