De vários modos, por diversos canais, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, mandou uma mensagem clara ao governo brasileiro, às vésperas da reunião de cúpula convidada por ele para enfrentar o aquecimento global: o Brasil já mostrou ser capaz de reduzir o desmatamento com recursos próprios, perdeu credibilidade, e está fadada ao fracasso a estratégia de cobrar doações de países ricos como pré-condição para reduzir o ritmo do desmatamento ilegal. O aviso não foi levado a sério pelo presidente Jair Bolsonaro nem pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, seu porta-voz oficial nesse tema. E o tema meio ambiente tornou-se o principal desafio da política externa e da relação do país com os Estados Unidos.
Salles é, hoje, o pivô de um sério desentendimento entre Biden e Bolsonaro, que, segundo os americanos, ameaça acordos de comércio e outros acertos diplomáticos comemorados até recentemente como conquistas da política externa bolsonarista. O ministro, maior defensor da ideia de que só se pode avançar na proteção à floresta com dinheiro estrangeiro, é alvo de investigação iniciada pela Polícia Federal, acusado de interferência criminosa em favor dos madeireiros ilegais. Sua manutenção no governo mostra o grau de afinidade com Bolsonaro na questão da Amazônia e desmoraliza promessas de combate ao desflorestamento.
Metas ambiciosas de redução “tangível” do desmatamento ilegal, com resultados ainda neste ano, são a única demanda explícita do governo americano em relação à participação de Bolsonaro, quinta-feira, 22, na conferência com quarenta chefes de Estado convocada como sinal de compromisso dos Estados Unidos com a agenda de meio ambiente. O encontro é visto como preparação para a COP26, conferência das Nações Unidas para o clima, em Glasgow, Escócia, que Biden quer tornar um marco de seu projeto para estar na vanguarda do combate ao aquecimento global. A teimosia de Bolsonaro ameaça gerar, como efeito colateral, uma crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos.
“O resto da relação com os Estados Unidos vai fluir através dessa nossa experiência com o Brasil nesse diálogo com meio ambiente”, resumiu o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, o veterano diplomata de carreira Todd Chapman. “Se a coisa vai bem no meio ambiente, tenho otimismo que o resto também vai fluir; se não vai bem e vamos ter seis meses de conversas difíceis até a COP 26, a coisa vai ser difícil.”
Chapman falava numa conferência virtual com dirigentes de empresas como Google, o grupo Stefanini e a GP Investimentos, líderes de organizações da sociedade civil e personalidades como o ex-ministro Sergio Moro.
A “coisa” que deve ficar difícil são os temas da agenda bilateral, desde o apoio americano à entrada do Brasil na OCDE – organização regida por normas consensualmente aprovadas no mercado, que daria um sinal de confiança a potenciais investidores no país – até os desdobramentos do já celebrado acordo de facilitação de comércio entre os dois países. O acordo reduz barreiras burocráticas a importação e exportação, mas ainda depende do envio de técnicos americanos ao Brasil, sem data marcada pela administração Biden. Não só com os Estados Unidos há obstáculos: a concretização do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia também está na lista dos avanços diplomáticos suspensos pelas desavenças em matéria de clima.
Chapman lembrou o manifesto de democratas do respeitado comitê de Finanças da Câmara dos Estados Unidos, no ano passado, que se opuseram a acordos comerciais com o Brasil devido à péssima reputação de Bolsonaro em Direitos Humanos e meio ambiente. A proteção aos povos indígenas está nessa lista, lembrou o embaixador. Quando foi nomeado para vir ao Brasil, a única pergunta comum a todos os senadores americanos com quem conversou foi: “o que vai fazer para combater o desmatamento na Amazônia?”, relatou o diplomata.
Na sexta, 16, em reforço ao aviso de Chapman, um grupo de quinze senadores – entre eles as estrelas da esquerda do partido democrata Bernie Sanders, presidente da poderosa comissão de Orçamento do Senado, e Elizabeth Warren -, em carta a Biden, citaram a OCDE e a cooperação militar como áreas em que a relação bilateral deverá ser paralisada, caso o Brasil não avance em seus compromissos ambientais. O aumento de taxas de desmatamento e as notícias de desmonte da fiscalização ambiental têm levado os democratas a insistir na paralisação de qualquer acordo comercial com o Brasil.
Em seu esforço de dar prioridade à retomada vigorosa da agenda de proteção ao meio ambiente, a partir da conferência desta semana, Biden deu um sinal importante para o mundo ao firmar, no fim de semana, uma surpreendente aliança nesse tema com seu maior rival, a China; mas já encontrou resistências em países como a Índia e Austrália. Os resultados da preparação para a reunião de chefes de Estado desta semana só reforçam a determinação do governo americano em recusar compromissos vagos e de baixa credibilidade de um país com tamanha visibilidade internacional quanto o Brasil.
“Não é um problema de comunicação; é de resultados”, disse Chapman logo ao abrir sua conversa com empresários e personalidades da sociedade civil, rejeitando o argumento de Salles, que atribui as acusações ao Brasil à falta de conhecimento dos avanços ambientais no país. “O grande problema é que (vocês, no Brasil) já controlaram (o desmatamento) uma vez; provaram ao mundo que podem fazer isso; falta desejo, implementação, recursos, mas o Brasil sabe fazer”, insistiu o embaixador. “Isso está atraindo muita atenção e é essencial.”
Após o crescimento recorde do desmatamento em 2004, um plano lançado no governo Lula conseguiu derrubar a taxa anual de desmatamento em 83% até 2012. A partir daí a degradação da mata passou por um período de altos e baixos e elevou-se em ritmo recorde na gestão de Bolsonaro.
