“E
u estou sem chão”, repetia Silvia Mendonça, com a voz trêmula, na escadaria do Palácio Pedro Ernesto, sede da Câmara de Vereadores do Rio, no Centro da cidade. A ativista do Movimento Negro Unificado foi amparada num abraço por uma mulher mais jovem que ela, Jamile Lopes, de 35 anos. A cena se repetiu diversas vezes ao longo da quinta-feira, 15 de março: abraços longos, doloridos, de consolo mútuo, entre as tantas mulheres que se aglomeravam no local.
O sol era impiedoso ao meio-dia, mas cada vez vinha mais gente à Cinelândia. Pessoas segurando bandeiras com um arco-íris, usando bótons de movimentos negros e camisas estampadas com nomes de movimentos sociais da periferia. Uma espécie de síntese da trajetória da homenageada: Marielle Franco, a quinta vereadora mais votada no Rio em 2016, negra, bissexual, ativista pelos direitos humanos e que passou a maior parte da vida no Complexo da Maré, na Zona Norte da cidade.
Foi executada a tiros às nove e meia da noite do dia anterior, quando saía de um encontro com feministas negras no Centro do Rio, uma cidade sob intervenção federal na segurança pública. O motorista que a conduzia também foi assassinado. Sua assessora de imprensa, também no carro, sobreviveu.
Bastava erguer os olhos à multidão para notar que o ato era liderado por mulheres. Pouco depois do meio-dia, Luciana Boiteux, professora de direito Penal e filiada ao PSOL, falava ao microfone com a voz fraca e emocionada: “Marielle Franco foi executada por sua luta, e sua morte só pode resultar em luta.” Ao lado dela, lideranças feministas do partido se revezavam no microfone.
Se as mulheres se faziam presentes na condução e coordenação do ato, em contrapartida não se via a PM no entorno da Cinelândia. Havia dois carros da guarda municipal parados a cerca de 200 metros, e só. Os gritos entoados pelos manifestantes talvez ajudassem a explicar a ausência da PM: “Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar”, bradavam.
Foi decisão do coletivo de mulheres do PSOL, junto com integrantes de grupos de feministas negras, formar um cordão de isolamento – a maioria negra – para que os corpos de Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes pudessem passar. No grito, abriram um clarão no meio da massa. “Imprensa, pra trás! Imprensa, pra trás!”
Não era tarefa fácil convencer ou obrigar fotógrafos e cinegrafistas a retrocederem. Mas elas conseguiram formar um cordão de cerca de 100 metros, da avenida Evaristo da Veiga até a porta principal da Câmara, para onde foi levado o caixão de Marielle.
Silvia Mendonça e Jamile Lopes se apressaram em reforçar o cordão. Deram os braços fortemente e cantaram com as outras uma música de Elza Soares: “Você vai se arrepender de levantar a mão para mim.” O canto seguinte emocionou a dupla e muitos outros manifestantes: “Companheira, me ajuda, eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor.” Em seguida evocaram a Polícia Militar mais uma vez. “Sem hipocrisia, a PM mata gente todo dia.”
A câmera da tevê se aproximou de Silvia Mendonça. E ela não segurou o choro. “Por que fizeram isso com uma mulher negra? A gente quer viver e quer ver os nossos filhos vivos”, disse a mulher, moradora de Caxias e que conheceu Marielle na militância pelo fim do homicídio de jovens negros pelas mãos da PM.
Às 14h30, os corpos foram recebidos aos gritos de “Marielle!” e “Anderson!”, seguidos da aclamação “Presente”. Dentro da Câmara, o silêncio do velório – para amigos e parentes, apenas – era quebrado por soluços incontidos. Debruçada sobre o caixão de Anderson Pedro Gomes, a mãe, imóvel, o observava pelo vidro. Um grupo de mulheres negras velava Marielle sem poder ver seu rosto, pois o caixão estava completamente fechado.
O deputado estadual Marcelo Freixo, amigo de Marielle há mais de quinze anos, chegou pouco antes de retirarem os ataúdes. Tinha as pálpebras inchadas e o rosto cansado. Ele pôs a mão no caixão e fechou os olhos por alguns segundos. Depois consolou a família do motorista que conduzia Marielle.
