Na tarde de quinta-feira (26), o telefone tocou na casa de Cintia Santos, em São João de Meriti, município da Baixada Fluminense: os parentes deveriam ir com urgência à Casa de Saúde e Maternidade Terezinha de Jesus, onde ela estava internada na UTI. Aos 34 anos, Santos havia dado entrada no hospital no dia anterior, após apresentar tosse e 38 graus de febre. Quando o marido chegou à unidade de saúde, recebeu a notícia: Cintia havia morrido. Para o médico, era quase certo que a morte acontecera em decorrência da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Enquanto o resultado do teste não ficasse pronto, o quadro seria enquadrado como suspeito. Para espanto da família, o hospital avisou: o resultado do exame só sairia em trinta dias.
Do hospital, o corpo de Santos seguiu para o cemitério, carregado por funcionários que usavam uma roupa de proteção especial. O velório durou vinte minutos, e o caixão estava lacrado. Já o coveiro estava desprotegido, devido à falta de equipamento para evitar o contágio no cemitério. “Eu só queria poder ter dado um velório mais digno para a minha irmã”, desabafa Samir Barbosa, irmão de Santos. Apesar dos sintomas da irmã, Barbosa se recusa a acreditar que a causa da morte tenha sido o novo coronavírus. Santos tinha doenças pré-existentes – fibromialgia, hipertensão e os pulmões parcialmente comprometidos –, tomava remédios diariamente e sofria de dificuldades para respirar. “Sem o resultado do teste a gente não pode ter certeza”, diz Barbosa.
O Brasil convive com a mesma dúvida da família de Santos. A falta de testes para covid-19 e a demora para obter resultados dos testes faz com que o país não tenha certeza sobre quem e quantas são as vítimas da doença. Oficialmente, são 7,9 mil casos e 299 mortes até a última quinta (2). Milhares de outras histórias, como a de Santos, ficam semanas à espera de confirmação, e o resultado é a subnotificação crônica. Não há dados do presente, só do passado.
Outras estatísticas do Ministério da Saúde permitem estimar que o número de casos no Brasil é, na verdade, dez vezes o divulgado. A conta é a seguinte: em março, os hospitais brasileiros registraram um recorde de pessoas internadas com quadros respiratórios graves, 18,6 mil no total, 15,7 mil acima do esperado para este período do ano. É nesta categoria que os pacientes hospitalizados com covid-19 são incluídos. Se todo esse excedente for de pessoas com quadros graves do novo coronavírus, e se o Brasil estiver seguindo o padrão da China, onde um em cada cinco contaminados precisou ser internado, o total de infectados no Brasil se aproxima de 80 mil. “O número de casos [confirmados] está muito menor que o número de casos [real] que está circulando dentro da nossa sociedade”, reconheceu o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, em entrevista coletiva na quarta-feira (1).
Os dados de pessoas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave são a baliza de que o Brasil dispõe nesse momento para tentar medir o tamanho da epidemia. Os pacientes apresentam síndromes gripais, com febre de início súbito, tosse ou dor de garganta, somadas a uma dificuldade de respirar. A hospitalização é necessária para fornecer oxigênio ao paciente – por cateter ou, em casos mais críticos, por respirador. Desde a pandemia de H1N1, em 2009, as unidades de saúde brasileiras devem notificar o Ministério da Saúde sobre todos os casos hospitalizados de SRAG. Sendo a covid-19 um novo tipo de SRAG, os pacientes graves acometidos pela doença no Brasil começaram a aparecer nesse banco de dados antes mesmo de serem testados.
