Na tarde de 22 de setembro, enquanto tanques de guerra subiam novamente a Rocinha e os tiroteios na favela eram transmitidos ao vivo pela televisão, percebeu-se uma ausência eloquente: cadê o prefeito? Quarenta e oito horas depois, Marcelo Crivella fez um pronunciamento no qual, mais do que tratar de segurança pública, revelou um pouco da sua ideia de cidade: “Agora que o Exército está na favela, é hora de subir o morro para fazer consertos, reparos, obras e trocar lâmpadas. Vou conversar com meu time para, a partir de amanhã receber líderes comunitários na prefeitura: é importante que a gente possa mobilizar o pessoal do setor de conservação para fazer aquela obra que estamos devendo para a Rocinha. É a hora de aproveitar esse momento para fazermos um banho de loja na Rocinha.”
De tempos em tempos, o Rio de Janeiro dá sinais de bipolaridade política – o que se reflete, também, nas noções urbanísticas de seus governantes. Após os anos de preparação para as Olimpíadas, quando era impossível não perceber e falar das transformações urbanas, passamos à era do “banho de loja”. Do anúncio e da realização, ainda que parcial, de grandes obras de infraestrutura – construção dos BRTs Transcarioca, Transoeste e Transolímpica, da demolição da Perimetral substituída por um túnel subterrâneo de quilômetros, da renovação da Praça Mauá, do longo passeio público entre os armazéns portuários e o Albamar, do Porto dito Maravilha –, passamos a tratar de problemas urbanos como trocas de lâmpadas ou aberturas de janelas. Seis dias após o pronunciamento do prefeito, sua gestão avisou que cobririam os buracos de tiros nas fachadas das casas, e depois abririam vãos em 700 casas na favela, para aumentar a ventilação e iluminação dentro dos imóveis – e assim diminuir a incidência de casos de tuberculose no local, uma das mais altas do país.
Em vez de encarar o problema urbanístico, optou-se por um truque: abrir janela só é solução depois que se faz o melhoramento da rua e da calçada. O trabalho é de infraestrutura: recolhimento de esgoto, distribuição de água encanada, fiação de luz, telefone e outros serviços, vias para pedestres e veículos com dimensões suficientes e bom piso. Esse é o básico. Ignora-se ainda que a Rocinha tem um plano diretor, feito há dez anos – projeto exemplar, criado em parceria com os moradores, com um escritório dentro da comunidade. Como publicou o arquiteto Luiz Carlos Toledo, chefe do projeto, no Facebook: “O plano, com ampla participação da população, foi responsável pela construção do Complexo Esportivo da Rocinha, da passarela, do alargamento da rua 4, da Biblioteca Parque e da construção de 150 apartamentos. Foi usado pelos moradores como respaldo técnico para rejeitar a implantação do teleférico na Rocinha e, em contrapartida, para exigir saneamento. (…) O prefeito Crivella prestaria um enorme serviço se, em vez de começar do zero, desse uma olhada no Plano Diretor Sócio-Espacial da Rocinha e, se gostasse da proposta para transformar a favela num verdadeiro bairro, fizesse dele um plano de governo, compromisso desta e das próximas administrações.” Pode ser bem mais do que um banho de loja.
A gestão Eduardo Paes em nada merece canonização. Muitos projetos urbanos do ex-prefeito do PMDB foram claramente guiados por interesses de empreiteiras (vide os casos dos pouquíssimos donos dos terrenos da Vila e do Parque Olímpicos que foram beneficiados com grandes investimentos em infraestrutura pública para comercializar seus empreendimentos privados), resultando num projeto urbano sem modelo claro e, portanto, repleto de contradições. Contudo, parece que a ressaca de transformações citadinas levou-nos para uma administração que aparentemente despreza a noção de projeto urbano. Conserto ou reparo não é urbanismo, não demanda uma reflexão sobre a cidade em que vivemos, não abre caminho para uma transformação do espaço comum a todos os cidadãos. A noção de projeto urbano de Crivella está mais para uma atividade de bricolagem com materiais comprados em loja de materiais de construção.
Outros indícios corroboram tal percepção. A fusão de três secretarias em uma única – Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação – é uma estratégia pouco ortodoxa e de resultado a ser verificado. Tal “supersecretaria” não impediu, por exemplo, que seis meses depois de criada, fossem suspensas as obras do Porto Maravilha, bem no momento das intervenções infraestruturais nas ruas com casas e cortiços mais antigos e pobres, onde está a população que mora na Gamboa, Saúde, Santo Cristo e aos pés do morro da Providência, desde muito antes da implantação do neobondinho. E continuam patinando as construções do BRT Transbrasil (que vai organizar e articular as linhas de ônibus da Avenida Brasil, longa via a cortar um enorme número de bairros e com um transporte público sobre rodas cujo atendimento tem o maior alcance populacional da capital e nos municípios da Baixada Fluminense), sem perspectivas de conclusão a curto prazo.
