“Por que não lutei? Por que não corri?”, se questiona Salman Rushdie nas primeiras páginas de Faca, seu mais recente livro, lançado dois anos após o atentado que quase lhe tirou a vida, quando foi brutalmente esfaqueado no palco de um anfiteatro em Chautauqua, estado de Nova York, onde falaria, ironicamente, sobre a importância de garantir a segurança de escritores. A motivação do assassino, que cumpria a fatwa emitida havia mais de trinta anos pelo aiatolá Khomeini, não é de fácil compreensão. Hadi Matar, nascido na Califórnia e residente em New Jersey, admitiu que havia lido apenas uma ou duas páginas de Os Versos Satânicos e assistido a alguns vídeos no YouTube. E que ele simplesmente não achava Rushdie uma boa pessoa. “Eu não gosto dele. Eu não gosto nada dele”, repetiu em entrevista ao New York Post.
A hipótese de Rushdie para o fato de ter ficado “parado como uma piñata”, como disse posteriormente, para ser atingido em vez de lutar ou fugir, interessa. Segundo o romancista indiano, teria a ver com uma “crise de entendimento do real” vivida pelos alvos da violência. “A violência espatifa o quadro” que organiza nossas vidas. “Uma escola é um local de educação. Uma sinagoga, um local de culto. Um supermercado, um local de compras. Um palco, um espaço para apresentações.” Essa moldura em que vivemos fornece “uma imagem estável do mundo”. Quando a violência emerge, “a realidade se dissolve e é substituída pelo incompreensível”.
No final de uma conversa de pouco mais de uma hora nas poltronas da biblioteca pública de Princeton, Judith Butler investiga com o olhar atento algo localizado atrás de mim, para em seguida se levantar num salto, passar ao meu lado e rapidamente voltar com um exemplar de So Late in The Day, de Claire Keegan, nas mãos. A quarta capa informa ser a mesma autora do premiado Small Things Like These. “Acho ela brilhante”, afirma Butler respondendo à minha pergunta se ela estava lendo algo interessante, quando já nos preparávamos para sair.
Jessica Bennett, que entrevistou Butler para o New York Times por ocasião do lançamento mundial do best seller Quem tem medo do gênero? (Boitempo), afirmou que, apesar de ter escrito sobre o tema por mais de uma década, “falar sobre gênero hoje pode ser tão tenso, tão politizado, tão preso numa guerra de palavras que o debate, ou mesmo a conversa, parece impossível”. A cena dramática montada pela jornalista permite que ela se coloque na posição de leitora-alvo do livro, uma vez que a “filósofa notoriamente esotérica que se tornou celebridade pop” buscou justamente levar o debate para fora do universo acadêmico, para as pessoas que estão com muitas dúvidas e receios sobre o assunto. Apesar da intenção da autora, não há nada minimamente parecido com “tudo o que você sempre quis saber sobre gênero, mas teve medo de perguntar” em seu livro menos acadêmico.
Pude sentir o campo minado descrito por Bennett já no início do meu encontro com Butler em frente ao café Maman, na manhã de uma quinta-feira fria demais para o mês de abril na região. Ela se vestia de maneira tão casual quanto eu: calça, camiseta e um casaco corta-vento comum – todas as peças em tons escuros. A familiaridade proporcionada pelas roupas e pela postura relaxada desmontou a expectativa que eu construíra através das fotos divulgadas na mídia, em que ela aparece com certa elegância imponente, mas sem afetação. Comentei que o local era um pouco barulhento, o que poderia prejudicar a gravação da entrevista. Ela concordou, mas antes de caminharmos até a biblioteca, a duas quadras de distância, fez questão de pegar um espresso duplo – “ou eu não funciono”, disse ela sorrindo. Pedi o mesmo, como normalmente faço nessas ocasiões, e ao me oferecer para pagar, ela respondeu: “nonsense” – palavra banal no dia a dia da língua inglesa, mas que sempre me remete a Alice no País das Maravilhas.
