Depois de gritar treze vezes a saudação “Boa tarde, presidente Lula!”, diante da sede da Polícia Federal do Paraná, em Curitiba, o sindicalista Marcos Paulo Lourenço, o Marquinhos, de 48 anos, sentiu a barriga roncar. Passava das 14h30 de um sábado de abril de 2018 e, apesar de uma garoa fria rondar a cidade, ele decidiu se dar ao luxo de ir atrás de um prato feito bom e barato, em vez de fazer a própria comida. Junto de companheiros do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, ele começou a caminhada em busca do restaurante perfeito. Mas a turma não chegou a almoçar naquele dia, porque, no meio do caminho, havia um cão.
Acuada, na lateral de uma avenida, tremia de frio uma vira-lata filhote, magricela, de pelo muito preto. O animal comoveu os seis metalúrgicos. Lourenço logo se pôs a perguntar à vizinhança se a cachorrinha tinha dono. A resposta era sempre negativa. “Imediatamente eu falei: vou levar essa cachorra para a vigília”, ele conta à piauí. Ele se refere à Vigília Lula Livre, instalada havia apenas uma semana a poucos metros do prédio da Polícia Federal, desde o dia 7 de abril de 2018 – quando foi preso o então ex-presidente Lula.
O sindicalista não se lembra quem teve a ideia, mas, antes mesmo de chegar à vigília, a cachorrinha já tinha nome: Resistência. “A gente precisava dela. Era um momento muito ruim, muito triste. Ela trouxe só alegria”, diz. Foi como se, para aquelas pessoas desesperançadas com a prisão de Lula e o avanço da extrema direita no Brasil, soassem perfeitos os versos de Carlos Drummond de Andrade no poema Consolo Na Praia, de 1945, mesmo estando todos muito distantes do mar: “Não possuis carro, navio, terra. Mas tens um cão.”
A Vigília Lula Livre permaneceu ativa durante os 580 dias em que Lula esteve preso, mantida por quatro organizações – o PT, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Sempre sob a batuta do sindicato do ABC, grupos passaram a se revezar nos cuidados à nova integrante do protesto, zelando para que ela recebesse desde a ração diária até as vacinas obrigatórias. Depois de um banho e uma bela tosa, descobriu-se que a cachorrinha tinha pequenos pelos manchados de branco no pescoço e na ponta das patas.
Não demorou para que a Resistência se adaptasse à rotina da vigília. Com roupinha do sindicato dos metalúrgicos feita sob medida, ela acordava quando todos acordavam, comia na hora que todos comiam e ia para a barraca descansar junto com todo mundo. Lourenço jura que a cachorra ficava até mesmo ansiosa e de prontidão às 9h, 14h30 e 19h, horários em que, diariamente, os manifestantes gritavam “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” a Lula à porta da Polícia Federal. Resistência chegou a ganhar uma companheira, uma vira-lata cor de caramelo, Esperança. A amiga canina, porém, caiu nas graças de uma funcionária do PT de São Paulo, que a levou para casa. Resistência voltou a reinar sozinha na vigília.
Todos do acampamento “ficaram bobos com a cachorrinha”, garante Lourenço. Mas uma das integrantes da vigília tinha um afeto especial por Resistência. Era a socióloga Rosângela Silva. “A Janja estava sempre brincando com a Resistência. Perguntava o tempo todo se ela estava precisando de algo, de algum remédio ou comida”, recorda o metalúrgico. O primeiro registro fotográfico das duas, feito em 15 de abril, pode ser visto na página de Janja no Instagram: “Na luta com a Resistência!!! #lulavalealuta #lulalivre #lulainocente #lulapresidente.” Na foto, Janja aparece em frente à vigília, segurando a cachorrinha no colo.
No dia 16 de junho, Janja publicou uma foto de Resistência com laços verde e amarelo nas orelhas e brincou: “Resistência saiu do Pet Coxinha!!” Em 28 de dezembro, às vésperas da posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, a socióloga escreveu, junto de uma foto em que a cachorra aparece com adesivos de estrelas vermelhas no pelo: “O pessoal do Pet já sabe que sou Petista!!! Me devolve pra mamãe cheia de estrelas.” A legenda se autoproclamando a “mamãe” de Resistência não era exagero de Janja, mas à época poucos sabiam que ela namorava o prisioneiro ilustre.
