Pesquisadores brasileiros desenvolveram um software capaz de apontar a proporção da produção agropecuária brasileira que pode ser diretamente vinculada ao desmatamento ilegal. Após examinar centenas de milhares de propriedades rurais na Amazônia e no cerrado, o programa apontou que cerca de 20% da soja e pelo menos 17% da carne bovina produzidas nesses biomas e exportadas pelo Brasil para a União Europeia vêm muito provavelmente de terras desmatadas sem permissão, conforme mostrou estudo publicado na revista especializada Science.
Num momento em que a política ambiental brasileira vem sendo posta em xeque por importadores de nossas commodities, a ferramenta pode ajudar o governo a fiscalizar a adesão do agronegócio à legislação ambiental.
O feito foi possível graças ao uso de uma ferramenta computacional capaz de rastrear toda a cadeia produtiva da soja e do gado. Desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o software cruza dados de sistemas como o Cadastro Ambiental Rural, uma base de dados das propriedades rurais e de sua cobertura florestal, mas também mapas do desmatamento medido pelos satélites. Ele leva em conta as regras do Código Florestal, que estipula a fração de uma propriedade que não pode ser desmatada por lei. Essa fração depende do bioma em que ficam as terras. Na Amazônia, por exemplo, os produtores são obrigados a deixar pelo menos 80% da floresta em pé.
A ferramenta derruba um obstáculo que há anos servia de álibi para que os desmatadores não fossem responsabilizados por seus crimes ambientais. “Até então empresas e governo enfatizaram que não dava para dizer se o desmatamento era ilegal ou não. Demos uma solução técnica ao problema, que é um software que analisa esses dados automaticamente”, disse à piauí Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na UFMG. Rajão é o primeiro autor do artigo publicado na Science, junto com outros onze pesquisadores de Brasil, Alemanha, Suécia e Estados Unidos.
O estudo mostrou que 62% do desmatamento ilegal na Amazônia e no cerrado aconteceram em apenas 2% das propriedades analisadas – são “as maçãs podres do agronegócio brasileiro” que dão título ao artigo científico. Embora tenham investigado propriedades em escala individual, os autores não quiseram revelar detalhes sobre sua identidade. “Nosso objetivo era falar do setor”, justificou Rajão.
“Todos os parceiros comerciais do Brasil deveriam dividir a culpa por promover indiretamente o desmatamento e a emissão de gases do efeito estufa ao não impedir a importação e o consumo de produtos agrícolas contaminados pelo desmatamento, seja ele ilegal ou não”, afirmam os autores do artigo.
Os resultados chegam num momento em que o governo brasileiro vem sendo pressionado pelo mercado a adotar uma política ambiental comprometida com a conservação da floresta. Na semana passada, executivos de 38 grandes empresas nacionais e estrangeiras cobraram do vice-presidente Hamilton Mourão medidas efetivas para combater o desmatamento ilegal e alertaram que a imagem negativa do Brasil no exterior poderia trazer prejuízos para os negócios do país. Mourão é presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, incumbido das ações de combate ao desmatamento naquele bioma.
No fim de junho, gestores de fundos de investimento internacionais que movimentam cerca de 4 trilhões de dólares já haviam feito um apelo ao governo brasileiro para conter o desmatamento. A preocupação do mercado com a política ambiental brasileira foi aguçada pela divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que queria aproveitar a pandemia de Covid-19 para “passar a boiada”, ou seja, afrouxar regulações ambientais enquanto a imprensa estava de olho no novo coronavírus.
O governo reagiu com uma campanha publicitária e reuniões para tentar apaziguar representantes do mercado, mas o desmatamento segue fora de controle na Amazônia. Números do Deter, o sistema de monitoramento em tempo real do desmatamento, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostram que a derrubada em junho foi a maior para esse mês nos últimos cinco anos. O aumento acumulado desde agosto passado é de 64% em comparação com o ano anterior.
O software usado no estudo é o Dinamica Ego, uma plataforma de modelagem ambiental desenvolvida em 2007 na UFMG por Britaldo Soares Filho, um especialista em sensoriamento remoto. O programa permite simular a evolução de uma determinada área em função de parâmetros como as mudanças no uso da terra e cobertura do solo.
O grupo usou esse software para analisar a adequação de 815 mil propriedades rurais ao Código Florestal, no cerrado e na Amazônia. Rajão contou que o grupo desenvolveu soluções para lidar com a complexidade e a grande quantidade de dados processados. “No início do estudo, demorávamos mais de um mês para analisar a aplicação do Código Florestal em imóveis rurais de um estado”, contou Rajão. “No final, fazíamos esse trabalho em poucas horas.”
Rajão contou que guias de transporte de cabeças de gado permitiram à ferramenta rastrear casos de desmatamento indireto, em que bois criados em terras ilegalmente desmatadas são transferidos para propriedades que respeitam a legislação ambiental antes de serem vendidos para os frigoríficos. “Aplicamos para a pecuária a mesma técnica usada para rastrear dinheiro de corrupção”, disse Rajão. “Identificamos as cabeças de gado contaminadas com desmatamento na origem e vimos como elas se misturavam com as que tinha fonte legítima.”
O pesquisador acredita que a ferramenta desenvolvida na UFMG poderia se tornar a base de um sistema nacional de rastreamento do agronegócio em todos os biomas. “Isso traria clareza de uma vez por todas para o consumidor nacional e internacional sobre a vinculação entre a produção agropecuária e o desmatamento”, disse Rajão. “Não tem mais desculpa, os meios técnicos estão postos, e os dados, disponíveis.”