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Resistência às catástrofes

Filme reconstitui jornada para resgatar um navio que ficou 106 anos no fundo do mar

Eduardo Escorel | 16 mar 2022_09h04
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O Endurance zarpou do sudoeste da Inglaterra em 8 de agosto de 1914, levando exploradores que iriam tentar fazer a primeira travessia do continente Antártico, passando pelo Polo Sul. No dia 2, tropas alemãs haviam invadido Luxemburgo e, no dia 4, a Bélgica. A reação da França foi declarar guerra à Alemanha – era a Primeira Guerra Mundial, que duraria quatro anos, iniciada pela invasão da Sérvia pelo império Áustro-Húngaro em 28 de julho.

Encalhado no gelo, o veleiro da Expedição Imperial Transantártica construído na Noruega, com três mastros e quilha de carvalho, foi a pique em novembro de 1915. Sir Ernest Shackleton (1874-1922), líder da empreitada, Frank Worsley (1872-1943), comandante do navio, e os 26 homens da tripulação ficaram entregues à própria sorte. Todos foram resgatados vivos seis meses depois, inclusive o fotógrafo e cinegrafista australiano Frank Hurley (1885-1962).

Foto: Reprodução

Há uma semana, quatorze dias depois de a Rússia invadir a Ucrânia e transcorrido mais de um século desde o naufrágio, foi anunciado que o Endurance havia sido encontrado bastante destruído, mas em estado de conservação considerado “brilhante” por Mensun Bound, arqueólogo marinho e diretor de exploração da busca. Estava “congelado no tempo”, disse o historiador Dan Snow, a cerca de 3 mil metros da superfície do Mar de Weddell, conforme mostram imagens gravadas pela equipe que localizou o veleiro após procurar por mais de duas semanas, usando drones submarinos, helicópteros e robôs. Para o sucesso da missão que custou mais de 10 milhões de dólares, foi decisiva a anotação feita no diário de Worsley, indicando o local preciso em que o veleiro afundou: 68°39’30”S, 52°26’30”O – o Endurance estava cerca de 6,5 km ao Sul dessa posição.

Ao longo dos 106 anos em que o Endurance ficou pousado nas profundezas do Oceano Antártico, a epopeia da fracassada expedição Transantártica veio à tona pela primeira vez em South (1919), versão das filmagens de Hurley exibida em cinemas e usada para ilustrar palestras de Shackleton, autor de South: The Story of Shackleton’s Last Expedition 1914-17 , publicado no mesmo ano. Apesar de ter sido recebido “moderadamente bem”, segundo Leo Enticknap, professor de cinema da Universidade de Leeds, o filme “foi vítima em certa medida da mudança fundamental de clima político resultante dos eventos da Primeira Guerra Mundial. Apesar da operação de resgate ser reconhecida como um feito espantoso, […] uma corrente de pensamento considerava que as habilidades de Shackleton talvez pudessem ter sido melhor empregadas lutando contra o Kaiser do que em mais uma exploração polar que tinha fracassado em todos seus principais objetivos”.

Frank Hurley – Foto: Reprodução

Em 1920, o filme foi relançado com outro título – In the Grip of Polar Ice (Nas Garras do Gelo Polar) –, refletindo a mudança de perspectiva em relação ao episódio. O relato do comandante Worsley, só publicado em 1931, foi seguido de outra versão sonora do filme de Hurley, narrada pelo próprio Worsley, exibida, em 1933, com título ainda mais explícito quanto ao novo ponto de vista sobre a expedição – Endurance: The Story of a Glorious Failure (Endurance: A História de um Fracasso Glorioso). A partir daí, a versão original de South foi esquecida durante quase oitenta anos até voltar à tona restaurada com acréscimos pelo National Film and Television Archive (NFTVA) do Reino Unido, em cópias 35mm de alta qualidade e DVD.

Depois de apresentar um a um os principais personagens da expedição que não recebem, porém, destaque equivalente no decorrer do próprio filme, South começa mostrando a partida do Endurance de Buenos Aires, em outubro de 1914, e continua com uma sequência extensa dedicada aos setenta cães, “espinha dorsal da expedição”, de acordo com uma legenda. Segue-se a parte principal do registro de Hurley que vai da chegada à Antártica até os mastros começarem a romper e o navio a naufragar.