Para além dos casos específicos, é visível o desleixo com o espaço público em toda a cidade. O número de camelôs amplia-se exponencialmente. As calçadas têm cada vez menos espaços para pedestres, sob o olhar da guarda municipal, que ignora o problema. O arquiteto Washington Fajardo em sua coluna em O Globo já abordou a questão: “Ao abandonar a governança do espaço público, ao estimular a informalidade, o prefeito dá apoio a um círculo vicioso onde informalidade, perda de receita pública e crime se retroalimentam. E envia uma mensagem clara: é fácil ser ambulante no Rio, […] pois a vida sem regulação e compromissos públicos seria mais atraente.” Quando alguns poucos (mesmo que necessitados de fontes de renda) apropriam-se de fatias do espaço de todos – a calçada –, o assistencialismo passa a ser condescendência. Em nome de um governo popular, faz-se um governo populesco, que institucionaliza o caos no espaço público.
Nesse cenário, não surpreende que iniciativas de reflexão sobre a cidade venham sendo desestimuladas, como no caso do Studio X, laboratório internacional de pesquisas urbanas ligado à Universidade Columbia, que por seis anos teve uma intensa atuação no debate sobre o que estava ocorrendo no Rio. Ocupava um ativo sobrado na Praça Tiradentes, no Centro da cidade, e recebia estudiosos de Nova York, Mumbai, Pequim, Amã, Joanesburgo, pesquisadores que realizaram centenas de exercícios de projetos urbanos sobre a capital fluminense. Entre 2011 e 2017, estudantes de diversas nacionalidades mergulharam no cotidiano carioca (uma iniciativa que outros centros, como São Paulo, por exemplo, nunca tiveram) e apresentaram alternativas modernas à vida urbana, como um plano de implantação de ciclovias na região central e um sistema de tratamento de água por meio da vegetação. Pensava-se, em suma, a cidade. Porém, as portas do centro de estudos se fecharam no mês passado, quando a instituição deixou a capital fluminense porque um convênio com a autarquia municipal Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) não foi renovado. Parece que estamos dando passos para trás.
É pior: a atual administração do PRB não só demonstra não ter plano urbanístico próprio, como reproduz mecanismos problemáticos dos anos de PMDB. Em especial, no caso de Rio das Pedras. Uma comunidade com cerca de 63 mil habitantes (segundo o Instituto Pereira Passos) que há décadas ocupa uma área entre lagoa e maciço da Tijuca, entre Itanhangá e Jacarepaguá. Mesmo com urbanização precária e problemas com o crime organizado, Rio das Pedras é um lugar com vida de rua e dinâmica econômica consolidadas. A proposta da prefeitura seria mais um “bota abaixo” para a história do Rio de Janeiro: fazer mais uma Operação Urbana Consorciada (exatamente o modelo do paralisado, inacabado e subutilizado Porto Maravilha) que exterminaria as construções existentes. No local, seriam construídos 30 mil apartamentos no modelo de condomínios-clube com prédios de doze andares, ao estilo Barra da Tijuca. O amplo comércio de rua de Rio das Pedras seria substituído por dois shopping centers. Tudo isso sob a alcunha marqueteira “Rio da Gente”. Com voz pausada, o prefeito Crivella fez questão de defender em um vídeo que “não vai ter remoção.” E as milhares de pessoas que não quiserem sair de suas casas para apartamentos financiados pelo Minha Casa Minha Vida, como ficam?
Como era de se esperar, a população de Rio das Pedras se rebelou: centenas de cartazes foram espalhados pelas ruas da comunidade, um grupo de Facebook surgiu com o nome #RioDasPedrasContraCrivella com quase 15 mil participantes, e os moradores lotaram as tribunas da Câmara Municipal durante a audiência pública sobre o projeto entoando gritos que clamavam por melhorias estruturais, com trechos como “nós precisamos de ajuda e aceitamos pavimentação, não demolição”. Afinal, esse banho de loja na comunidade da Zona Oeste reproduz velhos argumentos sanitaristas (como as remoções do prefeito Pereira Passos, no começo do século XX) para fazer fachada a velhacas intenções higienistas. Analisando a história mais recente, é a reprodução do modelo de expansão dos terrenos do Parque Olímpico e da Vila Olímpica: novas infraestruturas construídas para grandes lotes com proprietários muito bem definidos no cartório e prontos para construir condomínios para a classe média alta – a estratégia não deu tão certo, a Ilha Pura (preconceituosa nomenclatura dada pelos publicitários da Vila Olímpica) encalhou e um ano depois das Olimpíadas tem baixa ocupação. Ou seja, para além de camuflar a população mais pobre, o “Rio da Gente” é o prosseguimento do espraiamento urbano de uma cidade que mal consegue sustentar o que já tem de tecido social, econômico e urbano construídos.
Para além do prefeito ausente em momentos delicados da vida da urbe, há outra falta danosa. A ausência de reflexão sobre a cidade como um todo. Perdeu-se a ambição por um projeto de integração das diferentes áreas. Não há plano diretor. Não há masterplan. Banhos de loja, temos. Crivella quer nos satisfazer com esta expressão apelativa aos consumistas e aos tantos cariocas que querem entrar no mercado de consumo mas ainda não têm renda para isso. Seja na Rocinha ou em Rio das Pedras, são propostas isoladas aparentemente assistencialistas que camuflam intenções de higiene social. Arrumações e disfarces não são projetos urbanos. O novo distúrbio bipolar carioca é sair de uma administração que em tudo (com muitos erros e alguns acertos) estimulava transformações urbanas para uma prefeitura que, até aqui, tem demonstrado não ter ideia do que é urbanismo. Quais, afinal, são as incumbências mínimas para ser um prefeito?