Esta reportagem é parte da série “Aqui mando eu: democracias frágeis, políticas autoritárias”, projeto jornalístico dedicado a investigar expressões contemporâneas do autoritarismo na América Latina. O projeto é coordenado pela produtora mexicana Dromómanos, em parceria com o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (Laut) e os seguintes veículos: El Universal (México), El Faro (El Salvador), Divergentes (Nicarágua), Cerosetenta (Colômbia), Efecto Cocuyo (Venezuela), revista piauí (Brasil) y La Pública (Chile). Participaram desta reportagem: Breno Pires (apuração e texto), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).
O mês de fevereiro de 2021 foi atípico para os brasileiros. Era um inédito ano sem Carnaval graças à pandemia de Covid-19, que naquele mês matou, em média, mais de mil pessoas por dia no país. Por inoperância do governo federal, até 23 de fevereiro, só 6 milhões e meio de pessoas, 2,9% da população total, tinham tomado a primeira dose da vacina. Em Brasília, o governo de Jair Bolsonaro tinha outro problema: não conseguia aprovar o Orçamento da União para o ano que se iniciava. Um dos motivos do atraso era a negociação sobre as emendas parlamentares, modificações que senadores e deputados podem fazer no orçamento para direcionar recursos públicos a projetos, obras e cidades. Em tese, cada parlamentar pode enviar até 16 milhões de reais em emendas, a metade disso necessariamente na área da saúde. Na prática, uns são mais eficientes que outros em obter verbas, e o motivo pelo qual um parlamentar tem mais dinheiro para enviar não está na lei, tampouco na Constituição. É fruto de negociações políticas em que a ideologia e as convicções pessoais ficam de lado. Votos são trocados por verbas públicas, num mecanismo que dá sustentação ao governo mas, se extinto, pode até derrubá-lo.
Na gestão de Bolsonaro, o toma lá dá cá das emendas do orçamento tomou outra dimensão. Sem força no Congresso e constantemente ameaçado de impeachment, o governo concedeu aos partidos com quem negociava apoio político uma autonomia jamais vista com o dinheiro público, alimentando o mais amplo esquema de corrupção sistêmica no Brasil das últimas décadas. O parlamentar vota como quer o governo ou seguindo a posição dos presidentes da Câmara e do Senado, em troca de acesso a verbas milionárias do orçamento, muitas vezes maiores do que aquelas a que tem direito. Para isso, Bolsonaro reativou e elevou a proporções nunca dantes vistas um mecanismo-chave dos escândalos orçamentários brasileiros dos anos 1990: as chamadas emendas de relator-geral, em que a emenda é atribuída ao relator da proposta orçamentária, mas na verdade beneficia um parlamentar cujo nome não vem a público. O esquema tornou-se conhecido como orçamento secreto graças a duas características: a falta de transparência sobre os parlamentares beneficiados e a ausência de critérios técnicos na destinação de verbas.
O impasse de fevereiro de 2021 era justamente o tamanho do bolo das emendas de relator. Disso dependia a aprovação do orçamento. Em 18 de fevereiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, se reuniu com a presidente da Comissão Mista de Orçamento, Flávia Arruda (PL-DF), e o relator-geral do orçamento, senador Márcio Bittar (União Brasil-AC). Os representantes do Congresso estavam preparados para pedir 13 bilhões de reais para emendas de relator. No gabinete do ministro, tiveram uma surpresa. Guedes informou que o governo autorizava 16,5 bilhões de reais.
O encontro terminou com uma cena curiosa. O ministro caminhou até a porta de mãos dadas com os emissários do Congresso e disse: “Você é relatora do orçamento, quer dizer, presidente da Comissão Orçamentária. E você é o presidente do orçamento, quer dizer, relator-geral do orçamento. Vejam só. Isso aqui nunca aconteceu. Isso aqui nunca aconteceu.” Ao contrário do que o ministro apregoava, não há novidade no entendimento entre o ministro da Economia e o Congresso. Inédita mesmo foi a forma como, para sobreviver às constantes ameaças de impeachment, o governo federal delegou ao Parlamento o controle sobre uma parcela enorme dos investimentos.
