O “Questões musicais” abre alas para um belo ensaio de Ana Carolina Brandizzi, estudante de História da Arte na UFRJ, sobre uma clássica canção do Chico. Boa leitura!
Samba e Amor: um elogio ao desejo
Desejo, vontade, paz. É isso que chega aos nossos ouvidos quando Chico Buarque transmite os versos de Samba e Amor, canção de sua autoria lançada no ano de 1970. A música, que é narrada por um eu-lírico calmo, livre de qualquer preocupação externa, quase que preguiçoso, traz não somente a visão de um homem que não quer fazer nada além de samba e amor, mas um homem que encontra “no colo da benvinda companheira” e “no corpo do bendito violão” a forma mais plena de ser leal consigo mesmo: realizar a vontade de fazer samba e amor.
Essa lealdade se dá ao afirmar que o seu desejo está à frente de qualquer obrigação que a rotina lhe imponha. Ele ainda caracteriza o mundo externo e as suas urgências, que estão, simultaneamente, perto e longe do quarto onde suas aspirações se encontram. O mundo externo está perto quando se é possível ouvir a fábrica buzinando, sentir o alarde da cidade, ver o dia amanhecendo, e, mais perto ainda quando o trânsito contorna a cama dos amantes e reclama do seu eterno espreguiçar. Chico se utiliza de todos esses elementos para trazer à sua composição a ideia das obrigações da vida moderna, do trabalho, da rotina, do mundo que corre e carrega em si a necessidade de um homem que se ajuste mecanicamente às suas demandas. Em contrapartida a esta proximidade, é possível perceber uma distância delimitada pelo próprio sujeito da canção, que se opõe a iminência do tempo, as tarefas do dia-a-dia e a rotina massacrante de quem trabalha, ou seja, tudo aquilo que bate à sua porta como uma ameaça a realização dos seus desejos. Ao fechar a porta para o externo, ele diz não para uma realidade desgastante para dizer sim a si mesmo, dizer sim às suas paixões, dizer sim ao seu sossego. Este “sim”, é mais do que uma escolha, é uma necessidade que parte dele e que é reconhecida por ele com clareza e aceitação. O personagem percebe que não há porque lutar contra a sua vontade, pois ela está intrínseca nele, imbricada no seu eu e no seu próprio modo de levar a vida. Lutar contra esta vontade significaria querer negar o que sua própria natureza vocifera, tentar calar uma voz que não se cala, que é incessante aos ouvidos da consciência mesmo quando o que se quer é banir esta vontade. Chico nos traz um homem que compreende a ineficácia de se opor à sua própria natureza, um homem cujo querer caminha lado a lado da vontade, um homem que se atenta ao que seu corpo pede, que se entrega às suas paixões e ao que é mais natural para si, pois ele entende que a vontade não é questão de escolha, pois mesmo quando se escolhe querer outra coisa, a vontade permanece lá, pura, verdadeira, forte, e de um modo ou de outro encontrará uma maneira de se manifestar. Ele ainda questiona uma possível preguiça ou covardia, pois ele admite: “Eu faço samba e amor até mais tarde/E tenho muito mais o que fazer”, porém, mesmo sabendo que tem mais o que fazer, ele se doa para a amada e para o violão, definindo claramente quais são as suas prioridades. Ele não se importa em ter muito sono de manhã, pois o sono é apenas a consequência da satisfação da noite anterior, no sono ele encontra os resquícios de seu prazer, de sua realização, e é onde ele se liberta de qualquer possível culpa que possa surgir em razão de sua entrega.
A forma lânguida com a qual Chico entoa seus versos, nos traz uma atmosfera de conforto e tranquilidade, nos possibilita sentir o seu estado de espírito, o estado de espírito de quem está num quarto onde só se respira música, volúpia e prazer. Nos remete ao deleite que se pode sentir ficando até mais tarde fazendo o que mais nos agrada ou até mesmo o deleite de poder ter sono de manhã, após uma noite de regozijo. Samba e Amor é uma canção que inspira sensualidade, serenidade, poesia e acima de tudo revela a certeza de estar sendo leal a si mesmo, a resistência em não se abalar com nada, não se deixar levar pelos infortúnios da vida, de não deixar que o desagradável afete os prazeres e, principalmente, a certeza de só querer fazer samba e fazer amor.