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questões cinematográficas

Santiago, Itália – acolhimento e discriminação

Filme sobre refugiados chilenos acolhidos em solo italiano se engaja em causa nobre, mas soa esquemático

Eduardo Escorel | 03 jul 2019_08h24
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A causa é meritória. O filme, porém, deixa a desejar. Em Santiago, Itália (2018), Nanni Moretti resgata do esquecimento a prova de solidariedade dos diplomatas e cidadãos italianos, dada em setembro de 1973, ao acolherem refugiados políticos chilenos, primeiro, na embaixada em Santiago, depois, em grande parte, na região da Emília-Romanha, no norte da Itália.

O documentário demora a esclarecer o propósito de Moretti ao resgatar o episódio ocorrido em seguida ao golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet. Acaba revelando, porém, que a razão de ser do documentário é contrapor, de um lado, a acolhida generosa dada, há 45 anos, a mais de 250 chilenos, e, de outro, a “direção oposta em que está indo boa parte da sociedade italiana”, conforme Moretti declarou em entrevista à RAI, a Rádiotelevisão italiana.

Para Moretti, “foi horrível ver o Partido Democrático [partido de centro-esquerda do qual ele é eleitor fiel] não travar o bom combate civilizatório e humanitário sobre a cidadania enquanto estava no governo. Ou dar cidadania italiana a crianças nascidas na Itália e que estudaram cinco anos, o chamado ‘Ius Soli temperato’ ou ‘Ius Culturae’ [princípio do direito pelo qual estrangeiros menores de idade adquirem a cidadania do país no qual nasceram e vivem, com a condição que tenham frequentado a escola ou feito cursos de formação equivalentes por um número determinado de anos.]

“Frequentemente, são crianças italianas para todos os efeitos, que falam os vários dialetos do nosso país. Mas não lhes foi dada identidade. Essa foi uma batalha que não foi travada e foi verdadeiramente um erro vergonhoso e incompreensível para mim. Por que me exalto tanto? Porque como sou um dos poucos eleitores que permaneceu fiel ao PD fico p da vida quando ele não faz o seu trabalho. Não se trata de não ter sido suficientemente de esquerda: sim, isso também. Mas não apenas isso: não só foram incapazes de nos explicar e contar a nós italianos que uma coisa eram os desembarques de imigrantes e outra completamente diferente a reforma da cidadania, que daria uma identidade a crianças italianas que agora não a tem.”

Essa declaração não passou em branco. Matteo Orfini, presidente do PD, declarou acreditar que Moretti “tem razão, foi um erro gigantesco”: “O governo é um instrumento, não um fim em si. E às vezes é preciso arriscar, como fizemos com as uniões civis. Para mim essa continua uma ferida aberta e me sinto responsável: era eu quem dirigia o PD e não tive a força para impor uma linha mais corajosa ao nosso governo.”

Em outra declaração, Moretti disse que durante a filmagem ele se perguntava com frequência por que estava fazendo aquele filme “e não sabia o que responder. Depois, terminadas as filmagens, Matteo Salvini se tornou ministro do Interior e então eu entendi por que realizei esse filme. Entendi a posteriori”. Em resposta, Salvini, da Liga, partido político de direita, além de ministro do Interior também vice-primeiro ministro e principal responsável pela política de imigração, escreveu: “O diretor radical-chic está de volta e me põe ao lado de um ditador sanguinário [Augusto Pinochet]. Quanta paciência… Contudo, também a Nanni mandamos um beijão.”

No passado, refugiados políticos foram salvos e muitos, graças ao apoio recebido, refizeram a vida na Itália, passando a se considerar ricos por terem dupla nacionalidade. Atualmente, porém, filhos de imigrantes nascidos na Itália, ou que chegaram pequenos, foram discriminados, deixados no limbo sem cidadania própria.

Santiago, Itália tem origem, portanto, na admirável indignação moral e política de Moretti, ainda que comparar situações tão distintas, separadas por quase meio século, resulte esquemático. O evento rememorado tende a ser idealizado, enquanto a complexidade da situação atual é desconsiderada.

