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    Ilustração de Paula Cardoso

questões religiosas

Sem fiéis, sem dízimo, sem palanque

Epidemia esvazia templos, e igrejas neopentecostais não conseguem pagar horários alugados em emissoras de TV

Gilberto Nascimento | 29 abr 2020_10h26
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O pregador evangélico Valdemiro Santiago é conhecido entre os fiéis  como um dos “reis do milagre” – daqueles que prometem curar doentes de Aids e fazer paralíticos andarem. Reverenciado pelos fiéis que desejam tocá-lo nos cultos, ficou famoso por chorar em meio a pregações e pedidos de ofertas. Ao inaugurar um templo em Guarulhos, na Grande São Paulo, no dia 1º janeiro de 2012, seus milhares de seguidores pararam a Rodovia Presidente Dutra por seis horas, complicando a volta para casa do feriado e o acesso ao Aeroporto de Cumbica. À época, os jornais calcularam em 450 mil pessoas o público do evento.

O apóstolo Valdemiro, como costuma ser chamado, é um ex-trabalhador da roça e ex-pedreiro nascido em Palma – cidade da Zona da Mata mineira, a 360 km de Belo Horizonte. Perdeu a mãe aos 12 anos e passou a viver com um de seus doze irmãos em Juiz de Fora (MG). Dormiu na rua e envolveu-se com drogas. Um pastor o levou à Igreja Universal do Reino de Deus, aos 16 anos. Virou obreiro, depois pastor e bispo da igreja de Edir Macedo. Tornou-se um dos religiosos mais populares da Universal – um dos campeões de público e de arrecadação de ofertas nos cultos.   

Em 1998, Valdemiro rompeu com Macedo e fundou sua própria igreja, a Mundial do Poder de Deus. Com o inseparável chapelão de vaqueiro, voz rouca, o hábito de contar histórias com o seu linguajar simples e sotaque caipira, passou a atrair multidões. E incomodou concorrentes. Tirou fiéis da Universal. Sua igreja reúne 315 mil fiéis, segundo o último Censo. Com o sucesso, adquiriu avião, fazendas e imóveis luxuosos – tudo pertencente à igreja, diz. Vive em uma mansão no condomínio Alphaville, no município de Santana do Parnaíba, na Grande São Paulo. Valdemiro chegou a ter 1 600 horas mensais de programas religiosos na tevê aberta. Ocupava praticamente toda a grade do Canal 21, as madrugadas da TV Bandeirantes e horários adquiridos na CNT e Rede TV.  Devido a atrasos e falta de pagamento, acabou perdendo os seus principais espaços na tevê para a Universal de Edir Macedo.

Aos 57 anos, Valdomiro enfrenta agora um novo desafio: em meio à pandemia do novo coronavírus, não consegue pagar o aluguel de 22 horas diárias da programação da TV Ideal (ex-MTV). O negócio foi selado em 2014, por R$ 8 milhões mensais. “É muita luta para permanecer no ar, muita luta mesmo. Está muito difícil”, admitiu Valdemiro, em um vídeo nas redes sociais. A TV Ideal é uma emissora aberta em UHF no Canal 32, e no digital, Canal 31. Um de seus sócios, o empresário Paulo Garcia, dono da Kalunga, confirmou que o pagamento não vem sendo feito, mas não revelou quantas parcelas estariam atrasadas. Sobre o valor do contrato, evitou comentários, alegando cláusula de confidencialidade.

Com as medidas de isolamento social por causa da pandemia e a proibição ou redução dos cultos, todas as igrejas evangélicas tiveram queda acentuada no recolhimento de dízimos e ofertas. Não foi à toa que bispos e pastores evangélicos – principalmente das igrejas neopentecostais (surgidas no Brasil no final da década de 1970, na chamada “terceira onda” do pentecostalismo) – passaram a atacar duramente as propostas de confinamento e um eventual fechamento dos templos. Não pouparam críticas a autoridades e políticos defensores dessas medidas, entre eles os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio, Wilson Witzel (PSC), o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, e o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT). O líder da Igreja Universal, Edir Macedo, minimizou os efeitos da pandemia e disse que a Covid-19 era “uma tática de Satanás” para induzir o povo ao pânico.

Várias igrejas neopentecostais pediram aos fiéis, na tevê e nas redes sociais, para fazerem as contribuições pela internet. Mas os valores arrecadados dessa forma nem de longe se aproximam das polpudas cifras amealhadas em dias normais. Bispos e pastores se frustraram com os resultados alcançados. Grande parte dos seguidores é de origem humilde, com pouca escolaridade, e não tem o preparo nem o hábito de utilizar computadores, aparelhos celulares ou aplicativos que facilitariam as doações. Muitos sequer têm conta em banco. Religiosos como o missionário R.R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, sugeriram aos fiéis que pedissem aos filhos, familiares e conhecidos que os ajudassem a fazer a doação online e “emprestassem” contas, quando necessário, para as transferências bancárias.

Soares também sente os efeitos da ausência dos fiéis em seus templos e já havia dito para os seguidores não temerem a doença. Num culto, afirmou que a Covid-19 “é a coroa do diabo”, mas “nós temos a coroa de Jesus sobre nós”. No final de março, o missionário iniciou um processo de cortes em sua emissora, a RIT (Rede Internacional de Televisão). Foram demitidos oitenta profissionais, entre editores, repórteres, produtores e cinegrafistas, em São Paulo, Ribeirão Preto (SP), Porto Alegre (RS) e Londrina (PR). Os cortes, segundo os demitidos, atingiram também a Fundação Internacional de Televisão – mantenedora da RIT – e as empresas Nossa Rádio e Graça Music. A Rede Gospel, emissora aberta em UHF e disponível em operadoras de tevê a cabo, demitiu quinze funcionários no início de abril. A rede é mantida pela Igreja Renascer em Cristo, liderada pelo casal de bispos Estevam e Sonia Hernandes, preso nos Estados Unidos em 2007, ao entrar naquele país com US$ 56 mil não declarados.

