João Doria Junior não se atrasa. Num terno azul-marinho combinando com a gravata da mesma cor, em tom mais claro, faltavam dois minutos para as nove da manhã quando ele atravessou o tapete vermelho e o mar de homens brancos de meia-idade na porta da Assembleia Legislativa de São Paulo, a Alesp. O sorriso, alvo como o vestido de sua mulher, Bia, reluzia no contraste com seu bronzeado. Pelos tapas efusivos que levou nas costas, o novo governador de São Paulo não enfrentaria muitos problemas se a atual legislatura da Casa se estendesse pelos próximos quatro anos – como, de resto, seus antecessores tucanos não enfrentaram. Mas a paz pode expirar em 15 de março, quando assumem os novos deputados estaduais: o PSDB, partido de Doria, não terá mais a maior bancada. Das antigas 22 cadeiras conquistadas há quatro anos, o partido só conseguiu preencher oito. Novo versus velho foi na campanha e continua sendo no governo a dualidade marcante do discurso de Doria.
Às 9h04, o Hino Nacional foi executado pela banda da Polícia Militar. O novo governador e seu vice, Rodrigo Garcia, do DEM, fizeram suas promessas de “cumprir e fazer cumprir a Constituição Federal e a de São Paulo e observar as leis”. À mesa, quem comandava a cerimônia era Cauê Macris, presidente da Assembleia e filho de Vanderlei Macris, tucano que já ocupou a mesma cadeira presidencial e hoje é deputado federal. Cauê tem 35 anos, representa os cabeças-pretas do PSDB – assim como o (calvo) atual prefeito de São Paulo, Bruno Covas, ex-vice de Doria e neto de Mário Covas. A nova geração das mesmas famílias de tucanos alardeia ser mais ousada, mais moderna do que os fundadores do partido. Toda solenidade foi pontuada pelo esforço de marcar a comparação entre o novo e o velho tucanato, do passado e do presente da política.
Cauê Macris convidou o decano Salim Curiati, do PP, para ler o termo de posse de Doria. Curiati tem 90 anos e se despede da vida pública, encerrando seu décimo mandato. Ele foi prefeito biônico de São Paulo, nomeado pelo então governador Paulo Maluf, a quem tentou, sem sucesso, visitar na cadeia, em São Paulo. Na porta da Polícia Federal, disse, para surpresa de ninguém, ter saudade da ditadura militar, época “em que havia mais respeito”. Doria, que em seguida enfatizaria a palavra “golpe” para falar do exílio de seu pai na ditadura, permaneceu sorridente. Quando assumiu o púlpito, falou da honra de ser empossado por Curiati e convocou o público a aplaudi-lo novamente.
O novo governador de São Paulo é da mesma legenda que comanda o estado há 24 anos – Márcio França, governador até esta manhã, é do PSB, mas era vice de Geraldo Alckmin, padrinho político de Doria. Na véspera da posse, nos corredores do Palácio dos Bandeirantes, enquanto preparavam o cenário para a segunda parte da cerimônia, funcionárias papeavam num canto do salão principal. Ao discutir sua permanência ou não no emprego na nova gestão, uma delas falou: “Pelo menos é o mesmo partido, né?” “Não é, não”, a outra respondeu. Desde a campanha e, com veemência nos discursos de hoje, Doria escolheu um tom de oposição a seu padrinho, Alckmin. Em parte, para vender a ideia de outsider da política. Mas, principalmente, para demarcar sua almejada liderança na legenda e sua ascensão política.
