Professor do curso de direito da Universidade Estácio de Sá desde 2003, o delegado Rivaldo Barbosa passou a dar aulas no câmpus da instituição em Copacabana no segundo semestre de 2022. Quando entrou na classe para ministrar a disciplina Teoria da Pena, conseguiu rapidamente deixar a turma em silêncio, com um estilo direto e meio durão. Avisou que não era permitido gravar vídeos de suas aulas e que não compartilharia seus slides, como é comum entre outros professores, porque os direitos de propriedade intelectual sobre o material eram dele. Explicou que haveria sempre uma viatura de plantão na porta do prédio para protegê-lo, por ser ameaçado de morte.
Em uma das primeiras aulas nesse câmpus, quando levantou um dos braços, alguns alunos notaram que carregava um revólver na cintura, coberto pelo paletó. A essa altura, o professor já despertava reações distintas da turma, de simpatia e repulsa.
Os incomodados tinham uma lista de motivos, e os aparatos ostensivos de segurança eram só o ponto de partida. Vez ou outra, ao narrar uma história com entusiasmo, dava socos na parede para chamar a atenção da classe. O grande mal-estar, porém, eram as notícias sobre a suspeita de ter acobertado as investigações da execução da vereadora do Psol Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o que ele sempre negou. O crime aconteceu em 14 de março de 2018, um dia depois de ter se tornado chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, cargo no qual permaneceu por apenas dez meses.
Diante dessa hipótese macabra, alguns passaram a se preocupar com atitudes rotineiras, como o hábito de convocar os alunos em pé, na frente da sala, para interagir com ele na aula, dar respostas de bate-pronto sobre a matéria e às vezes responder a perguntas sobre suas vidas fora dali. Os alunos evitavam dar detalhes de onde moravam e o que faziam, com receio de se expor diante de um delegado cuja conduta era colocada sob suspeitas tão graves. Ao longo das semanas seguintes, alguns deles, pouco confortáveis com o clima de incertezas, pediram para trancar a disciplina.
O fã-clube de Barbosa, por outro lado, era extenso. As conversas com alunos e professores conduzidas pela piauí, a maior parte sob condição de anonimato dos interlocutores, indicam que os entusiastas eram mais numerosos que os desconfiados. Muitos se sentiam eletrizados pelo carisma do professor, que narrava casos com vivacidade e riqueza de detalhes. Falava também de sua origem humilde, do seu dia a dia. Contou certa vez que, no aniversário da filha, levou ela e os amiguinhos para a delegacia, para verem o que acontece com os bandidos.
Em seus aniversários, o docente ganhava bolo e Parabéns a você. Posava para fotos com a turma fazendo coraçõezinhos com a mão. Ao final de cada semestre, recebia chocolates como presente. Não faz muito tempo, ele foi agraciado com a camisa de goleiro do Flamengo (azul, do modelo 22/23), seu time do coração. Deu aulas com a peça pendurada no teto. Era também frequentemente escolhido para receber homenagens nas formaturas.
Em 15 de abril do ano passado, foi patrono dos formandos do câmpus R9, na Taquara, na Zona Oeste do Rio. Postou em suas redes sociais um vídeo com imagens da noite acompanhadas pela música Pescador de Ilusões, da banda O Rappa, e a mensagem: “Deus é Bom o Tempo Todo” (ele se mostrava, aliás, um cristão fervoroso, com citações religiosas frequentes nas aulas e nas redes sociais).
Sentada imediatamente ao seu lado, Simone Alvarez, uma das outras professoras homenageadas, veio às lágrimas durante a formatura. Coordenadora dos trabalhos de conclusão de curso da Estácio, ela foi demitida meses depois. Conta que a faculdade alegou “reestruturação”, mas suspeita que o verdadeiro motivo seja uma foto postada em seu Instagram na qual exibe ao lado da mãe um crepe em formato fálico na creperia La Censura, que existia na época em Ipanema, na Zona Sul.
Simone afirma que Barbosa era um bom colega. “Muitos professores da Estácio fugiam de participar de banca de TCC, porque não havia remuneração extra para isso. O Rivaldo participava sempre que podia. Era gentil e ponderado, mas não dava mole para passar.”
O currículo do delegado na plataforma Lattes informa que se graduou em direito na Unisuam em 1997 e fez mestrado na universidade Must, na Flórida. Na Estácio, lecionava em diversas unidades, era coordenador-adjunto do curso de direito no câmpus Nova América, no bairro de Del Castilho, na Zona Norte.
Além de chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, ele foi também diretor da Divisão de Homicídios e colecionava casos rumorosos para contar para suas turmas.
Um aluno, que pede para ter o nome preservado, lembra que Barbosa reclamou por ter apanhado da imprensa na investigação sobre a morte de Eduardo de Jesus, de 10 anos de idade, no Complexo do Alemão, em 2015. Um tiro de fuzil disparado pela Polícia Militar acertou sua cabeça. À frente da Delegacia de Homicídios, o delegado pediu o arquivamento do caso e entendeu que os agentes agiram em legítima defesa. No ano passado, porém, a investigação foi reaberta pelo Ministério Público.
