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    Ilustração: Carvall

questões de saúde pública

Risco em alta, vacina em falta

Sem doses suficientes, fila da imunização é longa até para profissionais na linha de frente contra a Covid

Camille Lichotti | 12 fev 2021_16h08
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Aloysio Fonseca, 60, é professor de clínica médica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro há 30 anos. Desde que começou a lecionar na universidade, trabalha no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), onde é chefe de enfermaria. No dia 26 de janeiro, Fonseca recebeu a primeira dose da vacina contra a Covid-19. “Nós começamos seguindo o critério de vacinar só quem estivesse diretamente ligado às unidades Covid”, explica Fonseca. Posteriormente, o Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho da Uerj (Dessaúde) seguiu as orientações do governo estadual e abriu a vacinação para os profissionais de saúde acima de 60 anos. Fonseca, que trabalha em enfermarias não destinadas à Covid-19, só recebeu a dose pelo critério de idade. Como as vacinas são escassas, outros médicos, igualmente expostos, não puderam ser vacinados porque não trabalham em leitos destinados à Covid-19. “O problema é que isso, no Hupe, não vale. Todo mundo aqui está na linha de frente.” 

Desde o começo da pandemia, o Hupe é um dos principais hospitais de referência para o tratamento de alta complexidade da Covid-19. De uma forma ou de outra, todos os profissionais do hospital acabam se envolvendo com pacientes infectados. Como exemplo, Fonseca relata um caso recente: “Um paciente chegou no Hupe e foi internado com insuficiência cardíaca descompensada. O quadro dele evoluiu bem. No terceiro dia, ele teve febre. Quando fizemos o teste, deu positivo para Covid. Nisso o paciente já ficou três, quatro dias na nossa enfermaria não Covid.”

Existe ainda um agravante: os profissionais que atendem em espaços não destinados à Covid têm menos equipamentos de proteção individual (EPI). “Ficamos mais expostos e com menos proteção”, resume Fonseca. Dos nove chefes de enfermaria, seis já tiveram a doença. Um deles chegou a ficar um mês no CTI. Além disso, se os pacientes com Covid-19 precisarem do acompanhamento de nefrologistas, cardiologistas, gastroenterologistas etc., esses profissionais também precisam entrar em ação e se expor ao vírus. Nenhum deles, com menos de 60 anos, pode ser vacinado. “O hospital recebeu pouquíssimas doses em face da relevância que tem. Foi um escárnio”, desabafa Fonseca.

A epidemiologista Carla Domingues, especialista que dirigiu o Programa Nacional de Imunizações do Brasil de 2011 a 2019, criticou a forma como as vacinas foram distribuídas. “Com poucas vacinas, não faz sentido distribuir para todos os municípios se eles têm situações epidemiológicas diferentes”, diz. Na avaliação dela, se os imunizantes forem enviados prioritariamente para áreas mais afetadas, o impacto da vacinação na transmissão da doença será maior.

Mas essa estratégia tem um revés: o enfrentamento político. “É muito mais fácil dar um pouquinho de dose pra todo mundo e falar que começou nacionalmente do que explicar para a sociedade por que tem um grupo sendo vacinado antes e que não adianta sair de um município para o outro”, afirma Domingues. “Não existe comunicação do Ministério da Saúde para convencer a população de que a vacina do outro, neste momento, é a mais importante do que a minha.” 

Até a última segunda-feira (8), foram aplicadas 1.120 doses do imunizante nos profissionais de saúde do Hupe. A assessoria do hospital confirmou que o quantitativo é insuficiente para todo o grupo prioritário. À piauí, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro informou que distribui as doses de vacina proporcionalmente ao número de leitos para Covid-19. “Neste contexto, o Hospital Universitário Pedro Ernesto, com 67 leitos destinados a pacientes com síndrome respiratória aguda grave (SRAG), suspeitos ou confirmados de Covid-19, recebeu, ainda na primeira semana de vacinação, doses equivalentes à quantidade de profissionais de saúde diretamente envolvidos no atendimento desses 67 leitos”, escreveu a secretaria, em nota. Por outro lado, o Hupe informou que mantém hoje oitenta leitos para pacientes com Covid-19 e pós-Covid. A lotação atual é de 50% na UTI e 100% nas enfermarias. 

“Deveríamos começar com as instituições levando em conta a carga da doença em cada realidade. Não faz sentido, por exemplo, vacinar profissionais de saúde de municípios com uma taxa de transmissão baixa e deixar outros sem vacina”, explica Domingues. Nesse cenário, é preciso olhar a estrutura do atendimento e a circulação do vírus para priorizar. Domingues explica que era preciso vacinar todos os profissionais dos hospitais mais afetados, depois os profissionais do Samu, que fazem o transporte, e os profissionais do laboratórios. “A gente precisa vacinar porque além do risco de contaminação, se esses serviços param, o atendimento para. Precisamos definir as estratégias para ter mais eficácia”, completa Domingues