Enquanto aguardávamos nossos pedidos, procurei quebrar o gelo me desculpando por ter me referido a ela, no e-mail que iniciou nosso contato, como “Dear Judith” e não “Professor Butler”, como havia feito David Remnick na entrevista para o podcast da New Yorker. Ela confessou sorrindo que estranhara justamente o “Professor Butler”, e que não ligava para essas coisas. A abertura me animou a esticar um pouco mais a corda. Comentei que o gênero neutro era mais difícil de ser usado em português do que em inglês, e que o meu texto sobre ela soaria estranho se eu fosse por esse caminho. Sem titubear, ela me respondeu com firmeza educada que a linguagem era mesmo estranha, o que me desconcertou. Uma mera opção de estilo revelava seu fundo falso conservador? Ela sugeriu então que eu mencionasse que entre o “she” e o “he“, ela optara pelo “they“, e que por uma questão autoral e de clareza, eu usaria o “she“, ou o “ela”. Era o meu primeiro passo em direção ao mundo de sobressaltos de Judith Butler.
Nos agradecimentos finais de Quem tem medo do gênero?, a autora revela o gatilho para a escrita do livro: “Esta obra foi desenvolvida ao longo de vários anos, começando com acontecimentos no Brasil em 2017, onde a queima de uma efígie que me representava reuniu multidões do lado de fora de uma conferência organizada no Sesc Pompeia, em São Paulo, e onde, no aeroporto, minha parceira, Wendy Brown, e eu nos deparamos com pessoas que nos ameaçaram de agressão física.” Interrompo a leitura para rever as fotos do episódio. A efígie mencionada é um enorme boneco vestido com roupas pretas, um sutiã vermelho sobre a camiseta e um chapéu de bruxa com cabelos vermelhos metálicos de loja barata de fantasias. No lugar do rosto, uma foto de Butler impressa em preto e branco.
No longínquo ano de 2017, esse tipo de demonstração era motivo muito mais de vergonha do que de preocupação para o campo progressista brasileiro. Bolsonaristas não passavam de uma piada de mau gosto. Butler certamente não viu graça e, de acordo com seu novo livro, se espantou com o ódio dirigido contra ela e as acusações estapafúrdias que vinculavam gênero e pedofilia. Vale lembrar que Trump já era então presidente dos Estados Unidos e a cruzada contra o que fora chamado de “ideologia de gênero” pela primeira vez pelo Vaticano, incendiava paixões mundo afora. Mas ao que tudo indica, foi a violência explícita dirigida contra ela e a socióloga Wendy Brown que espatifou uma realidade ainda ordenada, e protegida, pelo debate público liberal. Segundo Brown, os manifestantes pareciam um pouco ridículos, mas para Judith o episódio não havia sido fácil.
Num movimento surpreendente, em Quem tem medo do gênero? a filósofa norte-americana não tenta reconstruir a moldura mais ou menos estável do mundo “pré-Brasil 2017”, ao insistir no debate avançado sobre gênero, com suas contradições e disputas bem reguladas pelo campo intelectual. Ela mesma afirma na introdução do livro que não se trata mais de um debate público organizado por textos e com algum tipo de acordo mínimo a respeito de seus termos, uma vez que o “ódio e o medo inundaram a paisagem na qual o pensamento crítico deveria estar florescendo”. Também não vai simplesmente colar em seus agressores o rótulo de lunáticos e esperar, de sua casa em Berkeley, que a onda de violência arrefeça. Tampouco vai lançar mão de conceitos como fake news, pulsão de morte, ressentimento, déficit cognitivo ou guerra cultural, que se tornaram tão corriqueiros quanto inúteis. Em vez disso, assim como a curiosa Alice, de Lewis Carroll, Butler vai pular na toca do coelho para encontrar o “fantasma do gênero”.
Trata-se de uma construção repleta de contradições e sem base empírica de comprovação, e por isso mesmo adaptável a diferentes contextos sociais, econômicos, culturais e históricos, que se tornou uma das principais fontes de medo para uma parcela da população mundial. Na Rússia, a “ideologia de gênero” é considerada um risco à segurança nacional, enquanto para o Vaticano, representa uma ameaça não apenas à civilização como à própria humanidade. Em comunidades católicas e evangélicas conservadoras espalhadas por diferentes países, uma força que visa destruir a família. Já em campanhas políticas norte-americanas, “gênero” seria um código para pedofilia ou um projeto de doutrinação de crianças em escolas. Na extensa e nada ilustre lista, aparece o “Brasil de Jair Bolsonaro”, onde gênero procura alterar o “caráter natural e normativo da heterossexualidade”, como afirma Butler em seu livro, com o intuito de liberar sobre a Terra todo tipo de perversidades.
