Favor: toque a tela na qual você está lendo este texto. Ou, tanto faz, leve o indicador à ponta de seu nariz. Ou perceba o contato do assento em que você talvez esteja. Ou a sola de seu calçado contra seus pés. Ou mesmo o ar passando por suas narinas… A sensação táctil resultante dessas experiências – sem graça, é verdade, depois dos primeiros anos de vida – deve-se a algo comum a todos os objetos (visíveis ou não) em nosso cotidiano: massa. Esta semana, os físicos finalmente anunciaram, depois de décadas de elucubrações, rabiscos abstratos para a maioria dos mortais e construção de aparelhos complexos e titânicos, a entidade responsável por fazer a esmagadora maioria das coisas ao nosso redor existir.
A partícula recém-descoberta – cuja função é justamente conferir a propriedade massa a suas colegas subatômicas – tem nome e sobrenome: bóson de Higgs. O primeiro termo denomina que ela tem personalidade gregária: gosta de se aglomerar com suas semelhantes – e veremos a importância disso adiante. Já ‘Higgs’ é homenagem a Peter Higgs, físico teórico britânico que, na década de 1960, lançou a hipótese sobre a existência desse corpúsculo, para tentar resolver um grande embaraço do chamado Modelo Padrão, a teoria que lida com os fenômenos relativos a cerca de uma dúzia de ‘tijolinhos’ básicos que formam os 5% de matéria ordinária do universo, que constitui de buracos negros e galáxias a seres humanos e vírus [Em tempo: desconhece-se a natureza dos 95% restantes (sim, 95%!), o que talvez seja a questão mais profunda da ciência deste século.].
O Modelo Padrão – que pode ser entendido como uma tabela que divide as partículas em famílias, segundo o que elas fazem ou formam – é um monumento à inteligência humana. Ali está a explicação para a constituição daquela tríade que aprendemos na escola: prótons, nêutrons e elétrons, para ficarmos com apenas três das centenas de partículas que se conhecem hoje. Mas havia no Modelo Padrão pelo menos um embaraço pontiagudo e afiado: aquela teoria não explicava por que certas partículas eram ‘gordinhas’ (por exemplo, top quark), outras verdadeiras ‘sílfides’ (neutrinos) e algumas nem mesmo tinham massa (fótons, partículas de luz). Ou seja, não explicava de onde vinha a tal propriedade massa. Se os físicos sabiam os valores para essa grandeza, foi porque, por meio de experiências, capturavam e ‘pesavam’ essas entidades liliputianas.
Mas como o bóson de Higgs faz surgir a massa em outras partículas? A melhor analogia que este signatário conhece sobre o tema foi idealizada pelo físico David Miller, do University College, em Londres: imagine uma convenção de devotados membros de um partido político. Eles estão distribuídos quase uniformemente num grande salão. De repente, o grande líder trabalhista adentra o recinto. Em torno dele, quase que imediatamente, juntam-se vários partidários. E, à medida que o político famoso se desloca pelo ambiente, ele vai ‘arrastando’ consigo aquele amontoado de admiradores. Pois bem, o líder é a partícula que acabou de adentrar o chamado campo de Higgs (no caso, membros do partido). Esse acúmulo de bósons é o que dá a massa a uma partícula.
Imagine agora que, entrou no salão, um líder sobre o qual recaem acusações sérias de corrupção e que o levaram a cair em desgraça perante a opinião pública. Os partidários nem mesmo olharão para ele. Bem, nesse caso, o líder poderia ser um fóton, partícula que, por não aglutinar bósons de Higgs ao seu redor, não adquire massa.
Nota-se que o papel do bóson de Higgs é para lá de importante – afinal, ele faz a grande maioria das coisas existirem para nós. Essa função fez com que um grupo de físicos passassem a chamá-lo ‘partícula de Deus’ – por sinal, epíteto para lá de infeliz, que dá a falsa ideia de que a ciência está fornecendo argumentos que corroboram a religião.
Sejamos pragmáticos: um bóson de Higgs serve para quê?
Na prática, nada, além do fato de gerar massa e de ter acrescentado um pingo no cabedal de conhecimento dos humanos sobre a natureza.
Mas, então, por que gastar bilhões e bilhões de dólares para detectar algo que não serve para nada e nem mesmo se vê? Resposta: sim, sua vida não mudará um milímetro por causa do Higgs. Mas mudará – e já mudou muito – por causa do que foi feito para descobrir o Higgs e outras partículas. Vejamos por quê. Em grandes experimentos científicos (principalmente, os de física), o foco deve ser (também) outro: tecnologia – ou seja, riqueza e bem-estar. Explicando. O CERN, laboratório europeu onde está aquele acelerador gigante, o LHC, em que partículas batem de frente para gerar outros fragmentos de matéria (entre eles, o Higgs) – talvez seja a máquina mais complexa construída pela humanidade. E para fazê-la foi preciso desenvolver conhecimento – principalmente, em engenharia – que acaba em nossos carros, geladeiras, aparelhos de ar-condicionado, computadores, edifícios, aviões, celulares… Diz-se que o desdobramento mais importante de se ter ido à Lua foi o aprimoramento do transistor. Impossível relatar o que esse diminuto componente eletrônico já fez pela humanidade.
E, claro, no caso do LHC, o desenvolvimento da www, cujo objetivo inicial era melhorar a comunicação entre os físicos do CERN – você consegue imaginar o mundo sem as páginas da internet?
E se o Higgs não fosse detectado? Ironicamente, parte significativa dos físicos torcia por isso. Seria mais ou menos como querer ver o circo queimar. Assim, a física tomaria uma chacoalhada das grandes (o que é bom, de tempos em tempos), obrigando seus praticantes teóricos a voltar às folhas de papel em branco para imaginar outro mecanismo (entenda-se, partícula misteriosa) e seus experimentais passariam a bolar novos modos de capturar a nova entidade. Seria uma injeção de ânimo comparada a trocar o mesmo reme-reme do chá da sessão da tarde pelo ecstasy das baladas noturnas.
Mas… o fato é que o Higgs apareceu – e a probabilidade de não ser ele é desprezível, coisa de uma chance em milhões. E, aí, o que resta fazer, depois que se capturou o ‘Último dos Moicanos’? A física no LHC é bem, bem mais do que a partícula de Deus – apesar de ela ter sido ‘a’ garota-propaganda do CERN desde o início. Lá, outros experimentos continuarão buscando respostas para questões até mais importantes que o Higgs. Para ficar em apenas duas: i) será que existem dimensões extras, para além do comprimento, altura e largura nas quais vivemos?; ii) por que a natureza privilegiou a matéria em detrimento da antimatéria na formação do universo, há cerca de 14 bilhões de anos? (reformulando: por que não nos defrontamos com antiuniversos, antigaláxias, antiplanetas, antipessoas, antipulgas, antibananas etc.?)
Questões profundas, sem dúvida.
Para finalizar, Higgs ganhará o Nobel? Bem, não se sabe. Mas esse britânico – que chorou, no CERN, no anúncio da existência de sua criação mental – tem um requisito que, muitas vezes, diz-se fundamental para o consagrado prêmio: idade avançada (83).
Portanto, se for para ser, que seja rápido. Ele merece.
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