No 41º episódio do podcast Luz no fim da quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach explicam como uma pesquisa da Coreia do Sul comprovou que pessoas assintomáticas infectadas com o Sars-CoV-2 mantêm o vírus no corpo pelo mesmo tempo que as sintomáticos e, consequentemente, transmitem o vírus da mesma forma. Ouça o episódio completo aqui.
José Roberto de Toledo: Quantas pessoas andam por aí sem preocupação e às vezes até sem máscara porque não apresentam nenhum sinal da Covid-19? Não têm febre, nem dor, nem falta de ar, não tossem nem dão um espirro e, mesmo assim, sem saber, carregam o Sars-CoV-2 dentro delas. Hoje, são dezenas de milhares, mas, se contarmos desde o começo da epidemia, somam milhões de brasileiros. Neste episódio, Fernando Reinach explica aquele que talvez seja o melhor estudo publicado até agora sobre os casos assintomáticos de Covid-19. O estudo saiu em 6 de agosto num jornal da Associação Médica Americana, o JAMA Internal Medicine, e descobriu um número muito importante: a proporção de assintomáticos na população. A pesquisa foi conduzida por um time de cientistas da Sun Chun Yang University de Seul. Não é à toa que essa investigação tem sido feita na Coreia do Sul. Reinach explica por quê.
Fernando Reinach, hoje nós vamos discutir um estudo que é muito curioso e interessante, porque trata do comportamento do vírus no organismo das pessoas sintomáticas e também das assintomáticas. Isso é uma coisa muito rara, porque os assintomáticos dificilmente são testados.
Fernando Reinach: Na verdade, o objetivo deles era comparar sintomáticos com assintomáticos. Isso pôde ser feito porque na Coreia do Sul eles têm duas coisas interessantes. Primeiro, eles testam randomicamente a população. Ao contrário do Brasil, onde só se testa quem tem sintomas, lá eles saem na rua testando com PCR todo mundo. A segunda coisa é que eles têm um centro de isolamento onde todo mundo que testa para PCR positivo é recolhido. Eles vão testando com PCR as pessoas que estão nesse centro de isolamento. A cada dois, três dias, testam todo mundo e continuam testando até o cara ficar com o PCR negativo. Quando isso acontece, ele é liberado.
José Roberto de Toledo: PCR negativo significa que ele não tem mais o vírus identificável no seu organismo, é isso?
Fernando Reinach: Ele não tem mais o RNA do vírus identificável, porque o PCR, é importante lembrar, pega o RNA do vírus – você não sabe se o vírus está vivo ou morto. Isso é importante para quando a gente chegar ao fim do estudo. Outra coisa é que eles têm um segundo método de PCR que consegue medir a quantidade de vírus que a pessoa tem na garganta e tem na boca. Então o que eles fizeram? Eles pegaram uma leva desses pacientes – ao todo, foram 303 pacientes que deram o PCR positivo. Eles foram recolhidos lá nesse centro de isolamento. Desses, 64% (ou seja, 193), estavam sintomáticos no dia que chegaram. Eles foram testados na rua, mas eram sintomáticos e foram recolhidos lá. E 110 deles – o que dá 36% – estavam assintomáticos, ou seja, foram pegos só porque estavam na rua, foram testados e não tinham sintoma nenhum. Daí o PCR deu positivo e eles foram recolhidos. Então isso já mostra mais ou menos que, se você testar ao acaso na rua, vai ter um terço de assintomáticos e dois terços de sintomáticos. Desses 110 assintomáticos que foram recolhidos, 21 desenvolveram sintomas. Então, na verdade, eles não são assintomáticos, eles são pré-sintomáticos. Eles estavam no começo da infecção e desenvolveram os sintomas, enquanto 89 eram verdadeiros assintomáticos: eles ficaram lá e não desenvolveram nenhum sintoma.
José Roberto de Toledo: Quer dizer, 29% de uma amostra aleatória da população adulta sul-coreana no meio da pandemia era assintomática, de forma cientificamente comprovada.
Fernando Reinach: Exatamente. Eles puderam comparar o desenvolvimento desde o dia em que fizeram o PCR até o dia em que essas pessoas foram liberadas. O que acontecia: dia sim, dia não, eles olhavam as pessoas, testavam, faziam PCR. À medida que as pessoas iam se tornando negativas no PCR, elas eram liberadas.
