Em uma gravação que dura pouco mais de 40 segundos, o espectador se depara com Adriana Varejão em seus vinte e poucos anos. Era o início da década de 1990. A artista plástica aparece executando, de forma vigorosa, uma série de movimentos do Kung Fu. Tem os cabelos longos, presos num rabo de cavalo, veste camiseta e calças largas, em diferentes tons de cinza. Concentrada, parece não se importar com os pedestres que passam ao seu lado, no pátio de um colégio na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, onde ela treinava artes marciais.
A sequência, que inclui saltos e chutes, é parte do documentário Adriana Varejão: Entre Carnes e Mares, primeiro longa-metragem a esmiuçar as influências por trás de uma das mais célebres artistas plásticas contemporâneas do Brasil. O filme é homônimo a um livro lançado em 2009, pela editora Cobogó, que traz o portfólio de Varejão e ensaios sobre suas obras.
O documentário, da Conspiração Filmes, é dirigido por Pedro Buarque – ele e Varejão são casados – e Andrucha Waddington. A artista acompanhou a filmagem e a produção. Boa parte do longa é composta por imagens de arquivo como aquela do treino de Kung Fu, gravadas com uma pequena câmera analógica que Varejão comprou no final dos anos 1980. A previsão de lançamento é maio de 2024, tanto no cinema quanto na televisão (no Canal Curta). Há também exibições previstas na Mostra Internacional de São Paulo, que acontecerá entre 19 de outubro e 1º de novembro.
O filme é uma biografia artística de Varejão, hoje com 58 anos. É dividido em seções e recorre a entrevistas com curadores como Keyna Eleison, Lilia Schwarcz e Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp e nome responsável pela curadoria da 60ª Bienal de Veneza, em 2024. Os entrevistados falam em off, comentando obras específicas de Varejão. Esse formato, que escapa ao convencionalismo das “cabeças falantes”, é eficaz ao demonstrar, sem didatismo, aspectos pouco conhecidos do trabalho da artista plástica.
Isso fica claro quando o assunto é a China. A relação de Varejão com a cultura chinesa, pouco discutida até hoje, mereceu uma seção própria no filme. Trata-se de um elemento da história pessoal da artista que influenciou seu trabalho desde que ela entrou no universo da pintura, na década de 1980, quando teve contato com o pintor escocês Charles Watson.
“O Charles me deu aulas de pintura no Parque Lage e me incentivou a conhecer artes marciais chinesas. Então, com o mesmo mestre dele, o Hu Hsin Shan, comecei a praticar Tai Chi e o Kung Fu”, explicou Varejão à piauí. “Esse mestre era chinês e tinha idade avançada. Dizem que tinha sido general do exército de Chiang Kai Chek [arquirrival de Mao Tse Tung] e que saiu da China durante a Revolução Comunista [que tomou o poder em 1949].”
O que parece, inicialmente, uma anedota sobre a juventude de Varejão, vai se revelando um aspecto formador de sua estética. “Também nos anos 80, conheci as igrejas barrocas de Minas Gerais e reconheci nelas vários elementos chineses da arquitetura e da pintura”, rememora a artista. “A Igreja Nossa Senhora do Ó, em Sabará, tem várias partes em preta e dourada, com motivos sinos.” Entre eles, figuras de pequenos dragões pintadas em algumas pilastras.
O encontro com o barroco brasileiro marcou a obra de Varejão desde o princípio, como pode-se ver nas pinturas Altar Amarelo (1987) e Atlantes (1988). Nelas, há uma opulência ora melancólica, ora fantasmagórica. É uma sensação quase tátil, devido à utilização de uma grande quantidade de tinta na superfície da tela. A pesquisa sobre a China foi sendo feita de forma paralela e se desdobrou, anos mais tarde, em obras como Açougue Song (2000).
