Na manhã daquela terça-feira, dia 2 de julho, a diretora da Academia Chinesa de Ciências, Dongyao Wang, fez um pedido que despertou controvérsias. Enquanto se pronunciava, a pesquisadora observava o relatório projetado no telão. O documento em inglês continha doze propostas para o planeta implementar “um processo de transição energética” que garanta a sobrevivência da humanidade. Sentados à mesa em formato de U, no Rio de Janeiro, quarenta representantes da elite científica mundial discutiam os termos do texto. Ora reivindicavam acréscimos minúsculos, ora sugeriam a reescrita de frases inteiras. O rigor se justificava: cada termo sob análise tinha o potencial de gerar crises diplomáticas ou abalar a economia de um país.
A chinesa pediu que o documento recomendasse “um futuro de baixo carbono” em vez de “um futuro totalmente descarbonizado”. Não se tratava de um detalhe irrelevante. A expressão “baixo carbono” abre margem para a produção de energia com algum nível de emissão de CO₂, o que é bem diferente de eliminá-lo por completo. Diante do telão, o engenheiro Alvaro Prata, diretor da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e responsável pela elaboração da frase em debate, interrompeu Wang e indagou: “Quando você fala em ‘baixo carbono’, a questão que levanto é: quão baixo?” Todos riram, inclusive a pesquisadora, mas ninguém se dispôs a responder.
A biomédica Helena Nader, presidente da ABC e da reunião, aproveitou a deixa para lembrar que os cientistas presentes deveriam jogar no mesmo time: “Pessoal, uma coisa são os governos. Outra somos nós… O que nós, como S20, queremos? O objetivo principal da comunidade científica é a descarbonização.” Sem causar alvoroço, Wang ignorou a colega e seguiu pedindo novas alterações. No fim das contas, o “futuro totalmente descarbonizado” acabou excluído do relatório, como ela queria.
O S20 – abreviação de Science20 – se encontrava pelo segundo dia consecutivo. O grupo é um braço do G20, fórum que abarca as oito maiores economias do mundo (G8) e onze emergentes, além da União Europeia e da União Africana. Formado por integrantes das academias nacionais de ciências daqueles países, recebeu a tarefa de produzir um texto com recomendações para os líderes políticos do bloco, que se reunirão no Rio em novembro.
Como o Brasil assumiu a presidência rotativa do G20 em dezembro do ano passado, coube à ABC escolher os cinco temas que o grupo de cientistas discutia num hotel da Barra da Tijuca, entre 1º e 2 de julho: inteligência artificial, bioeconomia, transição energética, justiça social e desafios de saúde. A instituição brasileira também se encarregou de redigir o documento definitivo do encontro, cujo rascunho exigiu meses de negociação.
A prioridade de Nader era fazer com que os representantes de todas as academias assinassem o texto final – o que nem sempre acontece em conferências desse tipo. Na avaliação da ABC, se os cientistas demonstrassem estar em sintonia, poderiam convencer o G20 a acatar as sugestões apresentadas, já que o relatório do S20 não é impositivo.
Atingir o consenso significava garantir que pesquisadores de nações tão díspares quanto a Coreia do Sul, a Austrália, o Japão e o México adotassem o mesmo posicionamento em assuntos espinhosos. Na teoria, as academias são independentes e, ao contrário dos diplomatas, não precisam representar os interesses de seus governos. Na prática, porém, quase sempre reverberam demandas políticas. Ciente disso, Nader procurou negociar certos pontos do relatório antes da reunião na Barra. Menções à igualdade de gênero, por exemplo, foram cortadas já no rascunho para garantir o apoio da Arábia Saudita. Também ficou decidido que o S20 abordaria o problema dos combustíveis fósseis de maneira sutil.
A presidente da ABC sentiu na pele como cansa ser democrática. Apesar dos acordos prévios, choveram pedidos de ajustes quando o texto definitivo foi discutido na cúpula de julho. A Turquia solicitou uma definição mais precisa de justiça social. A França requisitou a inclusão da energia nuclear – um dos pilares da matriz energética do país – no rol das energias sustentáveis. A União Europeia reivindicou o acréscimo da energia geotérmica no mesmo rol. A Índia quis enfatizar que a transição energética não é acessível aos países pobres. Todas essas sugestões foram debatidas e aceitas.
