Nadir levantou o braço e contemplou as unhas, incendiadas pelo esmalte vermelho da véspera. O sol também brilhava vermelho, prenunciando seu ocaso. Na sala do pequeno apartamento, rasgada por uma janela generosa, a angústia, discretamente cumpria o ritual, exibindo suas credenciais. Ela desviou o olhar para a ânfora, magistral entre os bibelôs da estante, objeto de impecável sobriedade. As cinzas de seu único amor ali repousavam.
Um grande silencio a invadia; o silêncio esmagador do nada, seu sal selava o silêncio. Solidão. Ao sentir a inanição sonora consolidar-se em seu espírito, abriu a janela e permitiu a entrada dos ruídos. Amados ruídos da rua, amados ruídos do quotidiano.
Quem poderia imaginar que um dia ela fosse temer o silêncio.
Lembrou-se de quando assistiram juntos um recital de John Cage. Um pianista em silêncio por 4 minutos e 33 segundos. Que escândalo! Ainda jovem, Nadir havia ficado impressionada com as idéias sobre o acaso e a indeterminação na música.
Foi em um festival, em Teresópolis, que ela ouviu, pela primeira vez, falar em John Cage. O professor Kollreuter promoveu aulas com improvisação livre, expondo as teorias de Cage, apresentando aos alunos, uma nova aproximação com os fenômenos sonoros. Segundo Cage, tácito arauto da nova música, a única chance era o silêncio.
E foi assim, foi nesse mesmo festival, que ela conheceu Estevão, chance única em uma vida! Perto dele, o resto era gorjeta.
Ele fazia o curso de violão, e assistia a outras aulas como ouvinte. As do professor Kollreuter eram as mais disputadas. E eles descobriram, junto com o fascinio por Jonh Cage, a fascinação mútua. Assim começaram um namoro, que se estendeu para uma convivência conjugal. Música para harpas, cartão postal para o céu!
Estevão era um apaixonado pelo acaso, fazia experiências com dados, tentava criar um sistema para acertar na loto, acreditava em telepatia! Será que eles um dia ainda conseguiriam se comunicar, ela do lado de cá, e ele do lado de lá? Existiria telepatia depois da morte? – porque será que toda vez que eu penso em telepatia, eu lembro do theremin?
E ela começou um devaneio, lembrando-se da primeira vez que vira um theremim, durante um festival de música nos anos 60, usado por Rita Lee. Mas isso foi antes de vir morar no Rio. Época do livro O despertar dos mágicos. Ela colecionava caracóis e pedras, acreditava que a fênix, assim como as sereias e os unicórnios, poderiam mesmo existir. Era feliz.
Mas com Estevão foi mais feliz.
Agora já estava escuro. Era bom acender a luz do abajur e fechar a janela, está ficando frio. Aguar as samambaias, as rendas portuguesas, as avencas, cuidar das plantas. Me acalma. As plantas são silenciosas. Não falam. Mudas. Lembrou dele contando que o John Cage havia sido jardineiro. Isso era quase uma fábula, essa história.
Num período de muita recessão nos EUA, anos 30, Cage, entre outros empregos, conseguiu o de jardineiro. Em casa de duas senhoras ricas. Um dia, houve um concerto de musica clássica na cidade, e John Cage foi assistir. Algumas retardatárias chegaram quando a sala já escurecia, e sentaram-se ao seu lado. No intervalo, ao acender das luzes, elas percebem que estão sentadas perto de quem? Do jardineiro da casa delas, do serviçal, meu Deus, sentadas próximas a seu próprio empregado! Indignadas, indignadas, elas abandonaram o salão. Parece uma fábula mesmo, essa história…
E ontem, na manicure, que eu encontrei a Clotilde, meu Deus, minha amiga de infância, lá de Casimiro de Abreu! Está morando no Rio agora. Conversamos sobre a nossa convivência infantil, comentamos os tipos esquisitos de nossa pequena cidade, aqueles que acabavam assustando as crianças. O preto Biriba, que vivia com um saco branco nas costas, que medo! Os pais diziam que o saco era pra levar as crianças que não se comportavam. Eu tinha uma impressão tão ruim dele, quando ele passava… e sempre passava do outro lado da rua, sempre na outra margem. Cuidávamos para que houvesse bastante distância entre nós e aquele vulto maligno.
Mas que coisa mais poética, que revelação, quando minha amiga disse:
– o Biriba, você não sabe? Ele era jardineiro, sim, era jardineiro! O saco branco sabe pra que que era? Pra levar as ferramentas de jardinagem, quando cuidava dos jardins e parques da cidade…
Agora, ao lembrar dele passando do outro lado da rua, farejo rosas e silêncio. Afinal, as rosas não falam…
Links e vídeos
Música para harpas – Cartão postal para o céu
Os mutantes – 2001, parceria de Tom Zé e Rita Lee -video do festival da record, onde Rita Lee toca theremin
Leon Theremin tocando o instrumento inventado por ele, e que leva seu nome.
É engraçado, não existe contato físico na execução do theremin. Também em 4’33” o pianista não faz contato físico com as teclas…
Cartola, As rosas não falam