O mais recente número da revista (n. 15, dezembro 2013, www.doc.ubi.pt), dedicado ao tema “Documentário e história”, traz entrevista de Ruy Guerra, dada em Lisboa a Rafael Antunes e António Costa, doutorandos da Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação.
Estando disponível na íntegra on-line, destacamos a seguir apenas alguns trechos das questões tratadas, em maio de 2011, pelo “Cineasta da palavra”, como Ruy Guerra é nomeado pelos entrevistadores.
Agradecemos aos editores da , Manuela Penafria e Marcius Freire, pela gentileza de autorizarem esta publicação.
Sendo o português a oitava língua mais falada do planeta, o que impede o cinema feito nos países Lusófonos de alcançar seus cerca de 200 milhões de habitantes?
Vontade política. A noção da importância dessas relações. Não compreenderem que todos os grandes caminhos econômicos passam pelos entendimentos culturais. Não compreenderem o sentido do que era o mercado de antigamente, em que não era só uma troca de produtos, era uma troca de informações, era uma troca de relações, uma troca de experiências e, no caso específico do cinema, não compreender que é um desses veículos que mais facilmente transpõe as fronteiras se houver o mínimo de amparo, o mínimo de apoio econômico. […] Enquanto os governos acharem que a cultura merece apenas 0,5% do PIB nacional, isto vai continuar assim. Enquanto não compreenderem que a cultura merece muito mais que isso, vamos continuar a ser países sufocados economicamente. Nem sequer quero dizer que a cultura vai dominar os outros países mas, se quisermos uma independência econômica, numa relação de igualdade, tem que ser pelos caminhos da cultura, pelos caminhos do diálogo e pelos caminhos da troca de experiências, que não são simplesmente trocas em percentuais […] É pela troca de valores culturais, que é o que há de fundamental no ser humano, que é o “olhos no olhos” e isso só se consegue através da cultura.
A linguagem cinematográfica é universal?
Não, de jeito nenhum. […] O cinema só se pode tornar universal, na medida em que cada cinematografia corresponder à cultura do seu próprio país ou da sua própria região ou às suas próprias preocupações momentâneas e históricas. Querer padronizar a linguagem, sob pretexto de a tornar universal, é a mesma coisa que quiseram fazer com o esperanto. Inventaram uma língua que, se toda a gente a aprendesse, podia saber todas e, no fim de contas, é uma língua sem sabor, sem sal, sem pimenta, sem nada que ninguém aprende e que vive na cabeça de uma meia dúzia de pessoas. Nunca encontrei na minha vida, até hoje, e vou fazer oitenta anos, alguém que falasse esperanto. A linguagem universal tem de partir de cada cultura. O cinema tem de ter a sua especificidade. Evidentemente, tem uma matriz básica, que são os elementos específicos da linguagem cinematográfica e esses vão ser os mesmos que, com o trânsito que existe hoje da globalidade e com trânsito dos meios visuais, da multimí́dia, da televisão, se tornam, numa certa forma, gerais. Mas não é tentando pasteurizar essa linguagem, nem procurando um modelo único de dramaturgia e um modelo único de recursos cinematográficos, não é com um único veio de criação que se estabelece uma linguagem universal. O caminho é o contrário.
Que balanço faz do mundo de hoje?