O gênero é retratado por esses grupos como “um conjunto de ideias que se opõe à ciência, à religião ou a ambas, ou ainda um risco à civilização, uma negação da natureza, um ataque à masculinidade ou o apagamento das diferenças entre os sexos. Às vezes o gênero também é encarado como uma ameaça totalitária ou como obra do demônio, e, dessa forma, disseminado como força mais destrutiva do mundo”, a ser portanto “destruído a qualquer custo”. O medo de aniquilação manipulado pela extrema direita gera reação entre seus apoiadores, o que coloca em risco real de destruição pessoas identificadas com expressões de gênero alternativas ao masculino e o feminino, que a rigor não ameaçam ninguém.
Eis o combustível fascista perigosamente instrumentalizado por líderes autoritários, que construíram um alvo capaz de condensar elementos disparatados e de apagar as causas reais de medo e luta – precarização da vida pela intensificação neoliberal do capitalismo, crise climática e guerras –, com o intuito de sustentar projetos autoritários de poder. Butler afirma ainda que o fantasma não pode ser colocado em funcionamento como mera fake news, uma vez que depende de pessoas suscetíveis a algum tipo de sedução autoritária para o retorno a uma ordem patriarcal estável e segura.
Num primeiro momento, o fantasma pode parecer o tipo de fantasia que todos nós somos capazes de criar. No entanto, trata-se de um fenômeno psicossocial, “uma área em que medos e ansiedades íntimas se organizam socialmente para incitar paixões políticas”. Se o esquema desenvolvido no livro também funciona como moldura para a compreensão do neofascismo como um todo, há motivos para justamente gênero – e não comunismo ou raça, por exemplo – ocupar o centro da luta política global. O conceito está relacionado com a dimensão íntima do corpo, e “a vida corporal está ligada à paixão e ao medo, à fome e à doença, à vulnerabilidade, à penetrabilidade, à sexualidade e à violência”. Ainda segundo Butler, mesmo nas melhores condições, a vida do corpo é o “terreno no qual as ansiedades sexuais se concentram, no qual as normas sociais se estabelecem”. Eis então o palco ideal para a manipulação de medos e da luta política.
Revejo as fotos da manifestação no Sesc Pompeia, com sua salada de demandas e agressões, e reconheço o “fantasma do gênero” em ação. Os alvos dos manifestantes variam, evidentemente, da própria Butler, que é chamada de bruxa num cartaz que pede “+ PRÍNCIPES + PRINCESAS”, enquanto num outro, tão previsível quanto violento, lê-se “GO TO HELL BUTLER”, até um improvável boneco do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o “FHC FALSO”, que também terminou na fogueira. Bandeiras do Brasil e de Israel, um cartaz acusando Lula de ter vendido o país e um estapafúrdio “MENOS ONU MAIS FAMÍLIA” completam a cena fantasmática e politicamente incendiária que teve o monstro do gênero como faísca.
As imagens mostram à frente do grupo “anti-ideologia de gênero”, apontando um crucifixo de madeira para a câmera dos jornalistas, um jovem de aproximadamente 20 anos, com boné virado para trás e moletom com a marca GAP estampada no peito. O gesto de esconjuro também pode estar sendo feito na direção do grupo pró-Butler, que estava lá, só que mais sereno – ao menos essa é a leitura possível das fotos disponíveis. A expressão do jovem revela a intensidade investida naquela luta. Me parece que a política se tornou de fato questão de vida ou morte, mas só para um dos lados.