No primeiro plano do documentário, o próprio Moretti está de costas, parecendo observar a paisagem de um terraço elevado – diante dele, de uma lateral a outra da imagem, há prédios da cidade de Santiago e a cordilheira paira sobre a capital, com o cume das montanhas coberto de neve. Depois de ter feito quinze longas-metragens, é a primeira vez que o diretor é um viajante que filma no exterior. Mas o objetivo da ida de Moretti ao Chile, continua a ser retratar a Itália como em seus filmes anteriores. Desta vez, porém, a Itália lembrada é um pretexto para falar da atual, na qual ele diz que “o cinismo prevaleceu” e pela qual deixa claro sentir profundo desgosto.

“Muitos italianos estão hipnotizados pela imigração”, disse Moretti. “É um medo que lhes foi pacientemente inoculado pelo líder da Liga, Matteo Salvini. “Essa gente que tomou o poder na Itália se considera acima das leis. Declararam guerra à magistratura. Têm, além disso, pouca familiaridade com a gramática institucional e cada indivíduo munido da mínima competência lhes parece naturalmente suspeito. Nesse sentido, há uma continuidade direta com Berlusconi.”

Para realizar Santiago, Itália, Moretti adotou três balizas – entrevistar apenas participantes dos acontecimentos de 1973, deixando de fora historiadores, políticos e quaisquer outros especialistas; não ser o protagonista, “como Michael Moore” ele explica; tampouco recorrer a narração.

O corpo principal do filme é formado, então, por inúmeros relatos de homens e mulheres beneficiados pela acolhida recebida da Itália. De forma geral, Moretti intervém pouco, sempre de modo discreto e quase sem aparecer em cena. Filmados com câmera fixa e enquadramento frontal, mesmo passados 45 anos, ao lembrar dos eventos, alguns se comovem a ponto de não conseguir continuar falando.

Duas entrevistas de ex-militares sobressaem das demais. Um deles está em liberdade e não parece ter noção do que está dizendo. O outro é Raúl Eduardo Iturriaga Neumann, preso desde 2007 em Punta Peuco, onde Moretti o filmou. Punta Peuco é um centro de detenção na região metropolitana de Santiago, construído em 1995 especialmente para condenados por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar (1973-1990).

Vice-diretor de inteligência da Dina (Diretoria de Inteligência Nacional), Iturriaga Neumann foi condenado na Itália, na França e no Chile por cumplicidade em sequestro e desaparecimento, confinamento, detenção arbitrária, tortura e atos de barbárie, inclusive os assassinatos, entre outros, do general Prats, em Buenos Aires, e de Orlando Letelier, em Washington.

O espectador de Santiago, Itália não recebe essas informações. Fica sabendo tão somente o nome do entrevistado e que se trata de um ex-militar que está preso. Inquirido, Iturriaga Neumann reage, dizendo a Moretti que ele não é seu confessor, nem um juíz. Há um corte e no plano seguinte, pela primeira vez no filme, Moretti está em quadro, diante de Neumann, ambos em pé. “Me haviam dito que esta entrevista seria imparcial”, diz Neumann. Moretti bate a mão no peito e diz com orgulho: “Eu não sou imparcial. Eu não sou imparcial.”

Ao incluir a cena em Santiago, Itália, Moretti deixa claro que se trata de um filme engajado no qual convicções pessoais do realizador se impõem, sendo, portanto, parcial por definição. Situa-se, dessa forma, de modo inequívoco, fora do campo do documentário. O filme serve para se contrapor a “uma grande parte da sociedade italiana [que] está indo em direção oposta com relação à receptividade, à solidariedade e à curiosidade pelos outros”. Para Moretti, o valor de Santiago, Itália é utilitário. É um meio de fazer uma intervenção política na qual certas considerações éticas, próprias do documentarista, são deixadas de lado – quais sejam, não fazer papel de promotor ou juiz, limitando-se a observar e tentar compreender.

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