Um outro estudante se recorda de uma aula específica na qual Barbosa avisou que os estudantes não poderiam gravar sua fala. Foi quando comentou as investigações, comandadas por ele, do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza depois de uma abordagem por policiais na favela da Rocinha. Doze PMs foram condenados. Hoje, nenhum deles está preso.
Victor (que pediu para ter o sobrenome omitido) assistia às aulas de Barbosa no câmpus Nova América, em 2022. Conta que ele foi um dos primeiros professores a defender o retorno para o sistema presencial depois da fase mais aguda da pandemia, enquanto outros docentes ainda achavam o retorno temerário.
Diz que era muito querido pela turma, mas que ficou em alerta. “Na época que tive aula com ele já tinha a investigação do caso Marielle. Eu meio que fiquei com um pé atrás com ele por causa disso”, diz. Ele e mais dois amigos pesquisaram a respeito e decidiram levar um questionamento à coordenação. “Disseram que não poderiam fazer nada, porque não tinha nada comprovado.”
Na tarde do último domingo, a Estácio de Sá anunciou a demissão de Barbosa. Ele havia sido preso pela manhã em casa, em um condomínio de Jacarepaguá, sob suspeita de planejar a execução de Marielle – encomendada pelos mandantes Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e Chiquinho Brazão, deputado federal (expulso do União Brasil no domingo), segundo a Polícia Federal. Os três foram alvo de mandados de prisão preventiva expedidos pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ronnie Lessa, executor confesso de Marielle e do motorista Anderson Gomes, disse em delação premiada que Barbosa planejou o crime em detalhes, orientou que os disparos não fossem feitos na saída da Câmara dos Vereadores, a fim de evitar a conotação política do crime, e depois das mortes cuidou para espalhar pistas falsas que travaram a elucidação. Para Mônica Benício, viúva de Marielle, ele foi o grande choque entre os nomes apontados pela Polícia Federal. “[Foi uma surpresa] saber que o homem que nos abraçou, prestou solidariedade, e sorriu, dizendo que o caso seria uma prioridade, está envolvido nesse mando”, declarou à imprensa depois das prisões.
O reitor da Estácio, Flávio Murilo Oliveira de Gouvêa atendeu o telefonema da piauí no domingo, mas falou pouco. Questionado sobre a história de Rivaldo na instituição, disse: “Não sei falar disso. Ele entrou em 2003, antes de eu assumir.” Sobre dar aula armado e de haver uma viatura da polícia na porta do câmpus, declarou: “Isso eu desconheço.”
A Estácio havia acabado de divulgar uma nota oficial à imprensa informando que o professor não fazia mais parte de seus quadros. “Já foram tomadas todas as medidas necessárias para sua substituição e para a continuidade das aulas. Reforçamos que nossa atuação é sempre pautada por princípios de ética, correção e não violência e que a direção da unidade está sempre à disposição dos alunos para qualquer necessidade.”
Alexandre Dumans, defensor de Barbosa, reafirma a inocência do cliente e diz que não imagina sua volta à Estácio. “Nelson Hungria [penalista brasileiro e ministro do STF, morto em 1969] dizia que o efeito da calúnia e da difamação é como rasgar um travesseiro de penas no meio de uma ventania. As penas vão voar para todo lado, nunca mais será possível juntar todas elas. Acho que o Rivaldo nunca mais vai conseguir retomar a vida acadêmica, foi tudo para o espaço. Uma acusação como essa não se apaga, ele vai carregar pelo resto da vida. A imagem dele está combalida para sempre.”
Na quinta-feira, Barbosa deu aula na universidade, na unidade da Ilha do Governador. “Fiquei surpreso porque ele estava bem e deu uma aula muito boa, como sempre faz”, conta um jovem que era seu aluno havia dois meses e o considerou um “ótimo professor”. “Só espero que seja feito o julgamento mais imparcial possível e tudo se esclareça para o bem e para o justo.”
Nas redes sociais, alguns alunos saíram em defesa de Barbosa, dizendo se tratar de professor aplicado, e ressaltando que ele ainda terá o direito de se defender. Nas conversas, a reação era sobretudo de espanto, mesmo diante de suspeitas que já pairavam sobre seu nome.
“Quando vi uma aluna escrevendo ‘Força, professor’ no domingo, pensei que ele estava com câncer”, diz a professora Simone Alvarez. Ela avalia que muitos professores e alunos se precipitaram em sair alardeando sua inocência (algo muito comum nas mensagens de grupos de WhatsApp mostradas por estudantes à piauí) ou sua culpa, já que ainda não foi julgado. “A Estácio passou por cima da trajetória dele e demitiu na incerteza. Condenado ou não [no futuro], ele [hoje] está envolvido em um baita escândalo. Ele é um bom penalista e saberá se defender muito bem”, continua Alvarez.
Hoje, a professora trabalha de forma independente, como mentora de TCC contratada por estudantes. Na madrugada desta terça, publicou nos stories: “Você sabia que dá para fazer um TCC sobre o caso do professor em questão?” E fez em seguida um post com a sugestão:
Demissão antes da condenação transitada em julgado.
Excelente tema para TCC em:
Processo Penal
Direito do Trabalho
Sociologia jurídica