Entre uma pergunta e outra sobre o livro, comento que após a vitória de Lula em 2022, esses bandos radicalizados se mantiveram tão ou mais mobilizados do que durante o governo Bolsonaro, e que o campo progressista brasileiro vivia um estado de ilusão vitoriosa. Ela me agradece pelo comentário, já que alguns amigos seus insistiam para que ela retornasse ao Brasil, que já havia se tornado novamente seguro. Interrompo o áudio da entrevista para pensar em como os marcos políticos vão sendo borrados num esforço comprometido de não olhar a realidade de frente. A agressão contra Butler e sua companheira ocorreu antes das eleições de 2018, o que desmonta a ideia de que uma vez Bolsonaro fora do poder, esses grupos tenham sido desmobilizados – isso para não falar que Marielle Franco foi assassinada durante o governo Temer. Alguém poderia argumentar que 2017 já havia se transformado num palco majoritariamente ocupado pela extrema direita, o que nos levaria a outro desvio da realidade: o de que Lula seria capaz de transformar o país de cima a baixo, ou que sua mera eleição providenciaria a volta a um passado de ouro progressista.
Sem que eu dissesse nada, Butler me fala sorrindo que prefere não nomear os amigos brasileiros que dizem se sentir muito mais seguros agora, e que insistem para que ela visite o Brasil novamente. Me recordo de uma amiga do mercado editorial que logo após a vitória de Lula desabafou em um grupo de WhatsApp que finalmente poderia voltar a cuidar das coisas dela. O jovem do moletom GAP dificilmente pensaria em algo desse tipo, ganhando ou não o seu candidato.
Penso em perguntar a Butler se do nosso lado também não existiria uma cena fantasmática encobrindo as causas reais do medo. Mas que no entanto, diferente da cena armada pela extrema direita, a progressista não promove o ódio, ou de acordo com seus termos, o “álibi moral” para a destruição do inimigo da vez. Desisto da pergunta, já que eu chegara a essa conclusão justamente a partir de uma passagem de Quem tem medo do gênero?, em que a autora reflete sobre a nossa cumplicidade com os descaminhos do mundo, e escreve, em seu estilo particular, que “olhamos, desviamos o olhar; sabemos, deixamos de saber. Vivemos na ansiedade produzida por sabermos que não sabemos o que secretamente deveríamos saber, e sabemos”.
Segundo Butler, entre as principais fontes reais dos medos que atravessam todas as experiências contemporâneas, está a intensificação neoliberal do capitalismo. As reformas neoliberais eliminaram garantias como saúde, educação e aposentadoria dos trabalhadores, além de gerar a precarização do trabalho e de desestabilizar qualquer projeção de um futuro tranquilo. Pergunto a ela como então derrotar a extrema direita, se o campo progressista, refém do neoliberalismo, é incapaz de enfrentar as causas dos medos concretos. Ou seja, o que podem os candidatos progressistas, uma vez que o termo socialismo é apenas uma peça do passado? Butler discorda no ato de que o socialismo tenha ido parar na lata de lixo da história. Comenta sobre diferentes movimentos que têm reanimado a ideia, como o ecológico e o feminista. E que “Marx tem sido relido e reavaliado”. Para justificar a plausibilidade da ideia de socialismo entre a população, menciona o desejo geral das pessoas após a pandemia, de que saúde, emprego, educação e previdência sejam direitos e não mercadorias.
Antes que eu pudesse contestá-la, ela parece adivinhar a minha ressalva para se antecipar afirmando que esses são de fato direitos relacionados à social democracia e não exatamente ao socialismo. E então o passo à frente: “cada um deles sugere uma visão mais ampla da sociedade.”
Se revolução não é um termo que aparece em Quem tem medo do gênero?, talvez pela recusa absoluta da violência por parte da autora, Butler tampouco propõe ingênuas voltas a algum tipo de passado idealizado. “Precisamos desenvolver uma visão mais convincente de como o mundo deve ser.” Essa é a ideia central proposta pela autora para se enfrentar o “fantasma do gênero”, que passa, segundo ela, por uma ampla e difícil coalizão entre quem se identifica com a vida e a liberdade. Concordo, sem no entanto entender como isso se dá na prática.
Ligo a televisão na CNN numa manhã de sábado para praticar meu inglês e leio em destaque na tela a declaração do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu: “Estamos em guerra!” Os ataques do Hamas contra alvos israelenses ainda estavam em andamento quando a emissora norte-americana arriscou a primeira comparação histórica: “o Pearl Harbor israelense.” A imagem me pareceu pouco eficiente para justificar a intensidade da reação que não era nada difícil de prever, mas que o tempo mostraria muito além do que eu, e muita gente, jamais teria imaginado. Menos de meia hora depois, a senha perfeita seria dada com circunspecção pela âncora do canal: “o Onze de Setembro israelense.” Nos meses seguintes, a liberdade de expressão foi colocada em questão neste país. E as manifestações de alunos universitários em ocupações pró-Palestina escancararam as relações íntimas e questionáveis entre universidades, o aparato de seguração dos Estados Unidos e o assassinato de mais de 30 mil civis do outro lado do mundo.