Até mesmo a rica e poderosa Universal do Reino de Deus é afetada pela diminuição de fiéis em seus templos. A TV Record, ligada à igreja, entrou com pedido de moratória na 1ª Vara do Trabalho da Capital de São Paulo pedindo a suspensão do pagamento de dívidas trabalhistas por noventa dias, alegando queda em sua receita. Por meio de advogados, anunciou que perdeu anunciantes e teve contratos de publicidade suspensos. A assessoria de comunicação da emissora confirmou a informação, mas minimizou o fato: disse que o pedido segue “um decreto vigente” dirigido “a qualquer empresa”, sem ônus e multas. 

Se as torneiras da Universal se fecharem, com a escassez dos dízimos e ofertas, inevitavelmente a Record será abalada. Do total de R$ 1,8 bilhão de faturamento da emissora em 2017, 30% vinham de recursos da igreja, injetados via compra de horários nas madrugadas para a exibição de programas religiosos. No ano anterior, a Universal pagou R$ 575 milhões para ocupar o horário noturno da Record e, em 2015, R$ 535 milhões. A emissora não detalha os termos de seu contrato com a igreja, também justificando que há cláusula de confidencialidade.

A igreja de Edir Macedo já havia reduzido os seus investimentos em tevê em ao menos R$ 120 milhões nos últimos dois anos, devido à crise econômica. Até 2018, destinava R$ 800 milhões anuais para custear seus programas religiosos. Cerca de R$ 500 milhões iam para a Record, e o restante era dividido entre a Bandeirantes, o Canal 21 (também do grupo Band), Rede TV, CNT e TV Gazeta de São Paulo. Apenas com o Canal 21, a igreja gastava cerca de R$ 10 milhões mensais. O contrato foi firmado em 2013, quando Macedo apresentou uma proposta irrecusável à Band para tirar do ar o ex-aliado e agora incômodo adversário Valdemiro Santiago, da Mundial. A derrocada de Valdemiro teve início justamente quando Edir Macedo partiu para o ataque contra ele. Em 2012, a TV Record exibiu reportagens denunciando o ex-aliado por suposto enriquecimento ilícito e desvio de dinheiro de fiéis de sua igreja para comprar fazendas no valor de R$ 50 milhões e mais de 1 500 cabeças de gado no Mato Grosso, além de mansão e apartamentos de luxo. Em 2017, ainda em seu inferno astral, Valdemiro foi atingido por uma facada no pescoço, durante um culto, na sede de sua igreja no Brás (região central de São Paulo).

Para o ex-pastor da Universal Ronaldo Didini – ex-assessor de Valdemiro na elaboração de contratos com empresas de comunicação – a Mundial do Poder de Deus é um dos grupos religiosos mais fragilizados hoje. “Se antes da pandemia do coronavírus já havia enormes dificuldades para honrar contratos e compromissos, tudo leva a crer que a situação da igreja se tornará mais difícil ainda nestes tempos de isolamento social”, prevê. Para Didini – hoje dono de empresa de consultoria em comunicação e tecnologia e um pastor “sem fronteiras” (não vinculado a uma denominação específica) – a Mundial enfrenta dificuldades por não contar com uma estrutura administrativa e financeira sólida. “Ela tem o nome de igreja, mas é apenas um movimento de fé. Não basta ser dotada de personalidade jurídica e ter um CNPJ. Uma Igreja precisa ser uma entidade religiosa organizada e estabelecida como uma instituição, indo além de um credo definido”, aponta. A Mundial, procurada, não se manifestou. Um funcionário disse não haver equipe de comunicação em serviço durante a pandemia para responder.                 

Para os evangélicos, nada substitui o momento único e estritamente pessoal nos templos em que o fiel se levanta e voluntariamente dá a sua contribuição. A queda nas receitas terá reflexos também na abertura de novos templos, na manutenção dos pastores e de suas famílias, nos salários de funcionários, na formação de novos religiosos e em obras sociais, observa o pastor Didini. Os templos não foram fechados. Segundo os decretos estaduais, fiéis podem entrar e orar nas igrejas. Só não são permitidos os grandes cultos, devido às aglomerações e ao risco de contágio pelo coronavírus, como recomenda a Organização Mundial da Saúde. 

No vídeo que circula em redes sociais, Valdemiro Santiago disse acatar as orientações de governadores e prefeitos, embora discorde delas radicalmente. Explicou que continua a pagar o aluguel de milhares de templos, prestações de imóveis e salários de funcionários. E disse que a pandemia não atingiu seus seguidores. “Não está atingindo o povo da igreja. Nossa luta é por causa dos decretos, por causa das determinações das autoridades. A igreja tem curado muita gente, e ela é o último refúgio do povo”, afirmou. Disse que não deixará de pregar o Evangelho “ainda que haja ameaças de algumas autoridades”.  Mesmo sem qualquer previsão sobre o fim do isolamento social, anunciou, em breve, uma megaconcentração no Brasil. “Vai ser uma reunião extraordinária. Vamos dar a volta por cima”, assegurou.

 

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