O general Carlos Alberto dos Santos Cruz que começou a falar a uma plateia formada por jornalistas e estudantes de comunicação nesta quinta-feira (27/6), em São Paulo, parecia uma figura completamente apartada do governo Jair Bolsonaro, do qual foi demitido há duas semanas.
Entrevistado no painel de abertura do 14º Congresso da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), o ex-ministro da Secretaria de Governo já de cara demarcou essa distinção ao exaltar o papel da imprensa numa democracia. “Para mim é uma honra estar aqui, vim para retribuir a consideração que a imprensa tem tido comigo em várias oportunidades, [estou] pagando uma dívida de gratidão pelo tratamento respeitoso”, disse Santos Cruz. Bolsonaro costuma apontar a imprensa como adversária e já ameaçou ou intimidou jornalistas e veículos que publicaram notícias que o desagradavam.
As divergências ficaram mais explícitas quando o general ouviu uma pergunta sobre o trio que atuou pela sua demissão: o polemista Olavo de Carvalho, que o ofendeu em redes sociais; Carlos Bolsonaro, o filho do presidente apontado como maior responsável pela fritura; e o chefe da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), Fabio Wajngarten, subordinado que não nomeou e sobre o qual não tinha controle. “Não vou discutir sobre essas personalidades públicas, porque senão teria que baixar muito o nível de meu palavreado”, afirmou Santos Cruz, que evitou responder diretamente se Carlos mais ajudava ou atrapalhava o governo. “Não vou falar.” Diante das risadas da plateia, brincou: “Olha aí, o pessoal sabe”.
Num dos poucos momentos em que saiu do sério, o general definiu como “crime” e “comportamento de gangue” a divulgação de uma mensagem – que ele diz ser uma montagem — atribuída a ele com críticas a Bolsonaro, Carlos e Wajngarten. A mesma mensagem endossa um comentário de que “o jeito vai ter que ser colocar o [vice-presidente Hamilton] Mourão mesmo”. “Isso aí chegou ao presidente, não sei quem mandou, é coisa para a Polícia Federal investigar, não para mim”, disse Santos Cruz.
Em duas ocasiões ao longo de uma hora e quarenta e cinco minutos de sabatina, o ex-ministro frisou que até agora não foi informado pelo presidente do motivo de sua demissão. “Acho normal ser substituído até sem dizer o motivo. Porque eu não sei o motivo, isso aí é honesto: eu não sei o motivo, não me foi dito o motivo. Agora, eu não vou criticar a forma para não ser antiético.” Provocou gargalhadas na plateia quando citou um trecho do clássico da dor de cotovelo Garçom para defender a naturalidade de sua demissão: “É como diz o Reginaldo Rossi: meu caso é mais um, é banal”.
Embora se saiba, nos bastidores, que o motivo principal da saída tenha sido o desgaste com a ala olavista do governo, sobretudo pelo controle que o militar fazia sobre as verbas de publicidade, publicamente Bolsonaro atribuiu a demissão à falta de habilidade política de Santos Cruz para lidar com parlamentares – uma das atribuições do ministério. O substituto dele na Secretaria Geral é general da ativa Luiz Eduardo Ramos.
Santos Cruz disse que a prioridade de governo deveria ser a redução da “desigualdade social imoral” do país, uma pauta que, no entanto, jamais foi privilegiada por Bolsonaro. O próprio general comentou que apoiou Bolsonaro na campanha porque estava “traumatizado com tanto escândalo de corrupção, e ele tinha proposta de estancar a corrupção, e pela parte de segurança pública”. Para o general, até a chegada do atual governo, o país tinha só escândalo. “Nos meus seis meses de governo, o que vi de dinheiro desperdiçado e jogado pelo ralo era um negócio impressionante. A sensação que eu tenho é que o Brasil foi assaltado e levou aquele arrastão da praia de Ipanema, mas que não levaram só celular, levaram óculos e sandálias Havaianas, tudo.” Santos Cruz não deixou claro que recursos, nem de que órgãos públicos, viu serem jogados pelo ralo.
Antes de responder a uma questão sobre o motivo de sua saída do governo, o ex-ministro cunhou uma boa frase de efeito: “Os princípios são mais importantes do que o media training”, disse, em alusão ao treinamento que figuras públicas recebem para lidar com jornalistas. Ao longo da sabatina, conduzida pelos jornalistas Daniel Bramatti, do jornal O Estado de S. Paulo e presidente da Abraji, e Julia Dualibi, da GloboNews, Santos Cruz terminaria por revelar princípios mais alinhado às ideias do bolsonarismo do que as rusgas em torno de sua saída do governo fazem supor.
Questionado se considerava o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra – chefe do principal centro de tortura da ditadura 1964-1985 e o único militar reconhecido pela Justiça como torturador – um herói, assim como o fizeram Bolsonaro e Mourão, o ex-ministro mencionou os assassinatos cometidos por integrantes da luta armada e afirmou:
“Não vou fazer aqui análise de todo o período, desse tipo de luta, para ver quem estava certo, quem estava errado. Analisar isso daí é um negócio complicado. Toda violência, dos dois lados, não deveria ter acontecido. A tática da época era essa.” Confrontado com o argumento de que a violência praticada pelo Estado não pode ser tolerada (Bramatti citou o exemplo da Itália dos anos 1970, onde o governo não torturava nem matava guerrilheiros, mas os prendia), o general disse que não conhecia o caso italiano.
Santos Cruz também não respondeu objetivamente se as Forças Armadas devem admitir institucionalmente os erros que cometeram na ditadura. “Claro que não deveria ter acontecido. Agora é fácil de fazer essa análise. Difícil é quando você está no olho do furacão, quando você tem que ter equilíbrio num ambiente que não é equilibrado.”
O ex-ministro chamou de “lamentável” o episódio em que uma patrulha do Exército matou o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo ao disparar mais de 200 tiros no carro em que estava a família de Rosa, em abril, no Rio. Mas, questionado por que o governo Bolsonaro não condenou o procedimento dos militares, disse que não conhecia o caso em detalhes e que é preciso esperar o julgamento dos envolvidos.
O general foi instado também a analisar a frase, recorrente entre bolsonaristas, de que “direitos humanos são para humanos direitos”, e contemporizou: “Isso aí é talvez para contrabalançar excessos do outro extremo. Você não pode usar isso aí como assunto ideológico”.
Numa entrevista posterior à sabatina, Santos Cruz foi questionado sobre os diálogos em que o então juiz Sergio Moro – hoje ministro da Justiça e da Segurança Pública – orienta procurados da Força-Tarefa da Lava Jato em processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que ele próprio julgaria, revelados pelo site The Intercept. “Não invalida nada, e Sergio Moro continua valorizado como uma personalidade histórica. Não fiquei vendo os diálogos, mas, do pouco que vi, não achei nada de escabroso.”
Moro era um dos convidados confirmados no Congresso da Abraji. O ministro daria nesta sexta (28) uma entrevista nos moldes da concedida por Santos Cruz. Depois da revelação dos diálogos, o ex-juiz cancelou sua participação no encontro de jornalistas.