No fim de março, o Congresso descumpriu o combinado com o ministro e aprovou a Lei Orçamentária com 30 bilhões de reais para as emendas de relator. Para isso, subestimou despesas obrigatórias e tirou dinheiro de aposentadorias, seguro-desemprego e abono salarial. Até o ultraliberal Guedes resolveu peitar o Parlamento. Em uma reunião, subiu num sofá e, aos gritos, puxando os cabelos, afirmou que aquele valor não poderia passar, pois resultaria em impeachment. Em público, foi taxativo: tal orçamento era inexequível.
Quase um mês e muitas idas e vindas depois, o Planalto sancionou o orçamento com 16,9 bilhões de reais em emendas de relator. O acordo sacrificou gastos destinados ao funcionamento da máquina pública, além de investimentos em políticas públicas e ações que já estavam em andamento. O Censo demográfico foi cancelado. O acordo reduziu a capacidade do Executivo de investir, enquanto parcelas cada vez maiores dos recursos ficaram nas mãos dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Na prática, num governo de débil articulação parlamentar, Bolsonaro usou o orçamento como garantia de sobrevivência política. Aliou-se aos partidos Progressistas, PL e Republicanos, do chamado Centrão, agremiações de direita lideradas por parlamentares historicamente em busca do controle de verbas e cargos públicos. Quando candidato em 2018, Bolsonaro vendeu – a quem quis acreditar – a ideia de que era contra entregar ministérios, verbas e cargos em troca de apoio político. A realidade política o fez abraçar o que um dia prometeu expurgar.
Em maio de 2021, uma série de reportagens do jornal O Estado de S.Paulo escancarou as entranhas do orçamento secreto. Mostrou também o empenho das verbas para bancar tratores e máquinas agrícolas superfaturados. Em vez de conter a sangria, Bolsonaro e o Congresso manobraram para manter a prática. O orçamento secreto já vive hoje sua terceira temporada, num arranjo garantido, de um lado, pela troca de favores entre Executivo e um grupo majoritário do Parlamento e, de outro, pela afronta a uma decisão do Supremo Tribunal Federal.
Temporada 1: Tomando o Congresso
O ano de 2020 viu a primeira temporada do orçamento secreto. A engrenagem, porém, ainda era precária e variava entre os ministérios. Os parlamentares em geral conversavam com o ministro Luiz Eduardo Ramos, então chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, ou com seus assessores e eram informados das cotas a que teriam direito. Quando o parlamentar não tinha proximidade, eram os líderes dos partidos que faziam a ponte com o ministro. Cada parlamentar enviava então seus pedidos aos ministérios, já avisados. A lista dos contemplados ficava na mão do governo.
Do primeiro ano do orçamento secreto, 2020, pouco restou. O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (à época no DEM-RJ, hoje sem partido), achava que teria o mecanismo a seu favor, mas ficou a ver navios. Ramos distribuiu as emendas de forma a beneficiar aliados do governo e garantir a eleição, para a presidência da Câmara, de um aliado mais fiel de Bolsonaro: o deputado Arthur Lira, alvo de denúncias de corrupção na Lava Jato e na política local alagoana. Sob a batuta de Ramos, o governo empenhou, em dezembro de 2020, 9,3 bilhões de reais para atender indicações de deputados e senadores dispostos a votarem em Lira, na Câmara, e em Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado, também aliado de Bolsonaro.
Com Lira e Pacheco eleitos e o esquema descoberto, Congresso e Executivo entenderam o pulo do gato. Precisavam mudar tudo para que tudo ficasse como estava – como na frase do romance O Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. E o atraso na aprovação do orçamento terminou ajudando a manter o esquema. Quando as primeiras reportagens sobre o orçamento secreto saíram, nenhum real de emenda de relator de 2021 fora empenhado. Houve uma corrida, então, para tentar “regularizar” as ilegalidades mais flagrantes desde o início da execução naquele ano.