Apenas doze dias após o ataque de 7 de outubro promovido pelo Hamas, a London Review of Books publicou o ensaio de Butler intitulado The Compass of Mourning (A bússola do luto), que abre da seguinte forma: “Os assuntos que mais necessitam de discussão pública […] são aqueles difíceis de serem discutidos dentro da moldura disponível hoje.” A tentativa de alterar a moldura cobraria preço alto da autora após uma declaração sua viralizar nas redes sociais. Em um vídeo com um trecho de uma mesa redonda na França, ela afirma ser “mais honesto e historicamente correto, dizer que a insurreição de 7 de outubro foi um ato de resistência armada. Não é um ataque terrorista e não é um ataque antissemita. Foi um ataque contra israelenses.”
O anti-intelectualismo descoberto com o fantasma do gênero parece funcionar para que a filósofa enfrente o debate sobre Hamas e Israel. Ao ser interpelada na Suíça por uma mulher que disse rezar por ela, Butler lhe perguntou se ela já lera algum texto seu. “Não! Eu nunca iria ler um livro desses!”, respondeu a desconhecida, ecoando de forma premonitória o jovem Hadi Matar. A imagem é então deslocada para o debate no ensaio sobre o 7 de outubro em Israel. “Poderíamos dizer que não, não preciso saber nada sobre a Palestina ou o Hamas para saber que o que eles fizeram é errado e para condená-lo. E se pararmos por aí, confiando nas representações mediáticas contemporâneas […], então aceitamos uma certa ignorância e confiamos no enquadramento apresentado. Afinal, estamos todos ocupados e não podemos ser todos historiadores ou sociólogos. Essa é uma maneira possível de pensar e viver, e pessoas bem-intencionadas vivem assim. Mas a que custo?” Gostaria de ter perguntado a ela: a que custo para quem?
Nascida em 1956 em Cleveland, apesar de judia e de parte de sua família ter sido fuzilada pelo horror nazista na Hungria, muito antes de seu posicionamento sobre o 7 de outubro israelense, Butler já era taxada de antissemita por suas posições críticas ao Estado de Israel. Em artigo de novembro de 2017, em que Butler reflete sobre o ataque sofrido em São Paulo e esboça as primeiras ideias do que viria a ser Quem tem medo do gênero?, diversos comentários no site da Folha acusam a autora de antissemitismo, apesar de o tema não ter sido tratado ali pela filósofa: “Eu gostaria que a filósofa Judith Butler discorresse sobre como a questão da diversidade de gêneros é encarada pelo grupo Hamas, que [ela] defende, na Faixa de Gaza.” Haveria um “fantasma palestino” rondando o mundo? Mais uma pergunta não feita.
Apesar da linguagem clara e do estilo elegante de Quem tem medo do gênero?, a forma literária que o sustenta não é simples. Entre a introdução e a conclusão, são dez capítulos temáticos para diferentes aspectos e especificidades do “fantasma do gênero”, como por exemplo, um sobre o Vaticano, outro sobre Trump e a Suprema Corte norte-americana, outro ainda sobre a influência do colonialismo e um longo a respeito das feministas inglesas que inadvertidamente se alinham com a extrema direita em relação aos direitos de pessoas trans. A cada capítulo, o “fantasma do gênero” ganha novos contornos, mas, ao chegarmos à conclusão, em vez de darmos de cara com uma figura precisa e bem definida, temos a reiteração dos pressupostos da introdução, que no entanto passam a ser mais convincentes e complexos. A forma do livro é portanto fiel à do fantasma contraditório do gênero, que não se deixa enquadrar, e que jamais pode ser completamente definido, uma vez que flutua distante de qualquer base empírica. O que pode então parecer mera repetição do “fantasma” em contextos diferentes, capítulo após capítulo, é na verdade a recalibragem contínua para seguir avançando.