Representante da Arábia Saudita, o entomólogo Hassan Al Ayied agitava os braços para chamar a atenção de Helena Nader. Ele também pleiteava alterações no trecho sobre a transição energética, o assunto mais polêmico do documento. A primeira: trocar “energia renovável” por “energia limpa” (nas interpretações mais flexíveis, o petróleo, principal produto saudita de exportação, pode ser considerado uma fonte de energia limpa, desde que não polua o meio ambiente; jamais, no entanto, será considerado uma energia renovável). As outras eram: cortar a palavra “descarbonização” e substituir “baixo carbono” pelo termo “baixa emissão”. Novamente, o grupo acatou todas as demandas em nome do consenso.
No segundo dia de conferência, representantes da Alemanha, do Canadá e da França se encontraram reservadamente com Alvaro Prata, o diretor da ABC. Eles o pressionaram para empregar expressões mais duras no relatório e inserir o banimento dos combustíveis fósseis entre as recomendações finais. “Vocês estão vendo que não vai dar, né?”, retrucou o engenheiro mecânico. Ex-secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, Prata está acostumado a encarar negociações difíceis em fóruns internacionais. “Me parece natural que um documento elaborado por vários países fique menos incisivo que o rascunho. Melhor do que um comunicado forte e preciso, é um comunicado que tenha a concordância de todos”, disse à piauí.
Após três horas de reunião, inúmeros pesquisadores ainda se mostravam insatisfeitos com o relatório. Uns desejavam que as recomendações da cúpula aparecessem em tópicos, de maneira bem destacada e didática. Outros reclamavam das construções frasais pouco propositivas, pediam uma introdução mais concisa e criticavam até a qualidade do inglês usado no texto.
Diferentemente de seus pares, que deixaram o salão do hotel para aproveitar o bufê, Nader informou que reescreveria partes do documento no horário de almoço. O relatório definitivo precisava estar pronto até o início da noite. Antes de se sentar à frente do notebook no canto do salão, a biomédica de 76 anos chegou perto da comitiva brasileira, levantou os braços e exclamou: “Eu vou para o Céu!”
Ela passou os dois dias de reunião completamente agitada. Resolvia problemas da impressora, tomava notas, buscava xícaras de café, coordenava a equipe técnica da ABC e mediava conflitos. Para pedir silêncio, batia repetidamente com uma colher num copo d’água. Quando o caos se instalava de vez, a pesquisadora revirava os olhos, franzia o cenho, levava as mãos à testa e balançava a cabeça. Nos momentos de silêncio tenso, fazia piadas e ria de si própria. “Não sei me comportar formalmente por muito tempo”, confessou, rindo, ao microfone.
O carisma e a espontaneidade de Nader contrastavam com o restante da mesa diretora do S20. À direita da biomédica estava o indiano Shekhar C. Mande, que presidiu a cúpula científica de 2023. Carrancudo, falava pouco e sempre baixo. À esquerda da pesquisadora, a sul-africana Stephanie Burton – uma figura sisuda e metódica, que comandará o encontro de 2025 – interrompia os debates com o intuito de corrigir vírgulas erradas e apontar outros deslizes gramaticais. Raramente sorria.
A busca pelo consenso absoluto havia se tornado uma obsessão para a brasileira. A cada mudança de palavra no documento, Nader perguntava se alguém tinha objeções. Às vezes, as ressalvas apareciam, o que abria margem para discussões sobre o emprego de um verbo ou levava tudo de volta à estaca zero.
Depois do almoço, o climatologista alemão Gerald Haug propôs tirar a palavra “evento” da frase que abordava os eventos climáticos extremos. Apresentando-se como “o cara do clima”, ele explicou que o termo restringia a questão a intempéries passageiras e não a desastres prolongados. O meteorologista Daniel Murdiyarso, representante da Indonésia, discordou. Argumentou que “evento” é um vocábulo suficientemente compreensível. Seguiram-se alguns minutos de debate sobre a palavra.