“São Paulo precisa resgatar sua paixão por fazer bem-feito. Precisa pensar grande. Chega de pensar pequeno!”, Doria declarou na Alesp. Ele disse que seu governo inaugura uma “nova era” e que, “agora o Palácio dos Bandeirantes será o palácio do trabalho”. Na segunda cerimônia, no local de onde governará São Paulo e onde optou por não residir, Doria deu posse a seu secretariado, povoado de nove ex-membros do governo de Michel Temer (aparentemente, a bronca do ex-presidente youtuber, que pediu para Doria “desacelerar” e reconhecer o vínculo entre eles, teve efeito). A ausência mais sentida foi a de Gilberto Kassab, nomeado secretário da Casa Civil e enrolado na Lava Jato. No discurso, Doria seguiu com as críticas a Alckmin: “Vamos aposentar a velha política. Sem cabides de empregos, sem troca de favores, sem romarias por cafezinhos. Não quero acusar ninguém, mas vai mudar.” Doria falou que é preciso coragem para reestruturar e modernizar o PSDB e chamou para si essa tarefa. “Transformar não quer dizer desrespeitar o passado de homens como André Franco Montoro, Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Geraldo Alckmin.” Foi a única menção nominal a Alckmin. Assim, no fim da lista de tucanos históricos. E no passado. Mas teve troco. Nem Alckmin, nem FHC, nem Serra, citados por Doria, compareceram à posse do novo governador. Tampouco seu sucessor na prefeitura, Covas, deu as caras.
A menção subliminar e mais forte ao ex-governador ficou numa frase ainda na Assembleia Legislativa. Doria disse que vai impor um forte ritmo de desestatização no estado. “Sem medo de cara feia ou de bandeira vermelha”, acrescentou. Então, numa pancada dupla em petistas e em Alckmin, concluiu: “Não tenho medo nem de quem está na cadeia. Porque, a partir de agora, São Paulo vai mudar, São Paulo tem comando. E o comando é do governador eleito do estado de São Paulo.” Ao longo de seu governo e da campanha eleitoral, Alckmin foi acusado de ceder à pressão de organizações criminosas, dirigidas de dentro das prisões paulistas.
Em suas falas, Doria não mencionou nominalmente nem sequer uma cidade além da capital. “Região metropolitana, litoral e interior” foi o máximo de especificidade a que chegou o novo governador – em mais um contraponto com Alckmin, cujas referências a cidadezinhas minúsculas eram algo entre o irritante e o caricato. Apesar disso, Doria, notório centralizador, prometeu ser municipalista. Mas seu discurso não era para o estado de São Paulo. Doria não se preocupou em dissertar sobre a indústria ou o agronegócio tipicamente paulistas, sobre as potencialidades e os déficits do estado. Em vez disso, escolheu falar, repetidamente, do Brasil, para “os brasileiros de São Paulo”.
Esteve aí, também, o distanciamento de Alckmin, que se afundou num quarto lugar na campanha presidencial, acumulando dois marcos pouco elogiosos: o de encabeçar a pior derrota do PSDB numa eleição presidencial e o de, na corrida de 2006, quando enfrentou o petista Luiz Inácio Lula da Silva, ter sido o único candidato a presidente a ter menos votos no segundo turno do que teve no primeiro. Para se distanciar do mico alckmista, Doria foi, aos poucos, se desligando do padrinho que assegurou que o empresário fosse eleito prefeito em 2016. A separação virou divórcio quando Alckmin notou uma movimentação nos bastidores para que Doria fosse o escolhido pelo PSDB para disputar a Presidência da República. Confirmado candidato, Alckmin não participou da campanha do ex-afilhado na disputa pelo governo de São Paulo. E, numa reunião do partido, chamou Doria de traidor.
A crise tucana não pode ser debitada somente na conta de Alckmin. Aécio Neves, ex-presidente da legenda, deu sua contribuição nos áudios com o empresário-delator Joesley Batista e a frase “Tem que ser um que a gente mata antes de fazer delação.” Sem rumo nem liderança, os tucanos racharam. Muitos foram parar no quintal de Jair Bolsonaro e, como Doria, abraçaram sua retórica antilulista, antipetista e antiesquerdista. A posse do novo governador de São Paulo seguiu essa marca. Ele declarou apoio ao governo Bolsonaro e pediu que “as pessoas de bem” torçam pelo país. Marqueteiro de profissão, Doria falou de Brasil e brasileiros, de pátria, de Deus. Ao som da música-tema de Ayrton Senna e aos gritos de “Acelera, São Paulo”, Doria lançou-se, no dia 1º de janeiro de 2019, à corrida presidencial. E voou a Brasília, para a posse de quem pretende suceder.