Reviso este texto antes de enviar ao editor e só então noto como o insight sobre a violência retirado do livro de Salman Rushdie esconde uma postura sorrateiramente conservadora. A imagem estável do mundo construída com exemplos inquestionáveis, como o de que uma escola é um local para estudo, abafa estabilidades menos lisonjeiras e privilégios de todo tipo. Seria possível pensar que na cena contemporânea, uma favela é um local onde moram pessoas negras. Ou que a violência capaz de dissolver a nossa realidade justificaria, por exemplo, a violência policial como ação preventiva. Indo além, o genocídio de palestinos impediria o ataque à estabilidade de um Estado onde judeus nunca mais fossem perseguidos.
Fica claro que o mundo para Rushdie é na verdade o mundo de Rushdie, e que a moldura que fornece “uma imagem estável do mundo” pode ser fonte de desassossego para quem não está enquadrado nela. Não é o caso de sugerir que o autor de Os Filhos da Meia-noite concordaria com os termos aqui propostos, mas sendo fiel à escola desconstrucionista de Butler, textos revelam pensamentos inconfessáveis ou inconscientes de seus autores ou de seu tempo histórico.
Ao perguntar a Butler se não estaríamos vivendo novamente o pesadelo kafkiano da destruição que despenca sobre as pessoas sem uma causa aparente, como o homem transformado em inseto nojento sem qualquer razão, ainda não sabia de seu especial interesse pelo autor. Um projeto de livro sobre Kafka havia sido adiado justamente pela urgência da escrita de Quem tem medo do gênero?. Butler fica alguns segundos em silêncio para em seguida concordar com a minha afirmação e mencionar O processo para refletir sobre os migrantes que, ao cruzar a fronteira do México com os Estados Unidos, são atingidos pela lei, que já os encontra culpados. “Eles não sabem se terão ou não um julgamento ou um advogado ou um processo legal em que a justiça possa ser alcançada.” Para ela, o gênio de Kafka foi presciente em revelar que a justiça pode ser convertida em punição infinita.
Em Who Owns Kafka? (Quem é o dono de Kafka?), ensaio da filósofa de 2011, em que numa análise entre aspectos da forma literária de Kafka, que com sua fantasia deforma a realidade para torná-la mais evidente, e o processo jurídico em andamento em Israel para determinar quem deve ficar com as caixas de originais do autor – até agora trancadas num cofre em Tel Aviv –, Butler critica a instrumentalização do judaísmo por parte do Estado de Israel e a arrogância anacrônica do eurocentrismo alemão – os dois lados da disputa em questão. Ou seja, para os envolvidos na contenda, ou Kafka é a essência do judaísmo ou de uma almejada integração europeia. No centro, uma obra que aguarda, contra a sua vontade e verdade, ironicamente transformada em valor de troca.
Após autografar minha cópia de Who’s Afraid of Gender?, Butler me convida para o lançamento do livro que irá acontecer em quatro dias na Labyrinth Books. O auditório da livraria é improvisado, mas simpático: fileiras de cadeiras dispostas em frente a um pequeno palco no subsolo da loja. O clima é leve apesar do teto baixo e da fiação à mostra. A plateia é composta principalmente por alunos universitários familiarizados com o debate acadêmico sobre gênero, ou ao menos com seus termos-chave. A mediadora é a historiadora veterana, Joan Wallach Scott. Mas é Butler quem domina a cena.
As exageradas expressões faciais e corporais de espanto, curiosidade e faceirice causam um curto circuito em minhas expectativas, já parcialmente comprometidas. Ouvindo a gravação da nossa conversa, noto que suas risadas pontuam a entrevista, como se fôssemos velhos amigos, o que destoa do encontro, que se não foi tenso tampouco foi um chá das cinco, revelando uma estratégia performática de argumentação. Talvez seja a tentativa de estabelecer uma intimidade como estratégia de convencimento.