Os assessores de Biden têm reafirmado, nos últimos meses, que a política para a Amazônia é decidida pelo Brasil e buscam evitar confronto público, capaz de abrir espaço a discursos contra uma pretensa interferência de Washington em assuntos nacionais. Diplomata experiente, Chapman reuniu um grupo diplomático multinacional, com embaixadores da União Europeia, do Reino Unido e dos países financiadores do Fundo Amazônia, Noruega e Alemanha, para acompanhá-lo nos encontros com o governo brasileiro. O tom firme, mas moderado, do embaixador chegou a preocupar organizações não governamentais e empresariais, que promoveram uma série de manifestações públicas por temor de um acordo sem compromissos claros, a ser usado como peça de propaganda por Bolsonaro.
Nos dias seguintes ao alerta de Chapman, os emissários do governo americano abrandaram o tom e, em conversas informais, passaram a classificar as conversas com o governo brasileiro com adjetivos como “amistosas”, “bem-intencionadas” e “produtivas”. A mudança coincide com a entrada nas discussões do recém-nomeado ministro de Relações Exteriores, Carlos França, que, com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, passou a pressionar Salles para que amenizasse seu discurso condicionando qualquer ação mais ambiciosa na proteção das florestas ao recebimento de recursos financeiros de países ricos.
Até então comandando praticamente sozinho as negociações com os americanos, Salles havia até estabelecido o valor de 1 bilhão de dólares como a fatia a receber neste ano pelo Brasil, do pacote de ajuda prometido por Biden aos países dispostos a adotar medidas de proteção ambiental. Na quinta-feira, 8, em reunião no gabinete do ministro de Relações Exteriores, França e Tereza Cristina insistiram com Salles sobre a necessidade de mudar o discurso e fazer gestos de conciliação a Biden, na manifestação de Bolsonaro durante a conferência convocada pelos Estados Unidos. Após alguma resistência, segundo uma testemunha do encontro, Salles concordou em amenizar o tom das manifestações do governo e explicitar a promessa de acabar com o desmatamento ilegal até 2030.
Na segunda-feira seguinte, o trio reuniu-se com Bolsonaro no Palácio do Planalto para definir a carta que o presidente enviaria dois dias depois a Biden com as expectativas brasileiras para a conferência do dia 22. Estavam acompanhados também pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno – este último um dos maiores defensores da ocupação da Amazônia e das terras indígenas com empreendimentos econômicos. Embora presida o Conselho Nacional da Amazônia e esteja encarregado de formular o plano oficial para a região, o vice-presidente Hamilton Mourão não participou do encontro.
Apesar de isolado no Palácio do Planalto por desentendimentos com Bolsonaro e com dificuldades para obter no Ministério do Meio Ambiente resposta a suas demandas por informações, Mourão divulgou, em março, a revisão de seu plano para proteção da Amazônia, que, supostamente, guiará as ações do governo para a região nos próximos anos. O plano, considerado vago e contraditório, foi severamente criticado por organizações não governamentais como o Observatório do Clima, que veem nele uma “militarização” da política ambiental, com o esvaziamento de órgãos como o Ibama e o ICMBio. Pela primeira vez, o plano apresentou uma meta do governo Bolsonaro para redução de desmatamento – mas o plano prevê um nível de desmatamento 16% superior ao registrado em 2018, oficializando, na prática, um aumento na derrubada ilegal de florestas neste governo.
O histórico de Salles na administração de programas financiados por governos estrangeiros para o meio ambiente alimenta as resistências de Biden às demandas do governo brasileiro. No começo de 2019, com base na redução de emissões de carbono alcançadas no governo Dilma Rousseff, o Brasil recebeu pouco menos de 97 milhões de dólares do Fundo Verde para o Clima, iniciativa global criada em 2010 para financiar esforços pela redução do desmatamento. Dois anos depois, o ministério não começou ainda a usar esses recursos, segundo comprovou a Agência Rubrica, especializada em contas públicas.
O Fundo Amazônia, criado pela Noruega e Alemanha para apoiar iniciativas ambientais pelo mundo, chegou a doar 3,4 bilhões de reais ao Brasil entre sua criação, em 2008, até 2018, e teve suas ações paralisadas com a decisão de Salles de mudar unilateralmente o conselho encarregado de fiscalizar a aplicação do fundo. Os atrasos na execução dos programas ambientais contradizem a explicação de Salles para sua famosa proposta, feita em uma reunião ministerial com Bolsonaro,em abril do ano passado, para “passar a boiada” na regulamentação ambiental, aproveitando que as atenções da população estariam voltadas à pandemia do coronavírus. O ministro justificou-se argumentando que falava apenas da desburocratização das regras no setor.
Enquanto isso, segundo a associação de funcionários do Ibama, medidas impostas por Salles, como a exigência de confirmação superior para multas lavradas pelos fiscais, a troca de profissionais experientes por oficais da PM e a criação de “conselhos de conciliação” entre infratores e a fiscalização reduziram a menos da metade as multas ambientais na Amazônia no ano passado, para pouco mais de 1,3 bilhão de reais; e praticamente paralisaram sua cobrança.
Bolsonaro, como Salles, acredita ser possível ter bom desempenho nas reuniões sobre clima e meio ambiente programadas para este ano, aproveitando resultados alcançados em governos anteriores, que levam o Brasil a ser responsável por apenas 3% das emissões globais de gases causadores do efeito estufa. Pensa enfrentar com propaganda e reivindicações de mais recursos fatos como o aumento recorde de desmatamento registrado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais nos dois primeiros anos do governo e em março deste ano. Deveria prestar mais atenção aos sinais que recebe de Washington.