O fim de maio de 2021 marca o início da ofensiva do governo, organizada em duas frentes, para manter vivo o esquema. No primeiro front, normas internas dos ministérios começaram a ser alteradas para impedir que recaíssem sobre ministros e sobre o presidente a responsabilidade por irregularidades na distribuição das emendas. No segundo, o governo tentou minimizar os danos do escândalo e impedir novos abalos com revelações sobre as indicações passadas e, o mais importante, sobre informações referentes ao orçamento de 2021.
A segunda-feira 24 de maio foi de correria na Esplanada. Quatro dias antes, um despacho no Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que o governo, em cinco dias, entregasse todos os documentos sobre as emendas de relator. Formalmente, a Casa Civil ainda não havia sido notificada da decisão, mas o governo pariu em questão de dias uma portaria que dava ao relator-geral do orçamento o direito de escolher os municípios que deveriam receber as emendas aprovadas no Congresso. A finalidade era retirar das costas de ministros e do presidente quaisquer suspeitas por violar as leis de Responsabilidade Fiscal e Diretrizes Orçamentárias. O Congresso, que já possuía o bônus do controle das verbas, que ficasse também com o ônus da operação.
Publicada no dia 25 e assinada pelos ministros da Economia, Paulo Guedes, e pela então titular da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, a portaria não tinha efeito retroativo sobre o que ocorreu em 2020 e não livrava o governo de questionamentos legais. Serviu, não obstante, para aperfeiçoar o acobertamento dos favorecidos no esquema em 2021. Ao estabelecer no texto que “caso seja necessário obter informações adicionais quanto ao detalhamento da dotação orçamentária objeto deste título, poderá o ministro da pasta respectiva solicitá-las ao autor da emenda”, o governo avisou ao Congresso que só receberia as indicações diretamente do relator-geral do orçamento de 2021, senador Márcio Bittar (União-AC). A medida pôs fim às trocas de ofícios em que deputados e senadores cobravam o direcionamento de verbas de acordo com suas cotas – e que acabaram revelando o esquema.
Temporada 2: Afrontando a Justiça e escondendo informação
Em 2020 ainda havia sido possível obter uma pequena fração dos ofícios de deputados e senadores, mas a portaria acabou com isso em 2021. O fim dos ofícios ajudou a eliminar quase todas, mas não todas as provas do orçamento secreto. Os nomes dos contemplados com emendas de relator seguem listados em planilhas internas conhecidas pelo menos pelo relator-geral, pelos presidentes da Câmara e do Senado e pela articulação política do Planalto. As planilhas dormitam em gabinetes como o da assessora especial de Arthur Lira, Mariangela Fialek, descrita nos bastidores da Câmara como o “HD” do orçamento secreto.
A segunda trincheira erguida em defesa do orçamento secreto foi a da ocultação das informações que o governo já tinha recebido. Nessa frente, atuaram os ministérios, o núcleo político no Planalto e até a Controladoria-Geral da União (CGU), encarregada de fiscalizar as demais pastas.
O ministro da CGU, Wagner Rosário, demorou semanas para comentar o orçamento secreto. Quando o fez, em entrevista na Rádio Jovem Pan, tentou minimizar o escândalo. E, nos bastidores, o órgão deu uma mãozinha para minimizar os danos. Na última semana de maio, o número dois da CGU, José Marcelo Castro de Carvalho, manteve reuniões reservadas com secretários-executivos de ministérios e, segundo uma fonte que prefere se manter sob anonimato, orientou como eles deveriam responder às solicitações feitas com base na Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre as emendas de relator-geral: todos os pedidos poderiam ser rejeitados sob justificativa de que eram genéricos. Esse tipo de expediente começou a ser usado por ministérios. Outra resposta frequente em pedidos de LAI foi dizer que todas as informações deveriam ser buscadas junto ao relator-geral do orçamento.