Os 18,6 mil pacientes de SRAG hospitalizados em março, após a chegada do novo coronavírus ao Brasil, representam um salto de mais de cinco vezes em relação à média dos últimos cinco anos – e daqui surge o número de 15,7 mil casos acima do esperado. Apenas uma pequena parte desses pacientes recebeu o resultado do teste para covid-19: 1,5 mil positivos. Enquanto isso, os demais continuam aguardando ou nem sequer foram testados. Sobram 14,2 mil casos ainda sem explicação – em outras palavras, esse é o potencial máximo de casos graves de covid-19 subnotificados no Brasil. Para cada hospitalização confirmada, haveria outras nove não notificadas. “Usando os dados públicos disponíveis hoje, essa é uma das melhores estimativas de quantos devem ser os casos de covid-19 no Brasil, próximo do limite máximo”, aponta Paulo Inácio Prado, professor do Instituto de Biologia da Universidade de São Paulo e um dos organizadores do Observatório covid-19 BR, iniciativa formada por mais de trinta cientistas brasileiros para monitorar o avanço da doença no país.
Considerando a proporção chinesa de dois casos hospitalizados para cada oito com sintomas mais leves ou assintomáticos, se 15,7 mil pessoas estão internadas com covid-19 no Brasil, outras 63 mil carregam o vírus em casa, caso estejam de quarentena, ou na rua, caso estejam seguindo a rotina de antes. A estimativa depende da qualidade dos dados de hospitalização do SRAG – por exemplo, se as unidades de saúde notificam apenas casos com todos os sintomas necessários para caracterizar o quadro e se há regularidade no preenchimento de informações ao longo dos anos, tanto pela rede pública quanto privada. “A covid-19 está nas ruas e nos hospitais, só não está aparecendo nas bases de dados [do novo coronavírus no Brasil]. É preciso buscar um número que se aproxime desse cenário real”, acrescenta Prado.
A relação de causa e efeito entre a chegada do novo coronavírus ao Brasil e a alta de internação por SRAG em março é reforçada por outros dados. Primeiro, houve uma mudança inédita na idade dos pacientes. Até fevereiro, a maior parte eram crianças com menos de 4 anos. Já a partir de março, um de cada três tem mais de 60 anos, o dobro do registrado em 2019. A mudança é compatível com o perfil de vítimas do novo coronavírus: poucas crianças e muitos idosos. “O que mais me chama a atenção [no aumento de casos de SRAG em março] é a inversão da relação entre crianças e idosos, porque há trabalhos na literatura [científica] que indicam que a covid-19 acomete muito mais idosos do que crianças”, afirma Carlos Jardim, pneumologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Além disso, a maior parte dos hospitalizados por SRAG foi testada para outros vírus gripais, como influenza A, influenza B, adenovírus e parainfluenza – exames mais simples e mais rápidos que os de covid-19. Foram feitos 12 mil testes como esses em pacientes hospitalizados e que começaram a apresentar sintomas em março. No total, 10,3 mil deram negativo, o maior número já registrado. No mesmo período de 2019, por exemplo, foram 2,4 mil testes negativos. Os resultados descartam que a alta de internações resulte de um aumento de casos de gripe e “sugerem que seja um novo vírus”, afirma Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe, plataforma da Fiocruz que monitora as notificações de hospitalizações por SRAG desde 2014.
São do InfoGripe as informações sobre a idade dos pacientes e os testes para vírus gripais. Também são do InfoGripe as primeiras sinalizações de que algo diferente estava acontecendo nos hospitais brasileiros. Já no boletim referente à primeira semana de março, o InfoGripe registrou “atividade epidêmica” para hospitalizações por SRAG em geral, mas “atividade baixa” para SRAG em relação à influenza especificamente. Era um alerta de que havia um elemento novo na equação, já que, até então, os dados de influenza e SRAG costumavam caminhar juntos. Àquela altura, o Brasil registrava, oficialmente, menos de cem casos de covid-19. “O InfoGripe está se revelando um dos principais instrumentos para a gente se guiar no escuro. Hoje, a gente tem informações muito mais confiáveis para lidar com a covid-19 no InfoGripe do que nos números de casos confirmados da doença”, afirma Paulo Inácio Prado, da USP.
