Era fim de tarde de sexta-feira, dia 1º, quando um soldado do Exército foi assassinado com um tiro no Rio Negro, coração da Floresta Amazônica. A morte está sob investigação, mas a Segunda Brigada de Infantaria de Selva, à qual pertencia o soldado, não descarta que ele tenha sido vítima de um narcotraficante. Cinco dias antes, militares do destacamento haviam apreendido na mesma região, entre a Ilha das Flores e a cidade de São Gabriel da Cachoeira, uma tonelada de skunk, variedade da cannabis, dentro de um barco que rumava para Manaus. O nome do soldado não foi divulgado. Em dezembro, a Polícia Civil apreendeu 400 quilos de cocaína no mesmo rio, já próximo à capital do estado.
A Amazônia é hoje a principal rota de entrada de cocaína no Brasil, de acordo com relatório da Polícia Federal, obtido pela piauí, que analisa o impacto do novo coronavírus no tráfico de drogas no Brasil e nos países vizinhos. Além da proximidade com a Colômbia e o Peru, os dois maiores produtores de cocaína do mundo, a intensificação do patrulhamento das forças militares norte-americanas no Caribe após o indiciamento do ditador venezuelano Nicolás Maduro por narcoterrorismo, em março, e deficiências na fiscalização da Bacia do Rio Amazonas e de seus afluentes facilitam o transporte e a exportação da cocaína para a Europa e, em menor escala, para os Estados Unidos, por meio da Amazônia brasileira. Embora o Rio Solimões seja a principal porta de entrada da droga na região, o Negro tem sido utilizado como rota alternativa para escoar a produção colombiana de cocaína e skunk.
O documento da PF cita como exemplo o Porto de Barcarena, Pará, por onde foram remetidos quase 3 mil contêineres de produtos variados para o exterior no primeiro bimestre deste ano, “sendo grande a possibilidade de contaminação [dos contêineres com cocaína]”, diz a PF. Segundo o relatório, quase 6 toneladas de cocaína foram apreendidas no exterior em navios com origem no porto paraense – a polícia não informa em qual período ocorreram esses flagrantes.
Pesquisa com empresas de transporte rodoviário e marítimo do Brasil divulgada no mês passado pela Confederação Nacional de Transportes (CNT) aponta que, para 57,4% das transportadoras por estradas e 50% das gigantes portuárias, o impacto da Covid-19 tem sido “muito negativo”. Já o mercado paralelo das drogas, tudo indica, tem suportado bem as restrições de circulação de pessoas e mercadorias impostas pela pandemia. Embora, na comparação com o primeiro bimestre de 2019, tenha caído o número de contêineres com cargas convencionais exportados pelo Brasil em janeiro e fevereiro deste ano, quando a Covid-19 era incipiente no país – o primeiro caso só seria confirmado em 26 de fevereiro, em São Paulo – mas se alastrava pela China e pela Europa, a apreensão de cocaína nos portos brasileiros cresceu 10,5% entre os meses de fevereiro a abril deste ano, na comparação com o mesmo período de 2019: de 12,4 toneladas para 13,7 toneladas.
Para a PF, as restrições de circulação e o fechamento das fronteiras do Brasil não provocaram alterações significativas no tráfico de cocaína em larga escala e na exportação da droga pelos portos brasileiros. Isso se deve à grande quantidade de cocaína que já estava estocada no país antes da chegada do novo vírus e ao uso de estradas alternativas para driblar a fiscalização nas fronteiras. A valorização do dólar e do euro – cotados, respectivamente, a 5,73 reais e a 6,27 reais na sexta-feira, 8 – serviu de incentivo para a exportação, uma vez que os grandes narcotraficantes que atuam no atacado da cocaína recebem em dólar ou euro dos seus compradores europeus. A logística da cocaína, no Brasil, “mostra-se eficiente, a despeito das dificuldades de deslocamento, de isolamento social e de maior controle por parte das instituições de segurança”, diz o relatório.
No varejo do tráfico, segundo a PF, a suspensão das visitas aos presos no país por conta da Covid-19 tem dificultado a comunicação entre as lideranças das facções criminosas, a maioria no sistema penitenciário federal, e seus subordinados em liberdade. Isso dificulta também as negociações para a compra ou venda de grandes quantidades de drogas por essas facções. Em São Paulo, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, não houve alteração significativa no preço da maconha e da cocaína oferecida ao consumidor final. Nesse último estado, ainda conforme o documento, houve redução da margem de lucro dos traficantes, por conta do reajuste no valor da cocaína vendida para as facções que controlam os morros fluminenses – o documento não fornece números – e da redução da demanda por conta do isolamento social. Já em Tocantins e no Espírito Santo a cotação da cocaína não se alterou, enquanto dobraram os preços cobrados pela maconha, originária sobretudo do Paraguai.
Já nos países produtores de cocaína, a Polícia Federal aponta para um aumento na quantidade da droga produzida, sobretudo na região do Vraem, sigla para “Vale dos Rios Apurímac, Ene e Mantaro”, no altiplano peruano, apesar da dificuldade, por conta da quarentena, em se obter em grande quantidade os produtos químicos utilizados no preparo do cloridrato de cocaína. Segundo o relatório, “pode-se concluir que as organizações [criminosas] estão armazenando a droga produzida para posterior escoamento”. Devido à grande oferta, o preço da cocaína no Peru caiu de 900 para 400 dólares de março para abril. Na Bolívia, a dificuldade dos “cocaleiros” para escoar a produção nos mercados legalizados de coca levou muitos deles a oferecer a produção para os cartéis do tráfico, sobretudo na região do Chapare. “Presume-se que, com a diminuição dos efeitos da Covid-19 e consequente arrefecimento dos controles estatais, haverá aumento significativo na produção de cocaína nos próximos meses”, afirma o relatório.