“Você chama de evento uma inundação de quatro semanas?”, desafiou o alemão, presidente da academia mais antiga do S20, fundada no século XVII. “Sim”, respondeu laconicamente o indonésio, membro de uma das academias mais jovens, constituída apenas na década de 1990. Os dois cientistas se entreolharam em silêncio. “Tirar ou não tirar o evento, eis a questão”, brincou Helena Nader.
Alguns colegas até arriscaram um ou outro comentário, mas o assunto só encerrou quando o alemão ergueu ambas as mãos, num gesto de rendição. “Tanto faz…”, disse, recostando-se na cadeira reclinável. O “evento climático” permaneceu, para satisfação do meteorologista indonésio.
Houve embates ainda mais prosaicos. A certa altura, a engenheira biomédica Alison Noble, representante do Reino Unido, ponderou que a menção à “saúde dos humanos e animais” no trecho sobre bioeconomia estava errada, pois os humanos também são animais. “Só não sei como reescrever isso porque não é a minha área”, desculpou-se. Vários pesquisadores olharam para os lados, à procura de um especialista em biologia ou algo do gênero. A primatologista Karen Strier, dos Estados Unidos, solucionou o impasse ao sugerir o uso de “humanos e animais não humanos”.
A ideia de projetar o relatório no telão foi adotada para ressaltar que o texto definitivo seria fruto de um processo coletivo e transparente. Pretendia-se evitar, assim, o vexame do encontro que o S20 promoveu na Índia, em 2023. Para surpresa dos participantes, depois de longos debates, a academia indiana apresentou um documento final diferente do aprovado em grupo, com alterações de última hora exigidas pelo governo ultranacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi. Indignados, representantes de alguns países ameaçaram se retirar do salão, e a reunião virou um bate-boca. No fim, a maioria dos pesquisadores decidiu assinar o relatório daquele jeito mesmo, para não escalar a crise. Apenas Itália e França não o fizeram.
Na segunda-feira em que a cúpula do Rio começou, o primeiro cientista a se pronunciar foi o presidente da academia argentina, o geólogo Victor Ramos. Ele deixou bem claro que o encontro não se pautaria somente por questões técnicas: a política estaria sempre à espreita. Numa atitude ousada, Ramos afirmou que concordava integralmente com o rascunho preparado pelo Brasil, mas que seu país não seguiria nenhuma daquelas orientações. “O atual governo argentino nega as mudanças climáticas, não estimula a ciência nem a educação e despreza os mais pobres”, lastimou, sem citar o presidente da República, Javier Milei.
Em entrevista à piauí, o geólogo de 79 anos disse que decidiu trazer o assunto à tona para denunciar internacionalmente o desmonte em curso na Argentina. Desde que tomou posse, há oito meses, Milei rebaixou o antigo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação ao status de secretaria, fez cortes que atravancam a produção científica nacional e alardeou que os cientistas argentinos – ganhadores de três prêmios Nobel – não produzem nada. “Perto de Milei, [Jair] Bolsonaro é um bebê”, comparou Ramos.
Impactado pelo enfático pronunciamento, o presidente da academia francesa, Alain Fischer, sugeriu que o S20 divulgasse uma declaração de solidariedade aos pesquisadores da Argentina “neste momento difícil”. Os aplausos que eclodiram foram interrompidos por John Boright, representante dos Estados Unidos. Ele jogou um balde de água fria nos colegas e avisou que a National Academy of Sciences não poderia subscrever uma investida tão direta contra um governo. “Nossa Academia não comenta cada coisa ruim que acontece no mundo”, gaguejou. “Tivemos cortes em muitos lugares, todos são lamentáveis, mas… Quero dizer, eu… Não é fácil para nós aprovar um comunicado desses.”
Helena Nader assumiu a palavra e reforçou que não se tratava de uma declaração governamental, mas de um anúncio de cientistas para cientistas. Boright contrapôs dizendo que, nesse caso, teriam de denunciar também a situação complicada da Nicarágua – país da América Central que amarga uma ditadura de esquerda, mas não faz parte do G20. A moção de apoio aos argentinos acabou não se concretizando.