As reuniões ocorreram entre 24 e 28 de maio, no Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), no Ministério da Defesa, no Ministério do Turismo e na Casa Civil. Nenhuma dessas reuniões aparece na agenda do número dois da CGU. As agendas dos secretários-executivos das pastas, no entanto, informaram os encontros. Na agenda do Mapa, por exemplo, a pauta informada é “Operações Institucionais”. Pela lista de presentes, não havia ninguém da área de controle interno nem de corregedorias.
Todo esse movimento do Executivo tinha por objetivo transferir ao Congresso a responsabilidade política e legal sobre o orçamento secreto. Apesar da flagrante compra de apoio de deputados e senadores, o importante era impedir que o eleitor de Bolsonaro compreendesse que se tratava de corrupção. Com mudanças de normas e blindagem às informações, o circo do orçamento secreto de 2021 estava montado, com uma estrutura mais sofisticada e mais clandestina.
Embora não tenha sido decisivo na criação do esquema, o presidente da Câmara, Arthur Lira, tornou-se o maior símbolo do orçamento secreto. Primeiro, porque é o maior beneficiado. Concentra um poder descomunal na presidência da Câmara, fisgando apoios em troca de frações das verbas que controla. Segundo, porque sustentou e sustenta até hoje uma posição contrária à transparência.
Com a revelação do escândalo, algumas vozes dentro do Congresso apontaram que era necessário dar transparência às emendas para evitar questionamentos mais duros. O Tribunal de Contas da União, em 30 de junho de 2021, fez uma recomendação formal ao Executivo de que ele deveria disponibilizar as informações sobre os beneficiados pelas emendas de relator-geral e criar um sistema que permitisse monitorar as indicações, identificar os autores das emendas e mapear as destinações.
“Isso é assombro de assessor”, costumava dizer Lira quando alguém o alertava para os riscos do esquema. Lira não contava com a decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, que levou adiante a recomendação do TCU e deferiu uma liminar suspendendo o orçamento secreto e determinando transparências nas operações.
A resposta do Congresso ao Supremo foi dobrar a aposta para manter os segredos do orçamento. No fim de novembro, Câmara e Senado aprovaram uma resolução conjunta com o objetivo de institucionalizar as emendas de relator e, pela primeira vez, explicitar que elas serviam para distribuir verbas e não apenas fazer ajustes no orçamento. A nova regra passou com votos até da Oposição, incluindo deputados que lamentavam não ter controle sobre muito dinheiro e, coincidentemente, puderam, depois disso, indicar emendas para seus redutos eleitorais.
A tratorada de Arthur Lira passou no Congresso, mas não foi bem aceita no Supremo Tribunal Federal, que passou a discutir o caso diretamente com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O Supremo voltou atrás na liminar e liberou a execução das emendas de relator. Mas ainda não julgou o mérito das ações que pedem o fim do dispositivo. Apesar da resistência de Lira, o Congresso aos poucos entende que, se não der um mínimo de transparência à distribuição de emendas, pode ser que o Supremo fulmine o esquema.
Em novembro de 2021, o Supremo determinou que todas as indicações de emendas entre 2020 e 2021 tivessem seus padrinhos revelados. Os valores globais eram de 36,5 bilhões de reais – mais do que o custo de um ano do programa Bolsa Família. Até hoje, porém, o governo e o Congresso ocultam, deliberadamente, informações sobre quem decidiu o destino da maior parte dos valores. O relator-geral de 2021, Márcio Bittar, se recusou a informar os solicitantes dos repasses. Em uma medida esdrúxula, Pacheco, presidente do Senado, pediu que cada deputado e senador dissesse o quanto enviou. Nos documentos despachados para o Supremo no início do último mês de maio, os parlamentares só admitiram, ao todo, terem indicado repasses de 11 bilhões de reais, 30% do total, de acordo com levantamento feito pelo jornal O Globo. A omissão dos nomes de quem destinou 26 bilhões de reais é mais um sinal de descumprimento à decisão do Supremo. O procurador-geral da República, Augusto Aras, assiste a tudo sem nada interferir.