O romance de Lula e Janja só veio a público no ano seguinte. Em maio de 2019, após visitar Lula na PF, o ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira dedurou, em um post no Facebook: “Ele [Lula] está apaixonado e seu primeiro projeto ao sair da prisão é se casar.” Quando deixou a prisão, em novembro do mesmo ano, o petista anunciou o casamento com Janja, durante seu discurso num palanque em frente à PF em Curitiba.
Quando Lourenço e os demais metalúrgicos tiveram de voltar para o trabalho e para o sindicato – eles não esperavam que a prisão de Lula se estendesse por tanto tempo –, Janja pediu que Resistência permanecesse em Curitiba, dividindo apartamento com ela e seus outros dois vira-latas: Thor, que morreu em 2021, e Paris. O pessoal do acampamento aprovou.
Ao chegar de mãos abanando no sindicato em São Bernardo do Campo, Lourenço recebeu uma bronca dos companheiros. “Eles falaram: ‘Cadê a Resistência? Você disse que ia trazer a cachorra pra cá…’” Mas todos se conformaram, ao saber que a cachorra tinha encontrado um lar. Agora, Resistência era o pet da Janja. Mas também o pet de Lula.
O primeiro encontro entre Lula e Resistência aconteceu no dia em que ele foi solto, em 8 de novembro de 2019, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Os dois se apegaram de imediato. O trio Lula-Janja-Resistência se mudou para São Bernardo do Campo e, em seguida, para São Paulo.
No dia da posse, Resistência, que tem hoje entre 4 e 5 anos, subiu a rampa presidencial, junto de oito representantes de grupos sociais, inclusive o cacique Raoni e um menino negro, Francisco, de 10 anos. A cachorrinha, de coleira e peitoral pretos, foi entregue ao pé da rampa para Janja, que a carregou no colo. Na metade do percurso, Resistência passou a ser conduzida brevemente por Lula. Para a ocasião, foi feito um pedido especial: cancelar os tradicionais 21 tiros de canhão em saudação ao novo mandatário – o que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), acatou. A medida, que incluiu a suspensão de fogos de artifício durante a festa, visou a atender solicitações feitas por autistas e entidades protetoras dos animais.
Resistência é a herdeira brasileira de uma legião de “cães de protesto”. Na Grécia, durante manifestações entre 2010 e 2011 contra cortes em gastos públicos para atender a pressões da União Europeia, o vira-lata Loukanikos chegou a ser incluído, como “animal do ano”, na lista de personalidades feita pela revista Time em 2011. No mesmo ano, o vira-lata chileno Negro Matapacos (Negro Mata Policiais) – sempre com um lenço vermelho no pescoço – roubou a cena ao atacar a polícia que avançava sobre estudantes que protestavam em Santiago. Também no Chile, a cadela El Vaquita, estrela de protestos na cidade portuária de Antofagasta, só aceitou ir ao veterinário após os manifestantes simularem uma passeata até a entrada da clínica.
A diferença entre Resistência e seus camaradas revolucionários é que nenhum deles foi morar na residência mais importante do seu país. No dia 26 de dezembro, Resistência desembarcou em Brasília, junto com a irmã, Paris, e seu brinquedo predileto, um pato de pelúcia amarela. “Resistência e seu inseparável patinho já estão em Brasília para a posse! Ela está ansiosa para encontrar com vcs”, escreveu Janja, no Twitter. Dois dias depois, usando um peitoral da marca Zeedog, Resistência fez o seu primeiro passeio na capital federal. O local escolhido foi o Parque da Cidade Sarah Kubitschek, que fica a quase 16 km do Palácio da Alvorada. “Resistência no primeiro rolê no Parque da Cidade, nova moradora de Brasília. Difícil é controlar, vamo lá”, disse Janja em um vídeo no qual aparece andando com a cachorra.
Ainda não se sabe se vai ser fácil controlar a enérgica Resistência entre as emas e os outros bichos do Alvorada – Marquinhos acha que a tarefa não será fácil. No palácio, as cachorrinhas presidenciais terão de conviver com cerca de quatrocentas aves, quinhentos peixes e outros cinco cachorros que, segundo contrato fechado no início de 2021, demandam um gasto anual de 191 mil reais em ração.