José Roberto de Toledo: Enquanto não houvesse PCR negativo o cara ficava preso no Centro de Detenção Provisória para sintomáticos e assintomáticos de Coronavírus.
Fernando Reinach: É mais ou menos o que a gente tem visto com políticos como o Bolsonaro. Todos esses ministros que se infectaram disseram: “ah, deu positivo. Dois dias depois continua positivo. Estou aqui falando com as emas. Ah, não sei quantos dias positivo”. Daí, ele fala um dia: “olha deu negativo, vou voltar a trabalhar”. É o procedimento padrão num país rico, que infelizmente aqui não dá pra fazer. Aqui no Brasil, mandam o cara ficar catorze dias em casa e tá liberado. O que eles viram é que só conseguiam começar a liberar pessoas, ou seja, os primeiros casos que ficavam PCR negativo, no décimo dia após a entrada do sujeito. Então nos primeiros dez dias ninguém virava PCR negativo. A partir dos dez dias, as pessoas começavam a ficar PCR negativo, e subindo e subindo. É uma curva: ela vai subindo e você só libera todo mundo mesmo após 28 dias. Só quatro semanas ou um mês depois de ter testado positivo é que você vira mesmo negativo.
José Roberto de Toledo: Dá para ver pelo gráfico deles que metade das pessoas só foi liberada mais ou menos depois do 17º dia.
Fernando Reinach: É mais ou menos isso. No décimo sétimo dia, liberaram metade das pessoas. Agora, o interessante é que essa curva de liberação – quando você tem certeza que as pessoas não têm mais o vírus – é idêntica ou muito parecida, entre os assintomáticos e os sintomáticos. Os sintomáticos têm um pequeno deslocamento, mas eles não se curam antes, eles não perdem o vírus antes.
José Roberto de Toledo: Na verdade, até um pouquinho depois, né. A curva é muito parecida, paralela, mas a curva dos assintomáticos é até um pouquinho mais alta.
Fernando Reinach: Porque a nossa imaginação é assim: o cara é assintomático, é rápido, ele rapidamente para de ter o vírus, tudo desaparece rápido, ele é menos contagiante, ele causa menos espalhamento da doença. Isso não é verdade. De acordo com esse estudo, os dois levam o mesmo tempo pra se livrar do vírus.
José Roberto de Toledo: E a quantidade de vírus?
Fernando Reinach: Eles mediram também a quantidade de vírus nessas duas populações ao longo do tempo e viram que ela também é igual. Então, para todos os efeitos, se você é sintomático ou assintomático, o tempo que leva para você perder totalmente o vírus e a quantidade de vírus que você tem são iguais. E esse grupo assintomático equivale a cerca de 30% dos casos.
José Roberto de Toledo: É, esses 29% – no caso, os 89 pacientes que permaneceram assintomáticos durante todo o tempo – estão completamente fora do radar de um país como o Brasil ou como os Estados Unidos, que só testam quem tem sintoma.
Fernando Reinach: No Brasil, agora está começando a ter minúsculos programas para isso. Você vai numa fila, pega uma senha, passa não sei quantas horas e testa. Tanto faz, você pode a hora que você quiser. Mas, para realmente pegar todos os assintomáticos, é preciso ter uma testagem por PCR muito rápida, com resultados imediatos, e pôr todo mundo em isolamento, como estavam fazendo na Coreia do Sul. E esse resultado mostra por que é tão difícil conter a pandemia, porque você tem por volta de 30% das pessoas que pegam o vírus, começam a soltar o vírus pela boca, pelo nariz, quando espirram ou quando estão falando, porque não têm sintoma nenhum e passam o mesmo tempo espalhando o vírus que um cara sintomático. Então você conseguir identificar essas pessoas e isolá-las é um desafio enorme, mesmo nos países mais organizados.
José Roberto de Toledo: Fiz uma conta rápida aqui enquanto a gente conversava. Se o Brasil disse que tem 3,12 milhões de casos confirmados nesta quarta-feira, enquanto a gente grava, na verdade ele tem 4 milhões – já que existe 29% de assintomáticos que não foram testados, no mínimo. Se essa amostra fosse testada aleatoriamente…
Fernando Reinach: Ia dar os 40%, exatamente. Hoje, como a gente testa muito pouco, a gente pode, para ser tão pessimista, dizer que a proporção é dez vezes maior, mas provavelmente tem oito vezes mais casos, algo perto disso. E você ainda tem esses 30% que passam totalmente fora do radar, que estão transmitindo. As cadeias de assintomático passando para o sintomático só se torna visível na hora em que um desses elos da cadeia é sintomático. A contenção dessa doença é muito difícil. Você pega uma cidade como Araxá, que está tentando conter a epidemia com um número grande de testes de PCR, fazendo rastreamento de contato: eles estão testando só as pessoas que têm sintoma. Estão conseguindo conter, mas você já sabe que lá a gente não está enxergando os assintomáticos.