Os caixões desceram as escadarias de mármore do palácio. E mais uma vez as mulheres, muito emocionadas, reforçaram o cordão para garantir uma saída tranquila aos corpos. Sobre a ideia de formar o cordão, Jamile Lopes foi assertiva: “Quisemos guardar, nós mesmas, esse corpo negro, que é o nosso corpo.”
No fim da tarde, o sol já não ardia com a mesma força, mas deixou uma atmosfera quente e mormacenta no Centro do Rio. A multidão seguiu pela Avenida Rio Branco em direção à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj, onde haveria um protesto contra os assassinatos. Dois irmãos gêmeos seguiam a marcha. Como Marielle, eles também eram negros, moradores de favela e estudaram na PUC como bolsistas. Marielle cursou sociologia; os rapazes, cinema.
Os jovens frequentam manifestações com pautas progressistas desde 2013, e afirmam conhecer a dinâmica: “Na Cinelândia tudo começa tranquilamente. É na Alerj que a pancadaria começa”, comentou Eduardo Carvalho, um dos gêmeos, apostando em enfrentamento com a polícia.
A multidão foi aumentando aos poucos, com a chegada do fim do expediente. Mas, a despeito do temor dos irmãos gêmeos, nada da PM nos arredores da Alerj. A nova ausência de policiais intrigou quem estava ali. “Eles sabem que estão no olho do furacão. Se rolar um confronto com esses manifestantes, não ficaria nada bem para eles”, complementou Carvalho.
Quando já havia um bom número de manifestantes, um carro de som parou na frente da Assembleia. Um dos primeiros a falar foi Juliano Medeiros, presidente nacional do PSOL. “Hoje o Temer ligou para o partido dizendo que faria o que fosse necessário para ajudar. Sabe o que respondemos: tire a intervenção militar do Rio.” Marcos Carvalho, o outro gêmeo, comentou: “É vago só pedir o fim da intervenção. Isso não vai dar em nada. O movimento tem que pedir algo específico. O que causa morte são as incursões policiais nas favelas, da forma como são feitas. Tem que focar num só pedido. O fim desse tipo de incursão, entende? Um passo de cada vez.”
Depois de Medeiros, falaram Brizola Neto e outros nomes masculinos do partido. Uma manifestante protestou: “Deixa o povo preto falar!” Pouco depois, subiu Talíria Petrone, a vereadora mais votada de Niterói. “Mataram mais uma de nós, como matam todos os dias. Não é tarefa fácil assumir os espaços que ela assumia, pois eles não foram feitos para nós, negras.” Com a voz chorosa, a parlamentar do PSOL completou: “A gente nem sequer pôde ver o rosto da Mari, ficou impossível de ver.”
Apesar da fala de Petrone, a predominância masculina nos microfones só aumentava – e a irritação da multidão também. Na vez do senador petista Lindbergh Farias, ninguém pôde ouvir o que disse. Foi soterrado por uma vaia barulhenta, emendada por um coro de “fora”. “Ele acha que o povo negro esqueceu que o partido dele também colocou o exército nas favelas?”, comentou Eduardo Carvalho.
Freixo pegou o microfone pouco antes do fim do protesto, e foi sucinto: “Marielle era abusada, afrontava, e assim criou sua filha. E desse jeito conquistou tanta gente. Se esses covardes acharam que calariam a voz dela, o que fizeram foi ampliá-la.” Chico Buarque tampouco arriscou-se por muito tempo ao microfone e, compreendendo que os manifestantes não queriam saber de políticos ou famosos, lamentou a morte de Marielle e de Anderson Pedro Gomes e avisou que o ato seguiria até a Candelária.
A marcha chegou ao destino dez minutos depois. Na Candelária, mais uma vez, não havia policiais. Como foi regra ao longo do dia em que a cidade se despedia de Marielle, a Polícia Militar do Rio não se dispôs a cruzar o caminho dos manifestantes que exigiam respostas sobre quem matou a vereadora.