Pode-se escrever uma pequena história dos cães dos presidentes brasileiros, com detalhes polêmicos. Dentre os últimos governos, ficou famosa a história do labrador Nego, o favorito da ex-presidente Dilma Rousseff. Presente do ex-ministro José Dirceu, o cão preto dividia o Palácio da Alvorada com os também labradores Boni, Galego e Princesa, além da basset hound Fafá.
Após o impeachment de Dilma, chamou a atenção que Nego não havia sido visto na saída da presidente do Alvorada. A ex-presidente precisou fazer uma nota informando que, por orientação de um veterinário, tivera de sacrificar o cão de 14 anos, diagnosticado com “mielopatia degenerativa canina”, uma doença crônica. No documento, Dilma acrescentou que tomou a atitude de forma “relutante”, poucos dias antes de deixar Brasília.
O deputado federal Ricardo Izar (na época do PP-SP, hoje do Republicanos), então presidente da Frente em Defesa dos Animais na Câmara, acusou Dilma de maus-tratos aos animais e solicitou investigação à Procuradoria-Geral da República. “É lamentável que, mais uma vez, queiram usar a relação de carinho e lealdade entre um cachorro e sua dona para reforçar a sórdida campanha acusatória que criou o ambiente para o Golpe de 2016, por meio do fraudulento impeachment sem crime de responsabilidade”, respondeu Dilma. A investigação chegou a ser aberta pelo então procurador-geral Rodrigo Janot.
Em 2018, Picoly, o jack russel da família Temer, passou por maus bocados, acarretando outros. Durante um passeio com a então primeira-dama Marcela Temer, o cachorro caiu em uma das lagoas do Palácio da Alvorada. De roupa e tudo, Marcela pulou na lagoa para resgatar o animal. Uma servidora, responsável pela segurança da primeira-dama e que a acompanhava no momento do acidente, não auxiliou no resgate e foi afastada da função.
Em 20 de junho de 2020, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro criou um perfil no Instagram para o cachorro Augusto Bolsonaro, um pastor-maremano-abruzês de pelagem branca de cerca de 1 ano de idade que ela havia encontrado vagando nos fundos do Palácio do Planalto. Segundo sites especializados, o preço desse cão, quando filhote, pode variar entre 2 mil e 7 mil reais. Na descrição da rede social, lia-se: “Minha mamãe é a Michelle Bolsonaro e minhas irmãs são Letícia e Laura.” Mas a adoção de Augusto durou pouco: descobriu-se que o cão tinha dono e se chamava Zeus. “Ele não tinha o perfil de cachorro de rua. Nós tínhamos ciência que ele tinha uma família. Mas ele estava solto”, justificou Michelle.
Em outubro de 2020, a família Bolsonaro adotou, por meio da ONG MiauAmigos, os vira-latas Bartô e Nestor. “Adotar é um ato de amor. Eu mesma não consegui me segurar e adotei o Bartô, um cãozinho idoso e cego, e o Nestor”, escreveu Michelle. A dupla passou a fazer companhia a Theo, um shih-tzu, e a Faísca e Alvorinha, ambos sem raça definida. Até setembro de 2021, Michelle detalhava na página @clube20patas_, do Instagram, a rotina dos cinco cachorros, que na maioria dos vídeos apareciam brincando com Laura, a filha caçula dos Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral de 2022, a família adotou um husky siberiano, chamado George.
Resistência e Paris não serão as primeiras pets de Lula a chegar ao Alvorada. Em 2002, ele e Marisa Letícia desembarcaram em Brasília junto com a fox terrier Michelle, que ficou conhecida por suas aparições em carros presidenciais. Ela morreu em 2005. No segundo mandato, em 2006, o casal adotou outra fox terrier, Mel, que morreu em 2019, enquanto Lula estava encarcerado em Curitiba.
Nenhuma das duas, porém, conseguiu o feito inédito de subir a rampa do Palácio do Planalto durante a posse presidencial. Para Janja, a participação de Resistência no evento é uma maneira de trazer à lembrança de todos a “injustiça sofrida por Lula” pelos dias que ele passou preso. Mas para o primeiro pai da cachorrinha, o sindicalista Lourenço, é preciso reconhecer, além disso, que há algo de maravilhoso na história de Resistência. “É uma história de Cinderela”, ele diz, orgulhoso.