Depois de ter aprendido o Kung Fu, Varejão deu aulas da arte marcial. Aprendeu o mandarim e, em 1991, visitou a China, onde permaneceu por quase três meses. Seus companheiros de viagem não eram artistas, mas sim um grupo de médicos acupunturistas que frequentavam o círculo das artes marciais. Para Varejão, um dos motivos de ir à China era aprender técnicas da medicina tradicional chinesa, lecionadas em Xangai. Nessa temporada, entre visitas a hospitais e museus, a artista carioca pôde conhecer, presencialmente, as famosas cerâmicas craqueladas da época da Dinastia Song (que governou a China no período de 960 a 1279). “Posteriormente, eu levei esse processo estético que observei na cerâmica Song para o meu trabalho”, ela diz.
O filme é dividido em oito seções (ou módulos): “Craquelês”, “Celacanto provoca maremoto”, “Saunas”, “Anos 60”, “Barroco”, “China”, “Carnes” e “Epílogo”. Essa divisão, que não se preocupa em ser cronológica, serve para mostrar as técnicas mais usadas no trabalho de Varejão, seus projetos mais ambiciosos e, em dado momento, o imaginário da arquitetura moderna que rondou sua infância, quando a artista carioca morou em Brasília. Somam-se a isso a influência da cultura asiática e a herança do passado colonial brasileiro.
Segundo Pedro Buarque, co-diretor e marido de Varejão, a intenção era contar uma história de forma não linear. As diferentes seções do filme são costuradas por uma sequência em que a artista lê trechos de textos que escreveu ao longo de sua vida. As pretensões de Buarque e Waddington, seu parceiro, são ambiciosas. “Queremos que o documentário se transforme em material de referência para alguém estudar a obra dela daqui a dez, vinte anos”, diz Buarque.
Os dois diretores são sócios da Conspiração e atuam em dupla há muito tempo, geralmente com Waddington na direção e Pedro na produção. No currículo conjunto, estão títulos como os longas de ficção Eu, Tu, Eles (2000), estrelado por Regina Casé, e Casa de Areia (2005), protagonizado por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres. No documentário sobre Adriana Varejão, a estreia de Buarque na direção deu densidade à narrativa, que consegue discutir artes visuais sem recorrer a jargões, mas também sem ser simplista. Ele explica que seu conhecimento de artes se deve ao pai, o advogado Luiz Buarque de Hollanda, que trabalhou como galerista nos anos 1970. “Ele era amigo da Lygia Clark, do Cildo Meirelles…”
Adriana Varejão: Entre Carnes e Mares é exitoso ao mostrar que a artista tem uma relação de ziguezague com a pintura. É muita atenta à tradição dessa linguagem, mas não se deixa dominar. Passeia por outras paragens, como a azulejaria portuguesa. Foi trabalhando com esse formato, transitando entre o craquelado chinês e o barroco, que Varejão produziu a série Celacanto Provoca Maremoto (2004-2008), instalada em seu pavilhão no centro cultural Inhotim, em Brumadinho (MG). O nome dessa obra faz referência a uma pichação que ganhou fama nos muros do Rio de Janeiro, nos anos 1970.
O documentário não contou com equipe numerosa nem orçamento astronômico – cerca de 1,8 milhão de reais, incluindo recursos próprios. As gravações, em sua maioria, foram feitas sem que houvesse “ordem do dia”, espécie de cronograma de filmagens comumente usado para orientar diretores e atores. O único momento em que se exigiu uma operação de maior porte foi na hora de filmar Varejão lendo seus textos em diferentes locações. A gravação demandou dezenas de funcionários durante cinco dias.
De resto, o filme amadureceu dentro de casa. Juntos desde 2011, Varejão e Buarque discutiam corriqueiramente detalhes do roteiro. “As conversas se estendiam pra casa, onde você, entre uma atividade cotidiana e outra, busca novos caminhos pra narrativa e compartilha ideias”, explica Buarque. Varejão concorda, mas esclarece que, apesar disso, não teve influência tão grande sobre os rumos do filme. “Tanto é que não fui eu que dirigi nem fiz o roteiro. É trabalho em conjunto”, explica a artista plástica. “Eu não queria que fosse uma ‘ego trip’, em que o artista fica no centro. Para mim, a grande protagonista do filme é a obra.”