Temporada 3: Buscando a reeleição
Em 2022, o Brasil assiste à terceira temporada do orçamento secreto. Um ano depois das primeiras reportagens sobre as emendas de relator, Congresso e governo cederam em alguns pontos para não colocarem em risco o esquema. Sob pressão, o Congresso esboça movimentos que, teoricamente, podem dar mais transparência às questões orçamentárias. Criou um sistema de cadastro online, chamado Sindorc, em que todos os interessados em emendas devem expor suas solicitações.
Em um primeiro momento, no início de maio, o relator-geral do orçamento de 2022, deputado Hugo Leal (PSD-RJ), enviou ao governo indicações de emendas que somam 1,7 bilhão de reais, todas do Ministério da Saúde, informando os nomes de todos os parlamentares associados a cada um dos repasses, o que é positivo. Mas ainda é cedo para avaliar se houve uma mudança de padrão ou foi um lapso de transparência.
Na segunda leva de indicações enviadas ao Congresso, entre os dias 31 de maio e 1º de junho, o relator-geral já encaminhou ao governo indicações no valor de 1,3 bilhão sem identificar os parlamentares envolvidos. Os pedidos foram cadastrados por usuários externos, o que inclui prefeitos, governadores, representantes de ONGs, responsáveis por hospitais privados que atendem no SUS. O valor corresponde a 20% do total já indicado – 6,3 bilhões. Só para o estado do Amapá, por exemplo, esses “usuários externos” conseguiram aprovação do relator-geral para indicações de 200 milhões de reais. Outros 208 milhões de reais foram solicitados para o Amazonas sem que os padrinhos no Congresso aparecessem. O governo está começando a dar andamento às indicações.
A promessa de transparência é importante para o Congresso por atender a dois propósitos interligados. O primeiro é manter debaixo do tapete tudo que foi feito nos verões passados, tentando vender ao Supremo a ideia de que nada será como antes. O segundo, não colocar em risco a sobrevivência do modelo de barganha de apoio político em troca de verbas.
No balanço de indicações agora tornadas públicas, o orçamento secreto versão 2022 já tem 323 deputados atendidos pelo relator-geral – quase dois terços dos 513 totais – com a bagatela de 3,2 bilhões de reais. Também atendeu 34 senadores que aceitaram aparecer, com indicações de 1,9 bilhão de reais. A maior parte deles, 22, já pôde indicar mais de 49 milhões de reais, cada. A existência de 1,3 bilhão em indicações de emendas sem padrinho informado aponta que o número de parlamentares atendidos e as cifras que eles direcionaram são ainda maiores. Isso tudo significa óleo na engrenagem para aprovação-relâmpago das pautas que Arthur Lira coloca para votar – sejam elas de seu interesse ou do interesse do governo.
A temporada 3 do orçamento secreto também tem um antagonista. Não por ser contra a destinação das verbas, mas por querer mandar nela. Trata-se do novo homem mais poderoso da República, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Licenciado dos postos de senador pelo Piauí e de presidente nacional do Progressistas, ele já barrou emendas de opositores no Piauí e fez da sua suplente e mãe, Eliane Nogueira (PP-PI), uma das maiores beneficiárias do orçamento secreto, com 400 milhões de reais indicados só no segundo semestre de 2021.
Em fevereiro, Nogueira fez dois movimentos que preocuparam os parlamentares. Mandou aos secretários-executivos dos ministérios onde repousam verbas do orçamento secreto o recado de que cada pagamento precisa ser aprovado por ele pessoalmente. Além disso, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), presidido por seu apadrinhado, Marcelo Ponte, ex-chefe de gabinete nos anos de Senado, começou a empenhar verbas do orçamento secreto sem prévia autorização do relator-geral do orçamento. Isso acendeu um alerta, entre parlamentares, de que Nogueira pode se tornar um obstáculo para a autonomia do Congresso na execução dessas emendas.
