Quais são as qualidades que fazem de uma ministra ou de um ministro um bom presidente do Supremo Tribunal Federal? A pergunta é oportuna neste momento, pois ajuda, de um lado, a fazer um balanço da gestão de Rosa Weber, e, de outro, a estabelecer parâmetros para o que está por vir com Luís Roberto Barroso.
Quem comanda um tribunal, e o Supremo em especial, tem o dever de estabelecer relação direta com os demais Poderes para tratar de assuntos de interesse do Judiciário e da magistratura. É essa a política que cabe a um juiz fazer. Como responsável por um olhar holístico sobre o tribunal, o presidente também é responsável por traçar um diagnóstico do que vai bem e o que vai mal no Supremo. Sem carteiradas ou pretensão de hierarquia sobre os demais ministros, quem ocupa a presidência do STF deve convencer os colegas de que as máculas da corte fazem mal à Justiça, e precisam ser reconhecidas e corrigidas.
Por último e mais importante, a presidência do Supremo, responsável por definir a pauta de julgamentos do órgão máximo do STF, o plenário, exige coragem e prudência. Coragem para não se furtar ao debate das grandes emergências jurídicas do país, aquelas em que os direitos consagrados pela Constituição mais carecem de defesa. E prudência para que essa tarefa, ao ser cumprida, não seja percebida como desaforo ou usurpação pelas partes que serão fatalmente desagradadas.
Rosa Weber se mostrou à altura da tarefa. Luís Roberto Barroso terá que mostrar qualidades semelhantes para guiar o Supremo na era pós-Bolsonaro.
Barroso acaba de completar dez anos de STF e, assumindo pela primeira vez o comando do tribunal, tem todas as condições de ser um bom presidente. Terá a desafiadora tarefa de suceder a breve, porém marcante, gestão de Rosa Weber, ministra que nos fez lembrar como é bom ter no tribunal pessoas que agem, por inteiro, como verdadeiras magistradas.
Weber teve a chance de gastar em seu mandato – e gastou bem – os pontos de prestígio que acumulou ao longo de uma carreira de excelência e discrição. Atuou sempre como quem sabe que juízes ganham pontos quando são tecnicamente rigorosos nas decisões e econômicos nas palavras. Atuou como quem sabe, também, que a respeitabilidade de um juiz às vezes morre pela boca ou por sua agenda social. Só conhecemos o som da voz de Weber porque uma pequena fração de tudo o que julgou foi transmitido pela TV Justiça. É surpreendente que ainda não tenha surgido um meme parodiando Cartola: “A Rosa não fala (fora dos autos).”
Foi sorte do STF tê-la no comando do tribunal durante o horror do 8 de janeiro. Primeiro, por sua firmeza em insistir que, a despeito da total destruição do prédio do Supremo, o ano judiciário de 2023 recomeçasse lá mesmo. Haviam se passado três semanas da invasão, e Weber percebeu que seria uma derrota simbólica se o STF se desalojasse naquele momento. Mostrou, com isso, que não é preciso ser arroz de festa de políticos para ter sensibilidade política nas crises.
A discrição de Weber deu a ela tranquilidade para tomar medidas abertamente publicitárias, mas importantes, em relação ao 8 de janeiro, como a inauguração de uma exposição com objetos destruídos na invasão ao tribunal. Não havia risco de que sua ação fosse interpretada como ato insincero, panfletário, oportunista. Ninguém se perguntou a quem ela estaria “mandando sinal”, “fazendo acenos”, ou de quem estaria “tentando se aproximar”. Nem naquela situação, nem em qualquer outra: isso porque Weber nunca usou os poderes e os acessos da toga para “costurar apoios”, “construir pontes” ou buscar “aliados” na política – eufemismos muito comuns no jornalismo que, não raro, encobrem casos de promiscuidade na alta magistratura. Nunca se deixou encantar por eventos, viagens, ou pelos holofotes que às vezes atraem, como mariposas, quem deveria se preservar.
Por tudo isso, Rosa Weber sempre passou confiança em suas decisões. Não que a ministra seja unanimidade: foi muito criticada, por exemplo, quando deu um voto decisivo contra a liberdade a Lula, em 2018, dobrando-se a um entendimento que havia sido fixado pelo tribunal, ainda que dizendo ir contra sua opinião pessoal. Mas, mesmo numa situação como essa, Weber nunca foi acusada de antirrepublicanismo ou conduta antiética, como ocorre com outros ministros.