Você não facilita a minha vida… Eu acho que há duas atitudes diante da vida. Que não devem partir da racionalidade, devem partir de um ato de sobrevivência ou de fé, não obrigatoriamente no sentido religioso, mas no sentido de uma convicção profunda ou de uma escolha, e que é uma atitude de acreditar, ou não, no futuro. Isso quase tem sido tomado como aporia, em que tanto vale isso como vale o contrário. Você escolhe em que lado é que se quer colocar. Eu coloco-me sempre do lado que me parece mais vital, prefiro acreditar sempre nas possibilidades. Então, eu acho que o mundo hoje enfrenta uma crise, mas o mundo enfrentou muitas outras crises e é evidente que, na contemporaneidade de cada crise, dentro do processo da história, a última que aparece é, sempre, a mais importante, a mais vital e a mais decisiva. Eu não sei se a crise que atravessa o mundo de hoje é isso, pode ser que ainda venham outras piores, pode ser que, depois desta crise, venha um período paradisíaco ou, pelo menos, não tão catastrófico quanto o que estamos a viver, e pode ser que estejamos a criar uma imagem demasiado severa do processo civilizacional como ele é hoje, se o compararmos com outros momentos da história e que foram momentos de grandes crueldades. Não faltam momentos de crueldade na História. O que talvez hoje seja mais assustador é que essa crise é, em nível mundial, (desencadeada) pelo processo de comunicação que foi criado pela tecnologia moderna. Antigamente, se alguma coisa que acontecia na Europa, fugia para a China, se acontecia na China, ia para o mar do sul, aparentemente, havia refúgios dentro do próprio planeta. Hoje, esses refúgios já não existem e tudo é alcançável, tudo é catalogado. Os computadores encontram-no através de qualquer sistema, dos mais simples sob o ponto de vista técnico, mas eficazes na capacidade de ir buscá-lo ao buraco onde você possa querer esconder-se, e isso, de certa forma, assusta. É um planeta sem guaridas. Se uma catástrofe acontece na China, vai acontecer no resto do mundo. E isso assusta-nos, porque não estamos habituados a essa globalidade. Mas quem sou eu para dizer que isto vai por um caminho de uma possível melhoria ou se vai agravar. Não tenho a menor ideia, nunca tive vocação de profeta e não vou arriscar nada. Mas, pessoalmente, prefiro que cada um faça o seu trabalho de formiga e que lute para que essas coisas não aconteçam. E eu, na medida das minhas ínfimas e minúsculas participações nesse processo mundial, estou sempre de um lado que vai contra aquilo que me parece errado, obstinada e violentamente contra, e não abro mão desse meu direito.
Já fez todos os filmes que queria?
Eu não. Eu fiz perto de 30 filmes, entre curtas e longa-metragem como realizador, depois fiz outros como editor, como roteirista, como ator, mas isso foram momentos da minha trajetória, momentos de sobrevivência ou de prazer ou de aprendizagem. […] Mas eu queria ainda fazer, pelo menos, mais uns seis filmes, porque fiz quinze longas-metragens e gostaria de fazer vinte e um, acho que é um número razoável. Pode ser que, daqui a pouco, aumente um pouco, se chegar rapidamente a dezoito pode ser que aumente o número de vinte e um. Eu também tinha decidido, há uns quinze anos atrás, que ia morrer com 116 anos. Fiz um cálculo daquilo que queria fazer na vida, inclusive com a minha carreira, que ainda não começou, de escritor, e calculei que 116 anos talvez desse para fazer aquilo que quero. Mas há 4 ou 5 anos atrás, corrigi esse número de 116 para 117. Mais um anozinho, que me pareceu ser mais realista no ponto de vista da trajetória que quero executar. Isto parece ser uma nota de humor, mas é principalmente um ato de vontade. Acho que, se você começa a encarar a vida olhando para a morte, começa a enfraquecer a sua criatividade, o ímpeto, as suas vontades e as suas energias começam a consumir-se. Então, eu prefiro colocar metas, mesmo que pareçam inatingíveis mas que não são inatingíveis, coloco como possíveis e com a certeza de que as vou executar, a não ser que haja um acidente inesperado. Tenho vários filmes que ainda quero fazer e o meu único orgulho, na área cinematográfica, talvez seja o de nunca ter feito um filme que nunca quisesse fazer. Sempre fiz os filmes que queria fazer e os que não queria fazer, não fiz. Prefiro não fazer nada, ficar longos períodos sem filmar mas não faço aquilo que não quero fazer. Para mim, o ato de fazer filmes, a partir do momento que o escolhi, é um ato sagrado, como fosse um crente ou religioso. É um ato de sentido da minha vida e o sentido da minha vida não pode ser conspurcado com momentos de fraqueza pessoal, simplesmente pelo desejo de filmar, pela vontade de estar num set de filmagens, pelo prazer das luzes e do encantamento dos mistérios do cinema, não é por isso que eu me vá sujar com um trabalho no qual eu não acredite. Então, esse talvez seja o meu lado puritano, mas não abro mão de não filmar aquilo que eu não acho que merece ser filmado. Estou sempre na esperança de conseguir filmar aquilo que desejo filmar e que é ainda muita coisa.