Enquanto faltava vacina no Hupe, a 30 km dali, em postos de saúde de São Gonçalo, os imunizantes estavam sendo distribuídos fora do protocolo. Profissionais da área da saúde, mesmo os que nem sequer trabalham em hospitais, conseguiram se imunizar. A Prefeitura de São Gonçalo exigiu apenas a apresentação da carteira profissional e identidade. “Até biólogos que não estão na linha de frente conseguiram se vacinar em São Gonçalo”, conta Fonseca. “A gente ficou sem entender qual foi o critério para essa distribuição.” Não demorou muito para os imunizantes se esgotarem na cidade. Em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o secretário de Saúde foi flagrado aplicando doses na população sem nenhum tipo de controle. “O Plano Nacional de Imunização delegou claramente a definição das estratégias de vacinação aos estados e municípios”, explica Domingues. Até agora, a Ouvidoria Nacional do Ministério Público recebeu mais de mil denúncias sobre casos de fura-fila na vacinação contra a Covid-19. 

A falta de coordenação nacional é um agravante para a escassez de vacinas, provocada pela inépcia do governo federal. Até o mês passado, o Brasil contava com apenas 12 milhões de doses disponíveis, número insuficiente para cobrir todos os grupos que deveriam estar incluídos na primeira leva de vacinação. Na última quinta-feira (11), a Prefeitura do Rio de Janeiro alertou que os estoques do imunizante estavam prestes a esgotar na cidade. Até então, pouco mais de 3% da população carioca havia sido vacinada e o maior número de doses aplicadas se concentrava na Zona Sul, parte mais rica da cidade, que tem a maior proporção de população idosa. A estratégia escolhida pelo Rio de Janeiro foi de escalonar a idade do público-alvo, vacinando uma faixa etária por dia. Esse processo levou ao desperdício de doses de vacina, já que nem sempre existia público suficiente para a aplicação das doses. 

A prefeitura também avisou que a campanha de vacinação corre o risco de ser paralisada caso uma nova remessa de imunizantes não chegue até o fim da semana. O governador em exercício do estado, Cláudio Castro, declarou que não vai adiantar o repasse de vacinas para a capital e o Ministério da Saúde não informou a data exata para entrega do próximo lote de imunizantes ao Rio de Janeiro. “O risco dessa paralisação é postergar ainda mais o processo de vacinação, que já é longo”, diz Domingues. No começo do mês, a capital carioca passou a ser a cidade com mais mortes por Covid-19 do país – 17.888 até as 18 horas de quinta-feira (11).

Enquanto isso, o Hospital das Clínicas, vinculado à Universidade de São Paulo, recebeu 30 mil doses de vacina na primeira leva. Esse número é suficiente para imunizar a maioria dos profissionais ligados ao hospital, inclusive pesquisadores, professores e alunos – incluindo os que trabalham em home office e não estão na linha de frente. Nesse caso, a ordem de prioridade foi diferente da escolhida no Hupe e no Rio de Janeiro, em geral.  

Carla Domingues já enxerga problemas a longo prazo, caso o programa de vacinação não seja organizado agora. A especialista lembra que o Ministério da Saúde já deveria estar organizando a fila para outros grupos prioritários. “Quando chegar ao grupo de comorbidade, como vamos nos organizar? Como as pessoas vão comprovar a comorbidade? Quem vai ter prioridade? São questões que deveriam estar sendo pensadas desde já e não há uma política nacional de definição de cadastramento prévio para saber exatamente quem vai ser vacinado e agilizar o processo de vacinação.” O Ministério da Saúde ainda não detalhou como fará essa organização.

Além da organização, é preciso ter vacina. Após pressão do Instituto Butantan, o governo decidiu nesta sexta-feira (12) assinar o contrato de compra do segundo lote de vacinas da CoronaVac, com 54 milhões de doses. Mas no atual ritmo de vacinação, o país ainda pode demorar mais de três anos para imunizar toda a população. Entre os profissionais da linha de frente do Hupe, que já se arriscam desde o começo da pandemia, há pressa. “A vacinação acontece justamente para não perdermos mais gente”, desabafa Aloysio Fonseca.  

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro disse que “reafirma o compromisso que todos profissionais de saúde serão vacinados, gradativamente, conforme aporte e disponibilidade de doses recebidas pelo Ministério da Saúde.” Procurada, a prefeitura de São Gonçalo afirmou, em nota, que “os profissionais da área de saúde que não trabalham em hospitais só começaram a ser vacinados após toda a linha de frente receber o imunizante” e que a cidade “retomou a vacinação para os idosos acima de 87 anos e profissionais de saúde com mais de 60 anos que atuam em rede hospitalar do município ou morem em São Gonçalo e trabalhem em rede hospitalar de outras cidades”.

A prefeitura de Duque de Caxias disse, em nota, que “as vacinações realizadas em sistema DRIVE THRU [sic] nos dias 04 e 05 de fevereiro, tendo como público alvo idosos de 80 anos ou mais, seguiram os protocolos determinados para este tipo de ação, contando com a participação das equipes de vacinação da SMSDC e do próprio Secretário Municipal de Saúde, Dr José Carlos Oliveira” e que “tudo foi feito de forma responsável.”

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