Em relação ao número de mortes por covid-19, faltam dados para fazer estimativas. O número também está subnotificado. A informação que mais poderia ajudar a dimensionar a situação atual é o total de mortes de pessoas hospitalizadas por SRAG a partir de março, que sinaliza o número de mortes suspeitas. De cada sete óbitos computados por covid-19, seis ocorreram, justamente, entre pessoas hospitalizadas por síndrome respiratória grave. Este dado não consta no InfoGripe, mas faz parte das bases de dados do Ministério da Saúde. Questionado pela piauí na quarta-feira, o ministério não forneceu os números. O pedido também foi encaminhado para a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, o estado com o maior número de casos confirmados, que não respondeu.
Fruto do atraso dos dados, os novos casos confirmados de covid-19 são, em sua maioria, casos antigos. O boletim do coronavírus divulgado pelo Ministério da Saúde em 2 de abril acrescentou 58 morte na contagem oficial. Mas apenas cinco delas ocorreram, de fato, naquele dia. Os demais são óbitos que ocorreram nos dias anteriores, cujos exames demoraram para ficar prontos. Dessa forma, para saber o número real de vítimas de 2 de abril, será preciso esperar semanas.
Para que os dados oficiais ofereçam um retrato mais fidedigno do momento atual, é preciso ampliar a capacidade dos laboratórios brasileiros. Primeiro, para que processem os exames represados com mais agilidade. Segundo, para que possam receber um volume cada vez maior de testes. Nesse momento, o Ministério da Saúde prioriza a testagem de quem está internado em estado grave ou já morreu, como o caso de Cintia Santos, de São João de Meriti. Mas será preciso ampliar cada vez mais os grupos testados, já que a testagem em larga escala é considerada pelos especialistas como a principal arma para conter o novo coronavírus. No dia 18 de março, o Ministério da Saúde informou à piauí que havia realizado cerca de 46 mil testes pelo SUS. Desde então, a atualização do número total de exames feitos no país não foi divulgada. A Coreia do Sul, considerada exemplo no combate ao novo coronavírus, já aplicou mais de trezentos mil testes e tem um quarto da população do Brasil.
Também é necessário organizar melhor o fluxo de informação. “Nós não esperamos que não haja atrasos nos dados, mas que haja um certo padrão nos atrasos. É como aquele amigo que sempre atrasa cinco minutos. Basta marcar com ele cinco minutos antes. Hoje, estamos vivendo uma situação de total imprevisibilidade nos dados, com modificações constantes no sistema de notificação de casos para o Ministério da Saúde. Bastaria a regularização no fluxo de informação, de modo que o atraso se tornasse previsível. Então, poderíamos prever o estágio atual da doença com mais precisão”, esclarece Prado, da USP. Cientistas precisam de dados confiáveis para criar modelos de previsão. Os modelos, por sua vez, são fundamentais para embasar decisões políticas. O ritmo real de expansão da doença é determinante para saber quantos leitos e equipamentos podem ser necessários e em quais regiões do país, bem como para avaliar as medidas necessárias para conter o contágio.
Com base em dados, o Imperial College London estimou que as medidas de contenção implementadas em onze países europeus evitaram 59 mil mortes até o final de março. Ainda assim, dizem os cientistas britânicos, é muito cedo para acabar com a quarentena. O motivo, argumentam, é que as mortes acontecem de duas a três semanas depois do contágio. “Por isso, é fundamental que as intervenções atuais continuem em vigor e que os dados de casos e mortes sejam monitorados de perto nos próximos dias e semanas, para garantir que a transmissão do novo coronavírus está diminuindo.” No caso do Brasil, é preciso somar mais algumas semanas a este período de monitoramento sugerido, devido ao atraso nos exames de covid-19. Enquanto houver dúvidas por trás de mortes como a de Cintia Santos, o país encara às cegas a pandemia.