A quatro meses da eleição, parlamentares vão colhendo os louros das indicações que fizeram nos últimos anos sem ter que prestar contas. Os segredos do orçamento permitem que um deputado de um estado X envie verbas para um estado Y em troca de propina, num esquema que caracteriza venda de emendas e está sob investigação da Polícia Federal. Outro problema é que, ao concentrar verbas nas mãos de deputados e senadores com mandato, o orçamento secreto também contribui para a perpetuação de políticos clientelistas e seus clãs, fechando portas para a renovação política.
No salão verde da Câmara dos Deputados, nada disso parece preocupar muito os parlamentares. A maioria defende abertamente as emendas de relator, se diz a favor da transparência e afirma que só envia dinheiro para projetos de interesse de seus eleitores. Mas muitos desconversam sobre quanto enviaram e nenhum admite ter enviado verbas para outros estados, a não ser que seja confrontado com algum documento.
Entre os deputados que condenam as emendas, um dos argumentos mais frequentes é o da concorrência eleitoral desleal. “Por que aquela deputada mandou mais ambulâncias que a senhora?”, ouviu uma deputada paulista. “Aquele senador está mandando muito mais do que o senhor”, teve de escutar um deputado mineiro. “Eu não mexo com essas emendas de relator-geral”, teve de se explicar um deputado capixaba. Todos preferem se manter em segredo, seja para não criar atritos no Parlamento, sejam para não admitirem que podem menos que adversários contra quem vão concorrer nas eleições em outubro.
Dos deputados procurados pela reportagem na última semana de maio, André Janones, do Avante-MG, pré-candidato à Presidência da República, foi o único a concordar em falar abertamente sobre um outro lado do orçamento secreto: a cobrança por essas emendas. “A pessoa te pressiona. ‘Por que o deputado e tal indicou 100 milhões de reais aqui para a cidade, para a região, e você indicou só 15 milhões de reais?’ Esse relato é diário nos estados”, comentou. O deputado diz só ter feito uma indicação de emenda de relator, no valor de 1,5 milhão de reais, em 2021, para a cidade onde nasceu, Ituiutaba, no Triângulo Mineiro. Segundo ele, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, garantiu as verbas. “É tudo que eu tive nos três anos de mandato”, relatou Janones.
Enquanto os parlamentares brigam pelos repasses, o Executivo finge que a exigência de transparência não é com ele. Bolsonaro, de olho na reeleição cada vez mais difícil, de vez em quando se gaba de estar comprando o Congresso. “O parlamentar, além das emendas impositivas, tem uma outra forma de conseguir recurso, que é a RP 9 [as emendas de relator]. (…) Parlamentar está bem atendido. Só em RP 9 os parlamentares têm quase o triplo de recursos do Ministério da Infraestrutura. Então o Parlamento está muito bem atendido conosco”, disse Bolsonaro, em entrevista à Rádio Jovem Pan, em janeiro de 2022.
Procurados pela piauí, o Planalto, a CGU e o presidente da Câmara não se manifestaram.
À boca pequena, na Câmara dos Deputados, relatos feitos sob condição de anonimato apontam que cada deputado da base do governo terá 20 milhões de reais de emendas de relator este ano. Oposicionistas alinhados a Lira ganham metade, 10 milhões de reais. Para os líderes de partido, os valores são maiores. É um dinheiro muito bem-vindo em ano eleitoral.
Mas tem um problema. O presidente da Câmara já avisou aos deputados que, até a eleição, eles só poderão empenhar metade do valor prometido. A outra metade, só depois de serem conhecidos os 513 nomes que vão ocupar cadeiras na próxima legislatura, em 2023. A estratégia de Lira, que não nasceu ontem, é fazer a partilha da segunda metade das emendas de relator apenas com quem tiver assento garantido na Câmara no ano que vem. Isso valerá tanto para aqueles que se reelegerem quanto para os que hoje não têm mandato mas venham a se eleger em outubro. Essa será a principal arma de Arthur Lira e de Rodrigo Pacheco para se manterem como presidentes da Câmara e do Senado em 2023. No enredo da política brasileira, pode apostar: vem aí a quarta temporada do orçamento secreto.