15 de novembro de 1972. Em dia de Marinho endiabrado e com Jairzinho imarcável, o Botafogo enfiava inacreditáveis seis a zero no Flamengo, a maior goleada que eu já presenciara num jogo de futebol profissional. Na volta pra casa, a bordo do 433 que ligava a Zona Sul ao Maracanã, o clima era pesado e eu curtia um silêncio indigesto. A sensação de mal-estar permaneceu por nove anos. Mesmo com o Flamengo sendo campeão estadual em 74, 78, 79 e brasileiro em 80, enquanto o Botafogo encarava a pior seca de títulos da sua história, não tinha jeito. Sempre que o clássico se repetia, a gente atravessava o sombrio túnel de acesso à arquibancada e, quando chegava à luz, via lá do outro lado, no meio da torcida botafoguense, a faixa com o texto em caixa alta e o trocadilho infame: NÓS GOSTAMOS DE VO6.
8 de novembro de 1981. Em dia de Adílio endiabrado e com Zico imarcável, o Flamengo devolvia os seis a zero na medida certa, nem mais nem menos, e aposentava de vez a atrevida faixinha de morim.
Logo depois o ano virava e o país começava a viver o clima de Copa do Mundo, cheio de otimismo com a talentosa seleção de 82. Eu trabalhava na J.W.Thompson, uma grande agência de propaganda instalada em um palacete na rua São Clemente, em frente ao clube Gurilândia. (Leitores do Rio: ainda existe o Gurilândia, ou já virou um condomínio chamado The Children Land Residence Towers?) Nosso diretor de criação tinha proposto à Pepsi – então um dos maiores clientes da agência – a produção de um pequeno folheto com casos curiosos de cada uma das Copas, e pediu a mim e ao diretor de arte Ronald Galvão Lins que tocássemos o trabalho. Para ter certeza de boas histórias e garantir a qualidade do texto, sugerimos que João Saldanha assinasse o folheto, e ele topou. O projeto não foi adiante, mas eu e Ronald chegamos a fazer duas reuniões com Saldanha, lá mesmo na Thompson, e certamente foram as mais divertidas de todas as que eu participei em tantos anos de profissão.
Numa das conversas, o também flamenguista Ronald resolveu cutucar a fera, e perguntou a Saldanha o que ele achara dos seis a zero do Flamengo sobre o Botafogo. O homem fez cara de poucos amigos, respirou fundo e passou a desancar Paulinho de Almeida, técnico alvinegro naquela derrota. João Saldanha não perdoava o treinador por não ter feito o que deveria para impedir a devolução da goleada, e o que Paulinho de Almeida deveria fazer, segundo Saldanha, era simples. Nada de substituições surpreendentes, nada de mirabolantes mudanças táticas: bastava ordenar um cai-cai aos jogadores botafoguenses.
O cai-cai pré-Neymar era diferente, e já teve sua época. Acontecia quando um dos times se sentia prejudicado pela arbitragem e, dando o jogo por perdido, seus jogadores iam se estatelando no gramado e sendo retirados em sequência, todos com supostas contusões seríssimas. Era uma forma de protesto. Quando o quinto farsante saía, o juiz era obrigado a encerrar a partida, já que não se pode disputar um jogo de futebol com menos de sete em campo. Para Saldanha, estava na cara: como o Flamengo virara o primeiro tempo ganhando de quatro a zero, o cai-cai teria que começar logo depois do intervalo, a fim de evitar o quinto gol rubro-negro e prevenir a catástrofe.
Além de comunista convicto e inquebrável, João Saldanha sempre foi um cara do futebol. Jogou bola na praia e no campo, treinou o Botafogo e a seleção brasileira, carregou por muito tempo o troféu de comentarista mais respeitado por toda a torcida carioca, que pouco ligava para sua assumida paixão. (Saldanha costumava dizer: “Não sou filho de chocadeira, não tenho motivo para esconder que torço para o Botafogo.”) Aos neófitos e aos desavisados, talvez causasse revolta ver um cara tão ligado ao esporte pregar a utilização de um recurso tão antiesportivo. Pra mim soou normal, e a estratégia recomendada por Saldanha virou mais um ícone do que a paixão por esse jogo infernal é capaz de fazer com a gente.
Lembro dessa história sempre que vejo alguém tentando fazer do futebol o esporte politicamente correto que, decididamente, ele não é. Ano passado, duas situações envolvendo o Vasco só não me deixaram de cabelos em pé porque não os tenho, e nem tenho jatinho da FAB para ajudar a contornar o estrago. Uma delas, no jogo com o Cruzeiro, foi criada pelo lamentável fair play. O atacante cruzeirense Willian fez a gentileza – ou falsa gentileza, sei lá – de devolver para o lateral Fágner uma bola que o Vasco colocara para fora. Só que Willian partiu pra cima de Fágner, retomou a bola e começou a jogada do quarto gol. Ali ao lado, na área técnica, Dorival Jr. pulou, esbravejou, rodou a baiana, deu piti. Bobagem. Fair play dentro de campo é pura fraude. A segunda situação foi a denúncia de Juninho Pernambucano pelo STJD – ah, o STJD! – por ter endurecido o Pai de Todos para a torcida do Flamengo, que o xingava. Quanta falta do que fazer. Essas coisas sempre estiveram presentes no futebol, provocação e malandragem são do jogo, e às vezes me parece que querem inventar um esporte novo, imaculado e, sobretudo, chato.
Prefiro a sincera indignação de João Saldanha com Paulinho de Almeida à insuportável hipocrisia que tem entrado em campo às quartas e domingos – além, claro, de pisar com sapatos de cromo alemão os tapetões do STJD, nos muito estranhos julgamentos encerrados ao entardecer das sextas-feiras.