Ramos passou o resto da reunião calado, sem pedir nenhuma alteração no relatório. À piauí, reiterou que estava satisfeito com o trabalho dos colegas. “O documento elaborado pelo Brasil é ótimo. Ou melhor: para os países normais, é ótimo…”
No segundo e último dia do encontro, os chineses protagonizaram o momento mais tenso das discussões. Quando se referia às inteligências artificiais, o rascunho elencava uma série de estratégias intergovernamentais para neutralizar tecnologias utilizadas com “propósitos destrutivos”. Os cientistas da China sugeriram remover a expressão. Alguns países advogaram pela manutenção do trecho, e o professor Youdan Xiao subiu o tom: “Na minha opinião, nós não precisamos falar em ‘propósitos destrutivos’. Eu não sei por que adicionar essas palavras. A inteligência artificial pode ter dois lados. Uma faca, a meu ver, serve para [cortar] frango, não para matar pessoas…”
Eram cinco e meia da tarde. A reunião deveria terminar em menos de uma hora. Helena Nader levou uma das mãos à cabeça, fechou e abriu os olhos, respirou fundo e disse: “Eu não gostaria que um país deixasse de aprovar o relatório por causa de uma frase. Como vamos resolver essa situação?” Diante do silêncio geral, ela mesma propôs desatar o nó com uma votação. Todos optaram por conservar a expressão, exceto a China, que não aceitou o resultado do pleito.
A biomédica sugeriu, então, três redações para o trecho polêmico. Nenhum dos presentes as validou. “China, preciso da sua ajuda”, suplicou Nader. Os chineses, no entanto, continuaram irredutíveis. Passaram-se quarenta minutos até que os debatedores toparam recuar e dar à China um gostinho de vitória. “Essa conversa é meio sem sentido”, desabafou o alemão Gerald Haug. “Exércitos do mundo inteiro recorrem às IAs e fazem delas o que bem entendem. Por isso, me soa um tanto ingênuo e inútil ficar discutindo os termos da frase.”
Quando a reunião acabou, Nader puxou uma salva de palmas. Em poucas horas, a pesquisadora iria ciceronear o jantar de encerramento do S20. O restaurante Ocyá, num recanto bucólico próximo à Ilha da Gigoia, na Barra da Tijuca, recebeu o grupo. A casa costuma adotar o método ikejime de abate de peixes, que minimiza o sofrimento dos animais e otimiza a qualidade da carne.
O relatório final só não resultou 100% consensual porque a Arábia Saudita se recusou a avalizá-lo, apesar das modificações que solicitou. A Academia de Ciências da Rússia não compareceu às reuniões e tampouco esclareceu o motivo das ausências, mas recebeu as atas dos debates via e-mail e assinou o texto definitivo.
Trata-se de um documento breve (cinco páginas) e ameno. Os cientistas recomendam a criação de políticas de inteligência artificial fundamentadas em princípios éticos compartilhados pelos países, além do monitoramento de tecnologias que possam escapar ao controle humano. Orientam também que a transição energética se baseie no “aumento do uso de fontes de energia com baixas emissões”, incluindo a energia nuclear e as renováveis, numa combinação que pode variar de um país para outro, mas sempre com o intuito de eliminar o uso do carvão. Em outra seara, o texto sugere que recursos destinados a reduzir o impacto das mudanças climáticas e ambientais na saúde priorizem grupos vulneráveis.
A presidente da ABC acredita que o relatório terá boa receptividade no G20 por ser uma peça escrita a quarenta mãos: “Não creio que todas as páginas do nosso comunicado entrarão no documento final da cúpula de novembro, mas espero que os líderes políticos absorvam a essência delas.” Nader pretende, agora, entregar o texto para todas as sociedades científicas do Brasil e apresentá-lo em diversas escolas. “Galinha que não cacareja não avisa que botou ovo”, sentencia, sacudindo as páginas do relatório. “Então, vou tratar de cacarejar.”