O ano de 2022 é chave para a ciência brasileira, e as eleições de outubro serão cruciais para definir os rumos desse combalido setor da vida nacional. Diante do contexto de permanente crise orçamentária e política, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) lançou em junho o documento A importância da ciência como política de Estado para o desenvolvimento do Brasil. Nele, elencamos aos candidatos, principalmente aos que se apresentarão à corrida presidencial, uma lista de prioridades para a evolução da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Fazem parte desse rol, notadamente, a correção das políticas de financiamento para CT&I, bem como ações primordiais nas áreas de educação e de desenvolvimento econômico e social sustentável. Temas como esses estão nos centros dos debates da reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), grande parceira da Academia Brasileira de Ciências. O evento acontece esta semana em Brasília.
Este ano também pode ser considerado um marco importante para a temática da sustentabilidade: 2022 é praticamente o meio do caminho entre 2015 e 2030, a década e meia que as Nações Unidas se deram como prazo para cumprir os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Estes se desdobram em 169 metas em áreas tão diversas quanto complementares: a erradicação da fome, a proteção da diversidade genética da fauna e da flora mundiais, a correção de distorções nos mercados agrícolas, educação de qualidade, saúde e bem-estar, redução das desigualdades, igualdade de gênero, entre outros. Como explicitamos no documento aos presidenciáveis, a Academia Brasileira de Ciências considera os ODS como uma aperfeiçoada e atualizada “Declaração dos Direitos do Homem”, porque propõem uma integração entre as pessoas, o planeta e a prosperidade – uma visão de sociedade do futuro, da qual o Brasil vem participando ativamente, desde os primórdios da questão ambiental.
Fomos, de fato, uma nação protagonista das negociações que levaram ao entendimento de que meio ambiente e desenvolvimento são indissociáveis. Tivemos papel de destaque na Conferência de Estocolmo, em 1972, na qual se delineou pela primeira vez o conceito de ecodesenvolvimento – ideia que deu origem à noção central de desenvolvimento sustentável, popularizada vinte anos mais tarde, na Eco-92, no Rio de Janeiro. Desde então, a ciência brasileira tem contribuído para o papel de liderança mundial do Brasil em temas como a diversificação da agropecuária e a bioeconomia baseada na diversidade.
No entanto, décadas de construção sólida de conhecimento e de iniciativas concretas pró-ambientais têm sido rapidamente desmontadas. Nos últimos anos, observamos retrocessos alarmantes, com o avanço do desmatamento e do garimpo ilegal na região amazônica e o aumento na vulnerabilidade dos povos originários, quilombolas e ribeirinhos. Involuções que não apenas afetam negativamente nossa imagem junto ao resto do mundo, provocando repercussões econômicas de curto e longo prazo, como prejudicam diretamente as metas acordadas no âmbito da Agenda 2030.
Para que o Brasil possa recuperar seu protagonismo global na implementação dos ODS, é necessário estabelecer um fluxo contínuo de financiamento para permitir a execução de projetos de pesquisa capazes de gerar resultados e soluções inovadoras na conservação dos biomas nacionais, na segurança alimentar e na redução da pobreza.
E isso só será possível mediante uma política de Estado que garanta um orçamento para a CT&I digno deste nome. Dados da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) mostram que o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) vinha caindo desde 2016 – mas diminuiu ainda mais nos últimos três anos. Passou da ordem de 9 bilhões de reais em 2018 para menos de 3 bilhões de reais em 2021. Nós, enquanto representantes e defensores da ciência, não podemos aceitar essa situação.
Além de reduzido, o orçamento é constantemente exposto a contingenciamentos. Conforme revela estudo de Fernanda de Negri e Priscila Koeller, do Ipea, realizado em agosto de 2019, o MCTI tem executado, nos últimos vinte anos, uma média de cerca de 60% do orçamento previsto em lei. As pesquisadoras ressaltam que o baixo nível de gasto liquidado é devido a contingenciamentos, e não à capacidade do órgão de executar seu orçamento.
Uma das consequências mais nefastas dessa não execução é o desvirtuamento do papel do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Criado no final da década de 1960 e reestruturado durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o FNDCT deveria ser destinado ao que costumo chamar de “extra”: os programas e projetos prioritários definidos no Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Um complemento, portanto, ao orçamento oficial do setor. Mas na prática é o FNDCT que sustenta CT&I no Brasil, sendo sua principal fonte de recursos.
O Fundo vive, no entanto, sob ataque permanente, apesar de, desde o ano passado, existir uma lei proibindo seu contingenciamento. A lei complementar 177/2021 determina que não podem ser objeto de limitação “despesas relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico custeadas por fundo criado para tal finalidade”. Ao arrepio do texto legal, em junho, o governo anunciou o bloqueio de 2,5 bilhões de reais do Fundo até o final de 2022. O valor representa 55% do total de recursos.
Deputados e senadores quase permitiram que se institucionalizasse a violação à lei que eles próprios haviam votado meses antes. A Comissão Mista de Orçamento chegou a aprovar, no início de julho, um projeto que permitiria o bloqueio de recursos do FNDCT. Por uma apertadíssima margem de apenas dez votos, no entanto, o plenário do Congresso Nacional conseguiu, dias atrás, derrubar o texto. Foi por pouco.
Enquanto estivermos assim tão à mercê de quem segura a caneta, não haverá desenvolvimento social, econômico e sustentável do país. Por isso insistimos tanto, desde o título do relatório que endereçamos aos candidatos à Presidência da República, na necessidade de uma verdadeira política de Estado para CT&I. Na base desse projeto de nação, devem estar não somente fontes estáveis e invioláveis de financiamento, mas principalmente o foco em educação. Há anos, a ABC vem alertando que o Brasil precisa de uma “revolução na educação”. Na temática educacional, as propostas da Academia encontram novamente os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Garantir o acesso à educação inclusiva e de qualidade é o quarto ODS, que se desdobra em dez metas – entre elas, assegurar que todas as crianças possam ter um desenvolvimento de qualidade, desde a primeira infância.
Os países desenvolvidos investiram em toda a cadeia do conhecimento, que se inicia na educação básica, para chegar à inovação. As nações que deram um salto qualitativo nas últimas décadas, como a China, prosperaram a partir de um projeto de Estado que levou a sério o aperfeiçoamento das escolas, desde os primeiros anos de vida. Enquanto aqui no Brasil ainda brigamos para pagar salário digno aos professores dos ensinos fundamental e médio, na Coreia do Sul, a profissão de educador é uma das mais concorridas e prestigiadas. Lá, como em tantos outros países, reconheceu-se que a educação está na base de tudo.
A ciência brasileira é, sim, extremamente carente de recursos. Mas é carente, sobretudo, de constância e de continuidade, que só serão conquistadas quando uma política de Estado, nos moldes do que a ABC propõe em seu documento, for de fato pensada para o setor. Um plano cujo horizonte de aplicação não seja de apenas quatro anos, mas de longo prazo. Um projeto de nação soberana, verdadeiramente independente a partir da educação e da ciência.