Num momento em que Lula faz pouco caso da representação feminina no STF, Weber se aposenta mostrando que ter mulheres na cúpula do Judiciário faz, sim, diferença. Na presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ela deu prioridade à construção de uma regra que enfrentará a disparidade de gênero nos tribunais, de modo que veremos progressivamente mais mulheres nas segundas instâncias estaduais e federais. Mas nem ela foi capaz de vencer todas: a despeito de seus esforços, o CNJ rejeitou regulamentar com mais rigor a participação de magistrados em palestras e eventos, mantendo aberta a brecha – da qual ela jamais se aproveitou – que estimula trânsitos indecorosos e mancha a imagem da Justiça.
O exemplo que a presidência de Rosa Weber deixa para Luís Roberto Barroso ganha mais força quando se contrasta com as gestões anteriores, de Luiz Fux e Dias Toffoli. Este último achou que poderia poupar o tribunal, ou apenas a si próprio, aproximando-se de Jair Bolsonaro e dos militares. Abraçou o ex-presidente num encontro a portas fechadas em outubro de 2020 – momento eternizado numa fotografia – e se referiu ao golpe de 1964 como um “movimento”. Fux, por sua vez, prometeu priorizar assuntos relevantes para a economia, mas viu seus planos serem atropelados pela condução desastrosa da pandemia por Bolsonaro.
Weber, ao contrário, nunca vendeu a ilusão, nem alimentou o desejo, de que o Supremo poderia fugir de temas espinhosos. Nas ações que questionam a criminalização excessiva do aborto, não apenas as conduziu com temperança, na condição de relatora, como também deixou – não apenas ao STF, mas aos cânones dos grandes casos constitucionais – um voto notável, com argumentos jurídicos cuidadosos, que leva a sério as posições adversárias, mas sustenta, com propriedade, que o Código Penal está violando direitos fundamentais das mulheres. E como presidente, pautou o tema para julgamento. Ou seja, cobrou o escanteio e correu para a área para cabecear. Ter iniciado o julgamento desse tema, sem medo das reações conservadoras que ainda estão na praça, ou dos protestos (infundados, nesse caso) que vêm do Congresso, é um de seus maiores legados. Barroso pode seguir essa trilha se resolver se empenhar, por exemplo, nas boas causas ambientais, tema para o qual já mostrou sensibilidade.
Espera-se que o ministro, porém, tenha aprendido com o passado. Quando presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), entre 2020 e 2022, Barroso caiu na armadilha do diálogo com o extremismo. Chamou militares para uma comissão de transparência eleitoral. Colheu chicanas e deslealdades, e, pior, deu pretexto para que eles tentassem deslegitimar as urnas, afirmando terem encontrado falhas no sistema de voto eletrônico. Teve de ouvir chacotas de Bolsonaro: “Eles convidaram as Forças Armadas a participar do processo. Será que ele se esqueceu de que o chefe das Forças Armadas se chama Jair Messias Bolsonaro?” Nesta terça-feira (26), enfim, os militares foram excluídos da comissão de fiscalização das eleições.
Qualquer tentativa de distensionar a relação do STF com o extremismo político (que tem na mira o próprio Barroso), por meio de barganhas ou concessões, será infrutífera. Omitir-se em ações que discutem a proteção de direitos ou poupar quem ataca a democracia apenas enfraquecerá o tribunal: deixará a impressão de que ele não tem forças, ou disposição, para cumprir com as funções que justificam sua própria existência. Será, além de tudo, uma estratégia ineficaz: os ataques voltarão tão logo os extremistas se virem com força para retomá-los. No TSE, Barroso teve seu melhor momento justamente quando mostrou coragem, suportando ataques diretos de Bolsonaro para impedir o retrocesso do voto impresso. Essa mesma firmeza de propósito sua, vista também nas ações de Rosa Weber, precisa permanecer.
Presidentes do Supremo têm muitos poderes, mas todos eles devem ser exercidos tendo por parâmetro o papel do tribunal: guardar a Constituição. Com senso republicano de prioridades, bom procedimento, estabilidade e boas razões jurídicas. Tribunal que torce por agendas positivas, receia polêmicas e se dispõe ao diálogo com o extremismo é, parafraseando Millôr, armazém de secos e molhados.