Narrada por Worsley em seu livro, o heroico resgate nos meses seguintes, graças ao qual toda a tripulação foi salva, não consta do filme pois não deve sequer ter sido filmado. Na tentativa de compensar a falta dessa que pode ser considerada a iniciativa mais bem-sucedida da expedição e de completar South, Hurley foi mandado de volta à ilha de Geórgia do Sul, onde filmou a longa e desoladora sequência de observação da vida animal – pinguins e aves marinhas, principalmente – sem relação alguma com a tentativa fracassada de cruzar a Antártica.

Hurley e Worsley chegaram de volta, o primeiro à Austrália, o outro à Inglaterra, a tempo de participarem da Primeira Guerra Mundial e voltaram a se engajar na Segunda Guerra, iniciada em 1939. Hurley como fotógrafo e cinegrafista; Worsley como capitão de um navio responsável por afundar um barco alemão e de outro encarregado de transportar suprimentos no Norte da Rússia. Em 1941, depois de ter trabalhado na Cruz Vermelha Internacional, acabou sendo dispensado quando foi descoberto qual era sua verdadeira idade, que havia falsificado para poder voltar à Marinha Mercante (nascido em 1872, tinha feito 67 anos quando a guerra começou em 1939).

A Grande Guerra inaugura a Era dos Extremos, conforme a periodização de Eric Hobsbawm. É o marco inicial do que chamou de breve século XX, encerrado, segundo ele, em agosto de 1991 com o fim da União Soviética – em dezembro daquele ano, 92,3% do eleitorado votou “Sim” no referendo do Ato de Declaração da Independência da Ucrânia.

Enquanto o Endurance permaneceu esquecido na profundeza do Oceano Antártico, inúmeras guerras sucederam a de 1914-1918, responsáveis por milhões de mortes, inclusive vítimas civis, e causando vasta destruição. Nas décadas iniciais do século XXI, houve guerra no Afeganistão, Iraque, Líbano, Chechênia e, no caso da Síria, com uso de armas químicas pela Força Aérea. Agora, a Ucrânia é atacada pelo ar e invadida por terra pela Rússia de Vladimir Putin, nostálgico da União Soviética há 22 anos no poder. Ele rejeita a independência da Ucrânia e, destruindo o país, pretende que a história retroceda. A novidade do conflito atual é podermos testemunhar a barbárie, mediada por repórteres e cinegrafistas, através da extensa cobertura pela televisão, em parte ao vivo. 

Os registros filmados e fotográficos, estes feitos em chapas de vidro, decisivos para perpetuar a memória da Expedição Imperial Transantártica de 1914-1916, chegaram a correr sério risco de serem perdidos para sempre. Quando o Endurance caiu na garra do gelo polar e teve que ser abandonado, a ordem de Shackleton foi desembarcar levando apenas o estritamente necessário. A escolha da tripulação recaiu em três itens: um baralho, um banjo e um volume da Enciclopédia Britânica – opção eloquente quanto à importância relativa que o registro fotográfico ou cinematográfico pode adquirir quando a sobrevivência pessoal está em jogo. Foi só após ficar evidente que seria impraticável a tripulação completa partir reunida em busca de socorro que Hurley mergulhou na água gelada e subiu no veleiro para resgatar as filmagens feitas e parte das fotos que havia deixado para trás. Mesmo assim, para aliviar a carga, foi obrigado a destruir cerca de quatrocentas chapas de vidro.

Lado a lado com a paisagem gelada da Antártica, o Endurance é o principal personagem nas fotografias e imagens filmadas de Hurley, provas de seu heroísmo. Pouco a pouco, elas se tornaram mais conhecidas e voltam a ser admiradas agora com a descoberta do veleiro cujo nome quer dizer resistência, durabilidade, paciência, perseverança – qualidades necessárias para sobreviver às intempéries de todos os tempos.

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