José Roberto de Toledo: Isso explica por que você não consegue erradicar a doença também. Mesmo que se faça o rastreamento de contatos com todo mundo que apresenta sintomas, você vai ter 29% de pessoas que nunca serão contabilizadas porque nunca tiveram qualquer sintoma.
Fernando Reinach: Isso se presumirmos que a genética das pessoas de Araxá seja igual à genética das pessoas da Coreia do Sul, o que não é, mas a extrapolação é válida, claro. Eu acho esse trabalho muito importante, porque primeiro ele mostra como o pessoal está fazendo na Coreia. E aí ele mostra que nos centros de isolamento você pode fazer esses estudos, e aí você descobre que os assintomáticos são basicamente iguais aos sintomáticos.
José Roberto de Toledo: Sem querer ser Poliana, mas, para aqueles que deram PCR positivo: você não precisa ficar preocupado, então. Se você teve PCR positivo depois de catorze dias, fez o exame e deu positivo de novo, porque teoricamente até 28 dias, saiba que isso é esperado. Há um um precedente de demora mesmo.
Fernando Reinach: Tem uma discussão sobre o fato de que o PCR continua positivo mesmo depois de o vírus morrer, porque mesmo com todos os vírus mortos ainda ocorre o descamamento das células da garganta. Então acredita-se que na última semana ou nas últimas duas semanas do mês a pessoa ainda tem o PCR positivo mas não tem mais o vírus vivo dentro de si.
José Roberto de Toledo: Esse é aquele período em que ela começa a ficar soropositiva, já tem anticorpos, mas ainda dá PCR positivo.
Fernando Reinach: Exatamente isso.
José Roberto de Toledo: E agora vamos ver como a situação no Brasil evolui, considerando que tinha 29% de pessoas que não estamos nem aí para testar.
Fernando Reinach: O que esse trabalho mostra, para mim, pelo menos, é que a chance dos países subdesenvolvidos de controlar o vírus por qualquer medida é muito baixa. Você precisa de um nível de organização de testagem muito grande. Esse pessoal do Todos Pela Saúde, por exemplo, financiou grandes laboratórios – acho que dois laboratórios foram inaugurados. O Brasil tem capacidade de testar 50 mil pessoas por dia. Para o laboratório, você compra equipamentos, monta tudo para funcionar, e ainda tem a logística de pegar as pessoas, coletar, mandar para o laboratório, testar, ter o resultado, etc. Isolar é um problema muito mais difícil do que construir um laboratório. Essa desculpa de que não há testes logo vai passar no Brasil, e aí o problema sério mesmo é a logística em volta disso. Isso é muito mais complicado do que o teste em si.
José Roberto de Toledo: É de se esperar que haja repiques da doença mesmo em países ricos, não é? Porque os relatos que chegam da Europa é de que está todo mundo na rua. Boa parte das pessoas sem máscara.
Fernando Reinach: Lá o repique vai ser muito mais forte do que aqui, porque o número de infectados no início foi bem menor. Aqui, como o número de infectados foi muito grande, o repique vai ser menor. Alguns lugares são interessantes. Nova York, por exemplo, vai ser um experimento. Eles tiveram um número de mortos muito alto. O que será que aconteceu? Será que vão ter um repique grande, pequeno, ou nem vão ter repique? Vamos ver como será quando se comparar Nova York com Madri, ou com Paris. Não é justo comparar São Paulo com Paris, por exemplo. Você teria que comparar com a África do Sul, com a capital da Índia.
José Roberto de Toledo: Muito bom! Dessa vez a gente não conseguiu dar uma luz no fim do túnel, mas, de qualquer jeito, a gente consegue olhar para trás e ver melhor o túnel por onde a gente já passou.
Fernando Reinach: É isso aí! Faz parte da ciência, é isso mesmo.