Não por acaso, aos 12 anos Butler imaginava dois caminhos possíveis para sua vida: filósofa ou clown. Após vê-la no palco e compreender melhor a natureza da nossa conversa privada, concluo que trilhou ambos. Se o filósofo enfrenta problemas a partir da criação de conceitos e do tensionamento da linguagem, o clown trabalha com a quebra de expectativas. E naquele fim de tarde no subsolo, ao menos duas quebras foram decisivas. A primeira quando refutou as investidas da plateia que tentaram elevá-la a líder de um movimento, e a segunda no momento em que desmontou a sugestão de que os gêneros fossem abolidos. Através do domínio pleno do humor, não permitiu ser enquadrada em molduras fixas e autoritárias. O riso provocado pelo clown nem sempre é inteligível no momento da performance. Algum dia aqueles alunos vão compreender a mensagem cifrada de Butler e aceitar a complexidade da realidade? Caminho para casa na paisagem morta de Princeton refletindo sobre a dificuldade de consensos capazes de sustentar amplas coalizões.
A ideia de performatividade é central no livro que fez sua fama, Problemas de gênero. Logo na introdução, Butler afirma que “o gênero é sempre um fazer”. Seguindo os passos de Nietzsche, para quem não existia um ser por trás do fazer, ela ressalta que “não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performatividade constituída pelas próprias ‘expressões’ que se diz serem seus resultados”. A palavra “performance” levou a muitos equívocos interpretativos, sendo associada a um caráter inautêntico ou falso do gênero. Nada mais distante do que fora proposto. Mesmo assim, Butler reconhece hoje que aspectos do livro de 1990 foram superados, como é de se esperar do florescimento do debate crítico, com seu movimento inevitável de contradição e superação.
Retiro na imponente biblioteca da universidade a novela Small Things Like These, de Claire Keegan, elogiada por Butler nos momentos derradeiros de nossa conversa. Nela, o mundo do protagonista, Bill Furlong, parece sempre a ponto de desmoronar. Furlong trabalha sete dias por semana vendendo carvão. É casado e tem cinco filhas. Foi criado pela mãe solteira graças ao favor de uma mulher com recursos numa pequena cidade no interior da Irlanda.
O trabalho é duro na época do Natal e Furlong teme que em algum momento não seja capaz de sustentar a família. Também se preocupa que as filhas sofram algum tipo de violência apenas por serem mulheres. Além dos medos de destruição em relação ao futuro, a incerteza sobre o próprio passado pesa nos ombros desse homem simples e generoso – a pobreza não o impede de doar carvão aos mais necessitados.
No centro da história está uma descoberta fortuita feita por Furlong enquanto realizava uma entrega no convento católico local. Com coragem e de forma contraintuitiva, ele resgata uma garota mantida à força no edifício da congregação. Ele sabe dos problemas que o aguardam ao desafiar a instituição mais poderosa da cidade, mas entende que seria pior o arrependimento por não ter feito nada. E seja lá o que lhe aguarde, ainda será pouco se comparado com o que a garota ao seu lado já sofrera. Mesmo através de um gesto mínimo, há um claro chamado à ação.
Butler tentara me enviar uma mensagem na garrafa?, penso enquanto tomo um gole de café morno cercado por estudantes no Small World Coffee da rua principal da cidade. Não é possível ter certeza. Mas o que importa é que estamos rodeados por milhares de garrafas, resta saber se queremos destampá-las. Talvez seja essa a marca do horror contemporâneo: conhecemos as causas dos medos, mas seguimos com o nosso modo de vida que gerou o risco de destruição que é justamente a fonte daqueles mesmos medos. Seria o pesadelo kafkiano em sua forma cínica?
Sobre a nossa dificuldade de imaginar um futuro que não seja um pesadelo, Butler afirma que esse tipo de imaginação não tem relação com previsões exatas, já que não ocorre apenas na mente. “Requer um objeto, um meio, uma forma sensorial de expressão. Imaginar o futuro é mais próximo à libertação de um potencial através de um meio sensorial; o meio não é um simples veículo para uma ideia já formada, e sim uma ideia que se consolida e toma forma, som e textura libertando um potencial utópico.”
Onde a jornalista do New York Times enxergou esoterismo, vejo a sugestão da potência da forma artística para alterar formas de vida. Arte que pode tanto revelar o horror, como é o caso de Kafka, como propor caminhos até então impensados para a transformação de um mundo cinicamente estabilizado no medo. Mesmo ao rejeitar a violência, Butler parece propor uma revolução, tão poética como potente: “E se transformarmos a liberdade no ar que respiramos conjuntamente?”